GT 13. Antropologia dos direitos e das moralidades: Estado, "violência" e

Coordenador(es): 
Flavia Medeiros Santos (UFSC - Universidade Federal de Santa Catarina)
Lucia Eilbaum (UFF - Universidade Federal Fluminense)

O GT debaterá práticas, sentidos e valores associados a processos de configuração da “violência de estado” nas suas dimensões políticas, sociais e morais. Consideramos “violência” como categoria local, relacional e polissêmica, interessando discutir etnografias que analisem processos e/ou casos classificados como violência e como esta categoria têm efeitos na produção de direitos, moralidades e nas práticas de intervenção estatal e/ou paraestatal. O GT terá como questões: como se constroem práticas e moralidades em torno da categoria violência de estado?; como são criados, manipulados, incorporados, legitimados e/ou naturalizados dispositivos que resultam em processos e/ou casos definidos como violência de estado?; como se estabelecem movimentos sociais e processos políticos de demanda por direitos humanos e luta contra a violência de estado?; como casos denunciados como violência de estado repercutem? Esperamos trabalhos que analisem a relação entre violência de estado e direitos humanos, sua profundidade e continuidade histórica e categorias que lhe dão forma em processos sociais singulares. Em especial, etnografias que discutam práticas estatais e dispositivos de intervenção (burocráticos, judiciais, policiais, administrativos); processos de demandas e mobilização por direitos, considerando regimes políticos distintos e; contextos de demanda por justiça, verdade, memória, reparação, e denúncia de violência institucional, extermínio, terrorismo de estado e genocídio.

Palavras chave: violência de estado; direitos humanos; etnografia
Resumos submetidos
A prevenção e o combate à tortura nas audiências de custódia: uma reflexão sobre as práticas e discursos dos operadores do direito sobre tortura.
Autoria: Natália Barroso Brandão (UFF - Universidade Federal Fluminense)
Autoria: O presente artigo tem como objetivo trazer reflexões sobre como os operadores do direito, em especial os juízes e os promotores, atuam na prevenção e combate à tortura nas audiências de custódia, assim como sobre os valores e moralidades que orientam tal atuação. A audiência de custódia tem como objetivo, além de avaliar a legalidade, a necessidade e a adequação da continuidade da prisão em flagrante, verificar a existência de tortura ou maus-tratos no momento da prisão, o que ensejaria o relaxamento desta. Entretanto, na grande maioria dos casos em que a pessoa presa relata ter sofrido agressões, a prisão não é relaxada e o promotor faz um pedido para que o caso seja encaminhado para a corregedoria da polícia. Em alguns outros casos, nem este pedido de encaminhamento é feito, o que demonstra que existem outros fatores, além do relato de agressões por parte do custodiado, que orientam as decisões dos juízes e promotores quanto ao relaxamento da prisão e o encaminhamento do caso para a corregedoria. Tais reflexões são decorrentes de work de campo realizado assistindo às audiências de custódia na Cadeia José Frederico Marques, em Benfica, até o momento da suspensão destas em virtude da restrição sanitária imposta pela pandemia de Covid-19 e, posteriormente, analisando documentos e conversando com operadores do direito que atuam nestas audiências. Pretendo, portanto, a partir da análise das práticas e discursos dos operadores do direito, buscar compreender quais são as torturas que estes consideram que devem ser prevenidas e combatidas na prática; atentando para as sensibilidades legais (e morais) mobilizadas por estes atores. Pretendo, também, analisar como estes discursos e práticas se relacionam com outros processos sociais e políticas institucionais.
As "bichas"e os "bofes"na "crise do sistema penitenciário
Autoria: Vanessa Sander (UNICAMP - Universidade Estadual de Campinas)
Autoria: Este work busca analisar como gênero e sexualidade se constituem como elementos tensionadores de impasses e “crises” no sistema prisional. Parto de uma etnografia que tem como um de seus lugares-chave a Ala LGBT de uma penitenciária masculina, localizada na região metropolitana de Belo Horizonte. A unidade em questão comporta o pavilhão que sedia a política de alas, abrigando qualquer pessoa presa no estado de Minais Gerais que opte por firmar um documento declarando-se homossexual ou travesti. A partir da análise de algumas cenas e diálogos recolhidos em campo, pretendo refletir sobre porque, como e desde onde ocorre o disparador que faz com que as prisões e toda a malha institucional punitiva ganhem destaque dentro das demandas e pleitos dos movimentos trans; e que também faz com que essa população ganhe proeminência nas produções técnicas de determinados aparelhos de estado. Além disso, busco analisar as maneiras pelas quais esses discursos e práticas de estado operam nas práticas conjugais e afetivas das travestis privadas de liberdade, configurando tramas institucionais complexas que envolvem dinâmicas e disputas classificatórias, a emergência de novos sujeitos de direitos, narrativas sobre violência sexual e sensações de crise. Nesse sentido, busco refletir sobre os nós institucionais que certos corpos e acionamentos de gênero e sexualidade trazem para o sistema prisional, fazendo com que a Ala LGBT, anteriormente conhecida como “política modelo”, passasse a ser descrita pelos gestores como uma “política em crise”. Ademais, a referenciada “crise” que envolve o pavilhão LGBT parece articulada a uma retórica da crise que atravessa todo o sistema penitenciário de forma mais ampla. Assim, pensando como a própria noção de crise evoca uma demanda moral por uma diferença entre o passado e o futuro, busco refletir sobre como a emergência de novos sujeitos de direitos na política penitenciária e a presença de certos corpos evocam estados de emergência e atravessam os ciclos de fracasso e reparação que edificam o sistema prisional.
As reflexões e as sensibilidades das mães e avós a respeito das perdas violentas de seus filhos e netos no Nordeste brasileiro: uma etnografia da agência subjetiva das mulheres.
Autoria: Leonardo Damasceno de Sá (Universidade Federal do Ceará), Arthur Felipe Lins de Souza Pontes Carliana Isabel Nascimento Pereira
Autoria: Perda, dor, desespero, raiva, vingança, medo, sofrimento, adoecimento, abandono, impotência, isolamento, depressão, fé, desesperança, revolta, resignação, silêncio, grito, criminalização, direitos negados, desejo de justiça são alguns símbolos que sumarizam parte das experiências vividas pelas mulheres que perderam filhos, netos e outros “entes queridos” para as “guerras” armadas das facções, milícias, polícias, dentre outros contextos de morte por agressão. Nos fluxos da vida, as experiências socioculturais que elas experienciam estão mergulhadas nesse emaranhado de sentimentos que evocam confusão, conflitos diversos e, também, regimes morais para lidar com tantas tensões e silenciamentos. Na perspectiva de uma antropologia da pessoa, as mulheres não são apenas papéis sociais de mães e avós, como tende a fixar o modelo do antagonismo sexual heteronormativo e masculinista. Para além dele e contra ele, as mulheres são agências, são trajetórias, histórias de vida, movimentos, seres sociais em luta. Nesse sentido, as mulheres das periferias do Nordeste do Brasil que vivem em favelas das grandes cidades não são apenas indivíduos de uma população que carregam informações em seus corpos que podem ser observadas por pesquisas de dados sobre elas e a partir delas. Elas são pessoas concretas, sujeitos de conhecimento, de práticas de conhecimento, de formas de pensar, de sensibilidades e outras habilidades agentivas. Baseando-nos em entrevistas etnográficas e não etnográficas com mulheres que perderam filhos e netos em situação de morte matada por arma de fogo, em conflitos diversos nas dinâmicas criminais, confronto de facções e com policiais ou grupos de extermínio, buscar-se-á descrever e refletir o que as mulheres têm a dizer sobre justiça, direito, polícia, crime, moralidade, estado e democracia, pois esses temas “grandiloquentes” não são monopólio de especialistas (homens) discursando sobre a realidade. Pessoas comuns com baixa escolaridade e em contextos de forte opressão, como as mulheres de nossa interlocução, não são incapazes, ao contrário, sabem pensar, refletir e propor soluções, e isso não é um mero postulado, mas uma constatação empírica, como se procura mostrar etnograficamente, inspirando-nos em debates antropológicos de Veena Das, Judith Butler, Tim Ingold e Marilyn Strathern sobre a relação pessoa, direito, gênero e moral, bem como na literatura antropológica já existente sobre o tema no Brasil.
Assimetrias em uma "guerra que chega aos céus": Drones, helicópteros e estratégias de (contra)vigilância em favelas cariocas
Autoria: Apoena Dias Mano (USP - Universidade de São Paulo), PALLOMA VALLE MENEZES
Autoria: Nas favelas cariocas, uma análise heurística e etnográfica do mais recente “fracasso” na área de segurança pública possibilita compreender efeitos e continuidades das experiências regidas pela gramática das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). No histórico de intervenções policiais em favelas cariocas, diversas críticas vêm sendo desenvolvidas em torno de abusos e violações de direitos pela utilização de veículos blindados armados percorrendo ruas estreitas e também helicópteros blindados sobrevoando o céu e realizando disparos arbitrários em direção a corpos e vidas. Mais recentemente, além do acionamento de um repertório prático-discursivo de “abates” e “tiros na cabecinha”, o governador eleito para o mandato 2019-2022 no estado do Rio de Janeiro tornou-se reconhecido por uma performance adotada na ocasião de sua eleição: viajou para Israel com uma comitiva do poder executivo em busca de “drones que atiram”. Militarização das vidas pode ser entendido como um processo de justificativa moral-ideológica onde a doutrina securitária passa a ser a principal organizadora da vida social pela extensão de ideais militarizados de rastreamento, identificação e seleção em espaços e meios de circulação da vida cotidiana - em convergências e particularidades sob uma escala global de um “urbanismo militarizado”. Epistemologicamente, este fenômeno pode ser analisado com apoio sobre diversos estudos em torno da violência urbana carioca e também de maneira complementar a noções de Veena Das e Achille Mbembe: favelas situacionalmente definidas como margens do Estado e alvos de uma necropolítica direcionada a corpos racializados e periféricos. Nesse work, propomos fazer uma leitura etnográfica daquilo que foi chamado por veículos midiáticos como ”uma guerra que chega aos céus” - pela utilização policial de drones e helicópteros em diferentes estratégias de confinamento em torno das vidas e corpos em favelas como a Santa Marta e a Cidade de Deus. Em continuidade, é discutido e apresentado o surgimento de uma estratégia de contra-vigilância a partir do “Santa Marta Alerta”, um conjunto de grupos de Whatsapp criado por uma liderança local para comunicação entre os moradores da favela. Neste quadro de assimetrias, é oportuno observar as diferentes formas de monitoramento, vigilância e violência que se compõem em uma verticalização securitária em direcionamento ao que chamamos de uma “atmosfera de asfixia”: múltiplas sensações de confinamento que devem ser analiticamente compreendidas em dimensões objetivas, subjetivas e políticas.
Em busca da verdade: escravidão, reparação e violência no Brasil
Autoria: Márcia Leitao Pinheiro (UENF - Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro)
Autoria: Em 2014, foi formado um coletivo de organizações do movimento negro com a finalidade de denunciar e enfrentar a violência e seus danos que atingem a população negra no Brasil. Esse coletivo, presente em diversos estados, recorre a dispositivo de esclarecimento histórico, Comissão da Verdade, a fim de explicitar como o período da escravidão beneficiou o Estado brasileiro. Apesar do término da escravidão, esse coletivo entende haver a persistência de sua influência no cotidiano e no Estado, haja vista a violência contra a população negra como, por exemplo, a praticada por forças policiais. Diante disso, o coletivo apresenta demandas por verdade e justiça dos crimes ocorridos no passado e a sua reparação, assim como sustenta que as suas reivindicações não podem ser conduzidas sem estabelecer a denúncia das violências registradas no presente. A partir da abordagem etnográfica e a análise de documentos, buscarei refletir sobre a apropriação do mecanismo de esclarecimento histórico por esse coletivo de organizações do movimento negro e a sua agenda de luta. Para tanto, focalizo a homenagem dirigida a um grupo de mães de jovens desaparecidos – moradores de favelas do Rio de Janeiro e de Santos - e como isso tem sido relacionado com a escravidão, com a injustiça e também com as ações de forças estatais de segurança, corroborando, assim, a persistência do estado de exceção que atinge parte da população do país. Ainda será contemplado como isso é articulado pelo coletivo com a finalidade de reivindicar verdade, justiça, memória e reparação.
Em meio a lanças e escudos: as controvérsias em torno da ideia de "Direitos Humanos" entre policiais e outros profissionais do campo da Segurança Pública
Autoria: Marcos Alexandre Veríssimo da Silva (ineac), Bruno Mibielli
Autoria: Os usos, abusos e controvérsias em torno da noção de “Direitos Humanos”, bem como suas apropriações e interpretações por diferentes e diversos grupos, se configuram, no campo das políticas públicas de segurança e das práticas policiais como um interessante ponto de observação sobre valores e moralidades sob um ponto de vista antropológico. Desse modo, o objetivo da presente proposta é colocar sob descrição os debates (muitas vezes bastante acalorados) que os proponentes vêm tendo a oportunidade de participar, no meio acadêmico, juntamente com pessoas que trabalham em corporações empregadas nas políticas públicas de segurança e controle social. PMs, policiais civis, agentes do chamado “sistema carcerário”, guardas municipais e integrantes das Forças Armadas, matriculados como estudantes no curso de Tecnólogo em Segurança Pública e Social da Universidade Federal Fluminense, na modalidade semipresencial, através do consórcio CEDERJ-CECIERJ de educação à distância. Os autores desta proposta integram o Laboratório de Iniciação Acadêmica em Segurança Pública da Universidade Federal Fluminense (LABIAC), grupo criado com o intuito de propor a socialização acadêmica dos estudantes do tecnólogo – geralmente forjados pelo ethos militar ou militarizado de suas corporações de origem – por meio dos Grupos de Estudo em Segurança Pública (GESPs) que promovem encontros entre professores e estudantes nos polos regionais do CEDERJ-CECIERJ. Através da realização de seminários, mesas redondas, grupos de estudo, grupos de works e outras atividades sediadas no âmbito universitário, temos a oportunidade de ver surgir as tensões do embate entre as pretensões universalizantes do ideário em torno dos “Direitos Humanos” com as moralidades aparentemente idiossincráticas que operam amplamente na sociedade e formatam as práticas policiais. A descrição de situações vividas no bojo de tal experiência, seguida de propostas interpretativas elaboradas a partir do referencial teórico das ciências sociais, é a forma como os autores pretendem produzir o work final visando assim participar do debate neste Grupo de work.
Entre a rua e a prisão, as marcas da Audiência de Custódia – violência, Estado e sujeições a partir de um caso etnográfico
Autoria: Clark Mangabeira (UFMT - Universidade Federal de Mato Grosso)
Autoria: Resultado do work etnográfico realizado sobre as audiências de custódia em Cuiabá (MT), a proposta desta apresentação é indagar sobre a construção das categorias “violência” e “identificação criminal” a partir das práticas e discursos de uma audiência de custódia tomada como referência das demais do universo cuiabano. Centrado nas dinâmicas da audiência e nos diversos documentos que versam sobre o caso de “João”, a análise indaga sobre (a) as idiossincrasias da audiência de custódia enquanto um instituto jurídico, definido exatamente em diálogo com e dentro da seara discursiva da “violência de/do Estado”; e (b) a configuração da audiência de custódia com o escrutínio das vozes que realocam João na seara criminal a partir da construção da sua identidade dentro dos sentidos da dinâmica jurídico-estatal, etnograficamente delimitados, configurando-se uma narrativa fruto de uma “(meta)violência” de classificação imperativa do sujeito. Por fim, destaca-se que o plano de fundo do work desenrola-se no processo jurídico a partir da prática e dos valores da audiência de custódia enquanto uma configuração que versa diretamente sobre violência, Estado e direitos humanos.
Necrogovernança e necropoder subversivo de vidas postumas de vitimas no México
Autoria: Olof Kjell Oscar Ohlson (The University of Edinburgh)
Autoria: Atualmente, o México vive na época dos “narcos”. Duas décadas intensas de violência relacionada ao narcotráfico viram o número de mortos disparar, especialmente depois que o governo lançou guerra aos cartéis de drogas em 2006, resultando em um número total de pelo menos 37.435 desaparecidos e mais de 200.000 mortos (INEGI 2017). As instituições estatais tendem a ignorar a crise, fechando os olhos para desaparecimentos e mortes violentas. Apenas alguns casos criminais resultam em punição para os autores (HRW Report 2013). De fato, a polícia e as forças armadas foram responsabilizadas pelo envolvimento no narcotráfico, bem como em graves violações de direitos humanos (GIEI Informe Ayotzinapa 2015; Marcial 2014; Noble 2014; Pereyra 2012). A gestão mexicana de mortes, processos judiciais e a crise nacional de violência levaram a políticas controversas. A controversa “necropolítica” do país vê diferentes partes envolvidas nas lutas políticas pelo controle dos mortos (Ferrándiz & Robben 2015; Mbembe 2008). Meu foco nesta apresentação é como as famílias mexicanas de vítimas de violência estatal e corporativa protestam contra “necrogovernança” (Mbembe 2008: 11) e, o que eu chamo, o “necropoder corporativo”: o poder de ditar as circunstâncias da vida e da morte de cidadãos e trabalhadores. Dois casos de campo—os desaparecidos presumivelmente mortos 43 estudantes de Ayotzinapa do “massacre de Iguala” em 2014, e os 63 mineiros não-enterrados depois de um acidente de mineração em 2006 na mina Pasta de Conchos da empresa Grupo México—ilustram como a necro-governança estatal e o necropoder corporativo empregam a técnica criminosa de corpos desaparecidos para impedir a justiça e manter o controle social, através de processos de desumanização para tornar os trabalhadores dispensáveis e alguns grupos matáveis (Berlanga 2015; Mbembe 2008; Robben 2007). No entanto, isso é combatido pelas lutas teimosas dos movimentos sociais para restaurar um senso de valor para as vítimas. Os ativistas usam uma “política de visibilidade” com atos públicos de luto para recuperar suas vítimas (Rivera Hernández 2017; Taussig 1992). Argumento que coletivos mexicanos de famílias de vítimas implantam um “repertório de ação coletiva” (Tilly 2006) em resposta a regimes de necrogovernança, criando uma forma de “necromoralidade” que ilustra um novo tipo de “necropoder subversivo”. Parentes de vítimas têm várias estratégias para sustentar o necropoder subversivo, como atraves de “vidas postumas dàs vítimas” (Ohlson 2019), onde dão oferendas aos mortos no Dia dos Mortos e realizam cerimônias em espaços público para envergonhar as autoridades, usando suas vítimas como objetos de luto e ativismo, ou seja, desafiando ambas as necrogovernanças e necropoder corporativo.
Ossos desvelados: entre burocracias, técnicas e práticas que atribuem identidade.
Autoria: Ingrid Possari Cia (UNIFESP - Universidade Federal de São Paulo)
Autoria: A apresentação aqui proposta para a 32ª Reunião Brasileira de Antropologia - RBA se baseia no work etnográfico, parte de uma pesquisa de mestrado em Ciências Sociais (em andamento), o qual investiga o lugar institucional da Antropologia Forense dentro da perícia em casos de violação de direitos humanos no Brasil, a partir da instituição do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (CAAF - Unifesp). O objetivo consiste em entender os processos de reconhecimento e identificação de remanescentes humanos a partir de um conjunto de práticas - entre técnicas, métodos e protocolos - que implicam o estabelecimento de um elo entre corpo e nome, incorporado a complexas organizações no interior de repartições burocráticas quanto ao tratamento dado às vítimas de mortes violentas. O processo de identificação individual de pessoas fixou-se no Brasil como um saber e uma técnica policiais, sobretudo no século XIX, com a abrangência do discurso biologizante da identificação, localizado na produção de um saber médico-legal. Tal saber se encarrega de dar respostas às questões da esfera jurídica, na qual práticas científicas e burocráticas são imputadas a cadáveres e ossadas no Instituto Médico Legal (IML). Na medida em que a institucionalização dos processos de morrer – compostos por laudos fabricados por peritos - se desdobram no IML, as categorias de classificação e controle atribuídas na gestão dos mortos compõe o cotidiano das instituições policiais. Porém, o processo de reconhecimento e identificação de corpos e remanescentes ósseos realizados no IML demonstram-se distintos das técnicas forenses operadas no CAAF. Estas, na América Latina, vinculam-se ao desenvolvimento do humanitarismo forense, intimamente relacionado às formas pelas quais os Estados lidaram com as heranças das ditaduras da segunda metade do século passado. Assim, este estudo busca compreender a partir de quais referências e protocolos o CAAF surge, em 2014, como uma instituição que desenvolve humanitarismo forense e reúne técnicas de identificação forense especificamente orientadas para as violações de direitos humanos. Considerando o citado elo entre corpo e nome, esta apresentação terá enfoque na análise da produção documental confeccionada pela perícia acerca do caso de Dimas Antônio Casemiro, militante político exumado da vala de Perus, em 1991, que teve seus remanescentes ósseos identificados pelo Grupo de work Perus (GTP), no Centro de Arqueologia e Antropologia Forense (CAAF), em 2018. Aqui, entende-se o caso a partir da narrativa do desaparecimento de Dimas e seus dados físicos, conhecidos por ante mortem, a análise de seus remanescentes ósseos, post mortem, e os dados genéticos.
Por dentro e por fora do Estado: as milícias do Rio de Janeiro e suas legitimações
Autoria: Leonardo Brama (UFF - Universidade Federal Fluminense)
Autoria: No estado do Rio de Janeiro, a categoria “milícia” vem reunindo, nos últimos anos, práticas e formas de organização de grupos criminosos diversas e heterogêneas, sincrônica e diacronicamente. Há uma diversidade de formas de organização e atuação do que atualmente se denomina, genericamente e muitas das vezes de forma abstrata, de milícia. Deve-se ter em mente a amplitude que o termo representou e pode representar: desde grupos de agentes estatais e/ou civis com o objetivo de “colocar ordem” no local até grupos organizados em redes político-econômicas articuladas, que alcançam as entranhas da máquina estatal. Diferente do que as teorias convencionais dizem a respeito, as milícias informam práticas de construção do Estado que se explicam mais pela sua presença e menos por sua suposta ausência. A categoria “milícia” foi ressignificada na metade da década de 2000, quando começou a ser utilizada nos debates públicos do Rio de Janeiro para definir a atuação de tais grupos. Desde o início, houve diferentes interpretações acerca das milícias: enquanto algumas explicações ressaltavam as funções de defesa e controle territorial, outras apontavam mais para o aspecto lucrativo. Para o presente GT, esse work focaliza os processos de legitimação e deslegitimação, mitificação e desmitificação que caracterizaram tais grupos, desde que surgiram no debate público como um suposto novo ator social da “violência urbana”. A partir de entrevistas com pessoas que moram em “área de milícia”, dados etnográficos coletados em work de campo entre 2017 e 2018, documentos e matérias de jornal, analiso os termos nos quais se estabelecem as discussões acerca das milícias do Rio de Janeiro, a relevância que o Estado e os órgãos midiáticos tiveram, nos primeiros momentos, em legitimar certos grupos criminosos e, ao longo dos anos, em defendê-los em detrimentos de outros grupos considerados prioritários na agenda da segurança pública, como os traficantes. Ao mesmo tempo, através de relatos de pessoas que moram em “área de milícia”, abordo os recursos simbólicos acionados por essas pessoas, propondo uma reflexão que permite pensar sobre algumas das bases de legitimação das milícias.
Reparação, proteção e saúde na história de Bárbara: algumas controvérsias
Autoria: Mariana Tavares Ferreira (Psicóloga - SUS)
Autoria: Acompanho há alguns anos, como apoiadora do movimento de familiares de vítimas de violência estatal, Bárbara, mãe, testemunha do assassinato do filho, Diogo, adolescente, ocorrido há 14 anos. Com uma passagem de 3 anos pelo programa de proteção a testemunhas, Bárbara reiteradamente vinha buscando ajuda nos órgãos de Direitos Humanos, pedindo para “voltar para a proteção”, onde, um dos principais quesitos era, segundo ela, o acesso a tratamentos e medicamentos para sua saúde abalada com a perda do filho. Nesta comunicação, apoiada na ideia da antropóloga indiana Veena Das apresentada num artigo do livro Affliction – “How the Body Speaks” (Como o corpo fala), procurarei explorar algumas expressões do corpo de Bárbara e os juízos morais que diferentes atores no movimento social tem sobre estas. Como estas expressões e juízos relacionam-se às políticas de proteção pelas quais passou e como ela entende essa “proteção” muito próxima a um sentido de reparação, gerando controvérsias com agentes do estado e outros familiares e ativistas. Na história de Bárbara, emergem sentidos singulares na intersecção entre “proteção” e “saúde” na luta por reparação e justiça. Como psicóloga, comecei um work de articulação de uma rede de saúde, de forma a reunir possíveis apoiadores para o movimento que pudessem contribuir com essa questão dos processos de adoecimento dos familiares no decorrer da luta por justiça. No caso de Bárbara, passei a incentivar com que acessasse tratamentos no SUS, acompanhando-a em consultas, conversando com uma enfermeira do posto de saúde que sensibilizou-se com seu caso, dentre outras inciativas. Chamava atenção que sempre que íamos a qualquer repartição de justiça, direitos humanos ou unidade de saúde, era sempre contada novamente a história da perda do filho e sempre dava a impressão de ser muito mais recente do que os 14 anos já decorridos. Mesmo num atendimento de emergência num hospital geral, onde tentaríamos através de um conhecido um exame de coração pois ela vinha tendo muito falta de ar ao caminhar, dores no peito e dormências, ao falar de si na enfermaria lotada, rememorou o corpo do filho, os movimentos involuntários de seu braço quando baleado. Essa mãe entrou em luta corporal com os policiais, que colocaram a arma em sua cabeça e levaram seu filho ainda com vida. Terminaram de matá-lo no hospital. Bárbara vinha um pouco menos deprimida, participativa, começou a frequentar um grupo de terapia voltado para os familiares de vítimas de violência estatal. Porém, a região onde morava passou para o domínio da milícia e sua militância acabou por colocá-la sob ameaça. Momento em que Bárbara volta novamente para um programa de proteção, onde ficou por cerca de seis meses.
“É guerra todos os dias!”. As violências de estado e as lutas por reconhecimento no Quilombo da Família Machado (Porto Alegre/RS)
Autoria: Alexandre Peres de Lima (Instituto de Colonização e Reforma Agr)
Autoria: “É guerra todos os dias!” – esta é a síntese feita por uma liderança do Quilombo da Família Machado em Porto Alegre, em suas lutas por reconhecimento. “Guerra” essa travada em diversos encontros com segmentos estatais e encaradas violentas. Interpelar um segmento estatal é passível de gerar conflitos e mesmo violências. O ponto de reflexão é pensar a violência percebida por essas lideranças quilombolas como o desdobramento e generalização de uma série de violações feitas por estes segmentos do estado. Acionar e demandar políticas públicas (saúde, saneamento, segurança pública, regularização fundiária), do ponto de vista dessa comunidade podem gerar situações e impasses classificados como conflitos de repercussão duradoura na memória e na subjetividade destas pessoas. Desrespeito, desconsideração, humilhação físico-moral entram em um campo mais amplo de discussão sobre violências. E aqui chega-se a seguinte questão: entrar em conflito por demandas de políticas públicas com segmentos estatais pode tornar-se uma categoria de violência? Essa é uma discussão promovida por movimentos sociais negros no Brasil contemporâneo, desde os fins dos anos 1970, e explicam as violências contra a população negra através da ausência de políticas públicas para essa população. Neste work apresento como essas lideranças quilombolas, em seus sistemas abertos às alteridades, incorporam novas percepções sobre o mundo adequando-os contextualmente a luta local do grupo, construindo uma percepção sistêmica das noções de (e relacionadas às) desigualdades, o estado e as violências. Proponho, também, pensar essa noção nativa de “guerra” como um campo de lutas e mobilizações contínuas e constantes na construção de uma política quilombola em enfrentamento com os segmentos estatais na busca por consideração, respeito e reconhecimento. Estas reflexões são feitas a partir do work etnográfico que desenvolvo atualmente para o Relatório Antropológico de demarcação da comunidade quilombola Família Machado, como uma peça que irá compor Relatório Técnico Identificação e Delimitação, produzido pelo INCRA. E o próprio relatório antropológico nas condições da relação da comunidade com o estado pode virtualmente, também, ser um exercício de desconsideração do grupo?
“Estado forte, povo seguro”?: Estratégias e agência do Estado policial no Amapá
Autoria: José Maria da Silva (UNIFAP - Universidade Federal do Amapá)
Autoria: Com o slogan “Estado forte, povo seguro”, o governo do Amapá fundamenta a política de segurança pública no estado e as ações da polícia, destinadas a combater a criminalidade. Neste work, pretendo examinar etnograficamente como o governo tem colocado em prática o que podemos denominar de Estado policial. Tal fato tem se dado efetivamente por uma política de segurança com forte intervenção policial, de maneira que tornaram-se rotineiras na mídia local notícias de homicídios de indivíduos enquadrados como “bandidos”. Deste modo, as notícias de mortes em intervenções policiais têm sido cotidianas, banais e, portanto, naturalizadas no noticiário local, ao ponto de alguns programas da TV local comemorarem os homicídios, utilizando frases como “mais um CPF cancelado” e “mais um bandido fora de circulação”. O artigo pretende examinar o contexto mais geral em que a polícia tem se tornado uma instituição de forte presença no cenário local, e suas ações legitimadas pelo Estado e pela população, que considera o combate à criminalidade e à violência pela polícia uma forma eficaz e positiva. Para uma análise sobre o contexto amapaense, o artigo procura explorar os seguintes aspectos: i) o noticiário policial e as repercussões das intervenções policiais na mídia; ii) a política e ações de segurança do governo estadual, bem como a concepção de segurança e combate à violência; iii) as ações da polícia militar no combate à criminalidade; e iv) como a população local assimila, concebe e legitima as ações violenta e letais da polícia, com base na premissa de que “bandido bom é bandido morto”. Adiciona-se a esses aspectos, uma percepção positiva da polícia e de suas ações entre a população local. Exemplos disso, são a participação de pesssoas nos projetos sociais e atividades esportivas da polícia, famílias que comemoram aniversários de crianças utilizando a polícia como tema, as manifestações das pessoas em postagens na internet e a criação e ampliação de escolas militares no estado do Amapá. Trata-se, portanto, de uma abordagem que leva em conta não apenas as ações policiais isoladamente, mas um contexto mais geral que concebe, por um lado, a violência como fenômeno social que legitima a polícia no combate à criminalidade – com violação aos direitos humanos – e, consequentemente, a configuração de um estado que elege o uso da força letal como forma de exclusão de pessoas consideradas nocivas ao convívio da sociedade; por outro lado, uma população que concebe a polícia, a disciplina e a autoridade militar como elementos relevantes na conformação de um ethos societário.
“Estar aqui é uma oportunidade”: reflexões sobre as relações de work, direitos, e violências no contexto prisional feminino carioca
Autoria: Luana Almeida Martins (UFF - Universidade Federal Fluminense)
Autoria: A partir de uma pesquisa etnográfica realizada em unidades prisionais femininas no Rio de Janeiro, e acompanhando, fora das unidades, a vida de mulheres que ainda estão privadas de liberdade, mas em regime semiaberto, este artigo tem como objetivo descrever os conflitos decorrentes da divisão de work que pude observar nesses contextos. Previsto na Lei de Execuções Penais como um direito e um dever do condenado, o work dentro das unidades prisionais não contempla a todas e isso gera uma série de implicações nas relações entre as internas nas unidades, tanto entre elas quanto em relação às agentes penitenciárias e à direção da unidade. A partir disso, e dialogando com autores que discutiram as noções de dádiva (MAUSS, 2013), dívida (GODBOUT, 1998), e de reconhecimento, desconsideração e insulto moral (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2004, 2008b, 2018), minha proposta é pensar a divisão do work na prisão não como um direito disponível a todos, mas como uma dádiva, que ao ser negada, poderá gerar atos de desconsideração, que podem ser compreendidos por minhas interlocutoras como atos de violência. Para isso, a reflexão se dará em duas camadas: na primeira, descrevo de que forma uma interna tem acesso à oportunidade de trabalhar e quais conflitos estão envolvidos nisso; na segunda, descrevo os conflitos que são explicitados entre as internas que conquistam a possibilidade de desenvolver funções laborais nas unidades, conhecidas como as da remição ou como as de verdinho, em virtude da camisa verde que uniformiza quem trabalha na cadeia. Assim, meu objetivo é pensar de que forma a distribuição e a divisão do work realizadas por agentes do estado no contexto prisional, se consideradas suas dimensões morais, podem caracterizar processos de exclusão compreendidos como violentos por algumas interlocutoras.
“Linha Dura”, “Mamãezada” e “Pão Doce”: conflitos profissionais e produção do imperativo securitário no sistema socioeducativo do Rio de Janeiro
Autoria: Juliana Vinuto Lima (UFF - Universidade Federal Fluminense)
Autoria: Este work apresentará resultados de pesquisa de tese sobre os agentes socioeducativos do Degase, instituição responsável pela execução das medidas socioeducativas de semiliberdade e internação no estado do Rio de Janeiro. Se discorrerá sobre alguns conflitos cotidianos entre estes profissionais a fim de compreender a centralidade dos procedimentos de segurança em detrimento das atividades socioeducativas em sua jornada de work. A partir da análise de termos nativos mobilizados pejorativamente para indicar a inadequação das ações de determinados colegas de work, espera-se analisar compreensões socialmente partilhadas sobre o que deveria ser a medida socioeducativa de internação segundo diferentes agentes socioeducativos. Categorias como “Linha Dura”, “Mamãezada” e “Pão Doce” sugerem um contexto acusatorial e pretendem personificar as diferenças vistas pelos agentes socioeducativos entre o work de segurança e o de socioeducação. São muitas as diferenças entre o agente “linha dura” e o agente “mamãezada” ou “pão doce”, e um exemplo é a maneira como esses diferentes profissionais definem o uso do tapa na cara do adolescente internado: enquanto para alguns agentes socioeducativos um tapa na cara é um abuso violento, para outros, trata-se de uma ferramenta diária de work, retirando seu conteúdo relacionado à violência. Apesar das diferenças entre o agente “linha dura” e o agente “mamãezada” ou “pão doce” – o que revela a inexistência de um grupo uniforme ou coeso – os conflitos rotineiros entre os mesmos fortalecem o caráter disjuntivo da instituição (MEYER E ROWAN, 1977) e permite que diferentes grupos não compartilhem o mesmo enquadramento (GOFFMAN, 2012) sobre o work que a instituição deve realizar. Tais conflitos cotidianos, que ocorrem em críticas e discordâncias pontuais, não sugerem a existência de desordem, mas, ao contrário, constroem a impressão de homogeneidade que goza a instituição. Isso ocorre porque esses conflitos cotidianos não ganham amplitude, não transformam. Ainda assim, tem grandes consequências para o funcionamento do Degase, já que na prática cotidiana, há a vitória dos agentes “linha dura” no cotidiano das unidades, ainda que esta perca legitimidade nos discursos oficiais. Se concordarmos com Simmel (2011) que os conflitos almejam resolver a tensão entre contrastes, os embates entre agentes socioeducativos que se orientam por diferentes concepções sobre seu próprio work resolvem a tensão entre segurança e socioeducação existente nos centros de internação do Degase. Isto é, tais disputas são parte constituinte da ordem interna existente no Degase, baseada na obviedade com que é vista a centralidade dos procedimentos de segurança e a prescindibilidade com que são vistas as atividades socioeducativas.
“Mulher não precisa de registro”: de invisíveis a tutoras sociais, as trajetórias de mulheres sem documento em busca de identidade, direitos e cidadania
Autoria: Fernanda Melo da Escóssia (Documenta/IFCS/UFRJ)
Autoria: O artigo sintetiza a tese da autora, uma etnografia sobre brasileiros que viveram sem nenhum tipo de documentação até o momento em que buscaram um serviço público e gratuito de emissão de certidão de nascimento instalado em um ônibus na Praça Onze, no centro do Rio de Janeiro. A tese resultou de work etnográfico realizado por dois anos nesse ônibus. O artigo ilumina especificamente um ponto da tese, as trajetórias de mulheres que buscam o ônibus para obter a certidão de nascimento; em diálogo com o conceito de “margens do Estado” proposto por Das e Poole, analisa de que forma essas mulheres se desconstituem como sujeitos ao longo de suas trajetórias desprovidas de direitos. Examina também os motivos que as levaram a buscar a certidão de nascimento e que papel atribuem ao documento na constituição de sua identidade. Mostra ainda o papel central dessas mulheres na busca por documentos para pessoas de sua família ou conhecidos, quando atuam como tutoras sociais e se responsabilizam por esse núcleo familiar. A pesquisa compreende a certidão de nascimento como resultado de um rito de instituição, em diálogo com Bourdieu, e problematiza as capacidades atribuídas ao documento pelos usuários, numa busca que é não só por um papel, mas também por direitos, cidadania e recuperação da própria história. A tese foi defendida em abril de 2019 no CPDOC (Centro de Pesquisa e Documentação em História Contemporânea do Brasil) da Fundação Getulio Vargas.
“Por que não podemos ser mães?”: tecnologias de governo, maternidade e mulheres com trajetória de rua
Autoria: Caroline Silveira Sarmento (UFRGS - Universidade Federal do Rio Grande do Sul)
Autoria: Este work se dedica a refletir sobre as formas de gestão estatal dos corpos das mulheres com trajetória de rua, em específico no que se refere à maternidade, momento no qual operam práticas de saúde, a partir do pré-natal, que colocam essas mulheres em um lócus de visibilidade e cuidado. Refiro particularmente à saúde como área que concentra esforços de atenção quando uma mulher em situação ou com trajetória de rua engravida, para que ela realize o pré-natal e o faça de forma eficiente: comparecer em todas as consultas, fazer os exames, cessar ou reduzir o uso de álcool e outras drogas - dependendo da abordagem do serviço em questão, se atua na lógica de abstinência ou de Redução de Danos -, “organizar-se” (sobretudo deixar de fazer do espaço da rua sua moradia) e estruturar sua vida para receber a vida que está a caminho. Em determinados momentos surge a ideia de que aquele bebê que está a caminho é um ser inocente cujo período pré-nascimento demanda cautela e prudência, além de vigilância sobre o corpo gestante. Tais narrativas agem não somente em uma dicotomia inocente (bebê) versus culpada (mãe) mas também são permeadas por noções morais, que avaliam e estabelecem um padrão, um “tipo” ideal de mãe e discursos homogeneizantes de maternidade, de família e de infância. Nesse sentido, a presente pesquisa - que se trata de dissertação de mestrado recentemente concluída - busca compreender as disputas discursivas em torno dos argumentos sobre a possibilidade de uma mulher com trajetória de rua manter ou não a guarda de seu filho. E, ainda, analisar as interpretações das normativas que embasam essas práticas, permeadas por moralidades, e efeitos disso para o debate público, para as mulheres e para o Estado. A partir da etnografia iniciada em 2015 com um grupo de pessoas em situação de rua, tive acesso a várias narrativas sobre o afastamento compulsório de mulheres mães de seus filhos. No campo do mestrado me dediquei a ouvir os diferentes atores do Estado envolvidos na questão realizando entrevistas com: Ministério Público, Juizado da Infância, Conselho Tutelar, Abrigo, Hospital, Serviço de Abordagem e Centro de Referência Especializado para Pessoas em Situação de Rua. Busquei e analisei documentos normativos mobilizados (ou não) pelos agentes estatais como justificativa para a decisão sobre a tutela de crianças filhas de mulheres com trajetória de rua. O aporte teórico se concentrou nas tecnologias de governo, interseccionalidades, gestão das infâncias, de família e de maternidades.
CRIANÇAS E ADOLESCENTES NO NARCOTRÁFICO: reflexões sobre o work infantil
Autoria: Tarsila Amoras Sanches (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional)
Autoria: Este work é parte de uma pesquisa maior, em andamento, que discute o envolvimento de crianças e de adolescentes no sistema do narcotráfico e sua relação com o work infantil. Objetiva situar, neste texto, o debate acerca do sistema do tráfico de drogas como um dos responsáveis por girar o mercado mundial que conecta as fronteiras materiais existentes. Entende-se pertinente essa discussão porque, apesar da lógica legal de que o narcotráfico é uma ação criminosa, diferencia-se do tráfico atacadista do tráfico varejista que está mais presente no dia a dia das periferias urbanas, move as relações sociais e até mesmo gera emprego para os moradores. Essas periferias urbanas estão à margem das grandes cidades e expõem as contradições de classes sociais. É importante localizar, nesse cenário, quem são e onde estão as crianças das periferias, atingidas diretamente por escolas extremamente precarizadas e sem direito a lazer. Infere-se que, muitas delas, impactadas pela situação emergencial de suas famílias, são pressionadas a conseguir renda e buscam, na rua, uma forma de colocar comida na mesa. Sob a falsa ideia de que o dinheiro do tráfico é certo, fácil e rápido, envolvem-se com o tráfico de drogas, aquele com maior atuação no seu meio social. Segundo o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), essas crianças que estão no sistema do narcotráfico não têm sua situação vista como work infantil, e sim como ação criminosa, assumindo o papel de menores infratores. Entretanto, a OIT (Organização Internacional do work) por meio da convenção nº182 classifica o tráfico de drogas como uma das piores formas de work infantil. E apesar do não reconhecimento pelo ECA, a forma de organização das facções criminais reflete disciplina e hierarquia capazes de criar postos de work também para as crianças, que muitas vezes se tornam sujeitos fundamentais. Assim, em um contexto de instabilidade econômica e de aumento da violência urbana, com crescimento de milícias, é de urgência analisar qual a relação das crianças e dos adolescentes com o tráfico de drogas. As reflexões, portanto, aqui apresentadas, resultam da pesquisa ora mencionada, a qual desenvolve-se por meio do work de campo de cunho etnográfico com crianças e adolescentes internados nas Unidades Socioeducativas no município de Belém, levantamento bibliográficos e documentais, além de entrevistas, considerando o caráter de uma construção colaborativa, dialógica e polifônica (CLIFFORD 1998), a partir do reconhecimento dos personagens existentes e desta forma, têm contribuído para iluminar o percurso metodológico, mirando a compreensão de quem são esses sujeitos, como eles se veem, como explicam o que fazem e que perspectivas alimentam.
Política da conveniência: uma análise sobre segurança privada no espaço público.
Autoria: Carolina Krugel Marques (UFF - Universidade Federal Fluminense)
Autoria: Na Universidade Federal Fluminense atuam diferentes profissionais, dentre eles vigias e vigilantes patrimoniais. Procuro aqui explicitar como se relacionam essas duas categorias de agentes de segurança terceirizados entre si, com o público, a polícia e quais funções se dão no cotidiano do work. O ethos militar incorporado em suas práticas e principalmente em seus discursos implicam na falta do poder de polícia e respalda suas relações não na discricionariedade ou treinamento para a situação pela empresa ou instituição, mas em relações informais e de conveniência que norteam a dinâmica de work e administração de conflitos. Acordos e atribuições informais são ensinados pelos agentes mais antigos e vão se reformulando conforme cada contexto, como supervisão de outros funcionários e controle de faltas. Falas que se referem a noções sobre o que significam ordem, disciplina e bom funcionamento do espaço projetam e reproduzem uma lógica que consolida modos de pensar e agir, ou de não agir, conforme o que é conveniente. Disputas sobre espaços que deveriam ser igualitários mas não são exacerbam forças dominantes, representadas no work dos agentes em contraposição a forças oprimidas e desigualadas que dependendo de uma estética, possuem tratamento diferenciado. Ao analisar noções de segurança acionadas, verifica-se que vigias e vigilantes estabelecem sua organização hierárquica principalmente através da arma de fogo, símbolo que atribui o poder coercitivo ao vigilante e leva-o a se portar de uma maneira distinta para o vigia e para com o público, sendo capaz de lidar com a situação de “risco real”. Além do armamento, nas vestimentas e equipamentos se imprimem signos semelhantes aos da polícia, e em suas práticas tomadas de decisões galgadas em moralidades, sendo a polícia militar a alternativa acionada para emergências as quais fogem das atividades do vigilante. Os resultados desta pesquisa, que refletem sobre o ethos militar incorporado pelos agentes através da prática policial, dos acordos informais que estabelecem relações de conveniência no espaço público e consolida o work, dos territórios e comportamentos que promovem, uns mais vigiados do que outros, e onde os comportamentos individuais vão se adequando, permitindo uma disciplina comportamental de acordo com os mesmos, traçam a ordem da administração pública, seus mecanismos de autoridade e poder coercitivo sobre certos indivíduos que promove uma política da conveniência, baseada na tolerância, ou não, dependendo do que for melhor para o agente, não pretendem apresentar verdades concretas, mas sim compreender as complexidades e subjetividades das relações de poder, controle e negociação na política das relações e suas influências representativas e simbólicas.
“Aquela chuva de bala linda”: comemoração e espetáculo midiático da violência policial no Amapá
Autoria: Jade Figueiredo Costa (UNIFAP - Universidade Federal do Amapá)
Autoria: Este work tem por objetivo analisar como as mortes ocasionadas em ações da polícia militar são comemoradas nos programas policiais da TV no Amapá. Este fato tem sido comum nesses programas, com base na ideia de que a polícia, em ações de combate à criminalidade, elimina mais um “bandido”. Uma dessas comemorações denomina-se a “dança da cova”, na qual o apresentador, após a reportagem sobre indivíduo morto pela polícia, fazia uma dança anunciando que mais um “bandido” estava indo pra cova. Ao comemorar a abordagem violenta da polícia, o apresentador afirma: “aquela chuva de bala linda”. Pretendo analisar as comemorações das ações policiais como espetáculo midiático e sensacionalista dos programas de televisão local. As perguntas do work são: 1- por que a polícia é louvada por ter uma abordagem violenta? 2 – A comunidade recebe com qual olhar esse espetáculo midiático? Através dessas indagações, busco entender de que forma a mídia se utiliza de mecanismos extravagantes para legitimar as abordagens violentas da polícia do Amapá. A metodologia deste work consiste em elaborar uma etnografia, na forma de pôster, sobre os programas policias da TV local, bem como dos comentários das pessoas nas páginas dos programas na internet. Pretendo analisar como as mortes são veiculadas como notícias e comemoradas, assim como, a partir dos comentários, abordar como a população recebe as notícias de mortes de pessoas consideradas criminosas. A finalidade do work é analisar como a violência da polícia se transforma em espetáculo midiático no noticiário televiso local, assim como na internet.