GT 80. Transições democráticas e controle social: repensando marcações temporais

Coordenador(es):
Liliana Sanjurjo (UERJ - Universidade do Estado do Rio de Janeiro)
Taniele Cristina Rui (UNICAMP - Universidade Estadual de Campinas)

Sessão 1 - Ditadura, Políticas de Memória e Reparação
Debatedor/a: 
Desirée de Lemos Azevedo (Unifesp)

Sessão 2 - Transição Política, Direitos Humanos e Desigualdades
Debatedor/a: Adalton Jose Marques (UNIVASF - Fundação Universidade Federal do Vale do São Francisco)

Sessão 3 - Democracia, Sistema Prisional e Controle Social
Debatedor/a: Fábio Mallart (UERJ - Universidade do Estado do Rio de Janeiro)

O GT pretende reunir etnografias e pesquisas históricas que constroem delineamentos acerca de transições democráticas, desafiando marcações temporais convencionadas e preferindo tomá-las como problema de pesquisa. Como explicação a priori, o binômio democracia/ditadura, muitas vezes, impede-nos de pensar a respeito dos processos que ajuda a descrever e dos problemas que é capaz de ocultar em nossas pesquisas. Nesse sentido, a proposta visa colocar em debate trabalhos, de caráter conceitual e/ou de diferentes recortes empíricos, para provocar reflexões imprevistas em torno do mesmo problema teórico-político. Sem limitar os campos de investigação que poderão ser acolhidos, nos interessam trabalhos que problematizem questões como: 1) as implicações das leis de anistia e os silenciamentos impostos a atores sociais que sofreram violências durante a vigência de regimes ditatoriais, assim como a recepção de suas lutas reivindicativas de memória, verdade e justiça em democracia; 2) o caráter ambíguo de políticas humanitárias transicionais adotadas por países periféricos; 3) construções de fronteiras e distinções entre crime político e crime comum, e/ou entre segurança nacional e segurança pública, como mecanismos de controle social; e 4) a mobilização da guerra às drogas e a expansão penal como dispositivos centrais de combate às ilegalidades e controle das populações pobres (majoritariamente não-brancas) em democracia.

Palavras chave: Antropologia da Política; Violência; Humanitarismo
Resumos submetidos
A democracia como problema de polícia. A noção de segurança pública como fronteira entre governança humanitária e violência de estado na São Paulo da redemocratização.
Autoria: Evandro Cruz Silva (CAPES)
Autoria: Esta apresentação tem como objetivo entender as diferentes perspectivas que produziram os sentidos da expressão “segurança pública” na redemocratização brasileira. Teremos como centro da atenção o período entre 1982 e 1989, tempo de transição entre a ditadura militar e a nova democracia liberal no país e que se tornou palco das disputas pela separação entre violências de estado tidas como legítimas e ilegítimas por parte de seus aparelhos de polícia. Tomaremos como objetos de análise três processos distintos e suas relações: A assinatura de protocolos humanitários internacionais para controle da violência por parte dos governos do estado de São Paulo, a expansão de programas de rádio que difundem uma reclamação pública por uma polícia mais violenta como solução para mais uma crise de segurança e as notícias acerca do retorno de grupos armados autônomos para a eliminação sumária de pessoas, os chamados “justiceiros”. Desta maneira, analisaremos a criação de uma noção de segurança que coloca em convivência uma vontade política de alinhamento a parâmetros internacionais de governança humanizada, a formação de um público cativo do discurso da violência policial e a existência de grupos para execuções paralegais. Tomando como definição de antropologia da violência a presente em Spencer (2006) como “a kind of mapping of the different moral and aesthetic evaluations people in different contexts make of their actions on the bodies of others.” argumentamos aqui que a análise de tais processos e suas relações nos permitirá identificar parte dos mecanismos de normalização moral e estética da violência letal da polícia do estado de São Paulo. Esta normalização passa pela criação de uma noção de segurança pública que consegue convergir por um lado a tendência internacional de governança humanitária típica dos finais da guerra fria (Fassin 2001b) e por outro a manutenção de técnicas de “governo indireto privado” (Mbembe 2001) advindos da ditadura militar. A convergência destas técnicas aliam a produção constante de violência de Estado com a ampla difusão em veículos populares de discursos de aprovação de tais práticas. Propõe-se aqui que tais processos criam uma noção de segurança pública que funcionará como fronteira entre o universo dos direitos pretendidos pela razão humanitária e o universo da violência de estado pretendidos pelos discursos de endurecimento policial e pela aplicação da violência para além das amarras dos direitos humanos.
A narrativa chave dos "direitos humanos" na construção de políticas públicas carcerárias para "populações específicas": notas introdutórias sobre o contexto paulista
Autoria: Roberta Olivato Canheo (UFF - Universidade Federal Fluminense)
Autoria: Com a proposta de apresentar alguns dos primeiros achados de minha pesquisa de doutorado em andamento, este artigo se debruça sobre a multiplicidade de atores envolvidos na construção de políticas públicas para mulheres e pessoas LGBT presas ou egressas do Sistema Penitenciário em São Paulo, a partir do acompanhamento de eventos públicos e reuniões de representantes de secretarias, órgãos e aparelhos públicos (como a Secretaria de Administração Penitenciária, especialmente por meio da coordenadoria de políticas específicas e da coordenadoria de reintegração social; Defensoria Pública do Estado; Centros municipais de Cidadania LGBTI+; Secretaria de Justiça e Cidadania, dentre muitos outros). Tais reuniões, realizadas mensalmente desde o segundo semestre de 2019, reúnem atores institucionais empenhados na implementação de uma CAEF (central de atenção ao egresso e família) voltada especificamente para mulheres e pessoas LGBT presas, bem como na elaboração de outras políticas voltadas para tais "populações". Por meio desse acompanhamento, somado à análise documental de normativas, relatórios, etc., busco refletir sobre os processos de Estado que levaram à constituição de pessoas LGBT privadas de liberdade como novos sujeitos políticos de direitos em um contexto entendido por democrático; quais as técnicas de governamentalidade - construídas por feixes múltiplos de agências, agentes e documentos - presentes nesses processos. Procuro também pensar sobre como "presídios seguros", alas ou celas específicas, ou a histórica reunião de acusados por crimes sexuais e pessoas LGBT nos mesmos presídios, passam a ser produzidos pela narrativa de um território seguro, alinhado aos "direitos humanos" na atualidade, em que a materialização desses espaços se dá então por meio da produção discursiva de um sujeito situado e legítimo, invariavelmente oprimido e vitimizado, cuja vida está em permanente risco e cuja preservação da integridade física não depende só de si. Nesse sentido, chama atenção a conjugação fundamental entre aquilo que é enunciável sobre “direitos humanos”, “políticas públicas para grupos vulneráveis”, “funcionalidade do sistema carcerário” e “espaço social” no processo de construção histórica de demanda por esses espaços e por essas políticas. A essa narrativa chave dos direitos humanos, pensando especialmente o contexto de pós “redemocratização”, contrapõem-se as condições estruturais dos presídios, a alocação no seguro, o encarceramento em massa; condições que demonstram as contradições fundamentais de um "Estado” que constrói progressistas políticas públicas, e ao mesmo tempo produz concretamente nas carnes e corpos lugares de abjeção. 
Continuidades sistêmicas entre ditatura e democracia: um olhar a partir de mortes por intervenção policial na cidade de São Paulo
Autoria: Bruna Augusta Mattos Ramachiotti (Tribunal Regional do work)
Autoria: Este work apresenta uma discussão acerca do caráter constitutivo do arbítrio policial na fabricação e manutenção da ordem social. A partir da leitura e análise de boletins de ocorrência, inquéritos policiais e processos judiciais registrados como "resistência seguida de morte" na cidade de São Paulo em 2012, bem como de notícias divulgadas em mídia impressa e eletrônica acerca do grande número de chacinas ocorridas naquele ano, cujas características remontam à atuação de grupos de extermínio formados por policiais, pretende-se discutir as continuidades sistêmicas do controle social realizado em períodos autoritários e democráticos. Confrontando os casos de atuação dos chamados esquadrões da morte nos anos 1960 e 1970, bem como de mortes em supostos confrontos realizadas pela Rota nos anos de 1970 e início dos anos 1980 com aqueles da chamada "crise" de 2012, buscar-se-á demonstrar que o respaldo institucional à ação violenta de agentes da ordem não se trata apenas de uma herança autoritária. Ao contrário, apoiado em uma literatura transnacional acerca do tema (Neocleous(2000); Bonner et. al (2018); Seri e Lokaneeta (2018), dentre outros), o argumento aqui desenvolvido é o de que a polícia age por soberania delegada, com a finalidade de manutenção da ordem, donde sua ação tem como premissa o arbítrio, inclusive nas democracias mais consolidadas. Logo, entre ditadura e democracia há uma continuidade sistêmica em que instituições como o judiciário são parte de uma engrenagem sociotécnica e sistêmica que vai codificar a ação policial em termos legais, legitimando-a.
Mães paridas por seus filhos: O Movimento Mães de Maio frente à "democracia das chacinas"
Autoria: Matheus de Araújo Almeida (USP - Universidade de São Paulo)
Autoria: Os Crimes de Maio são considerados o maior massacre da história recente brasileira, com 494 pessoas assassinadas entre 12 e 20 de maio de 2006, das quais cerca de 122 possuíam traços de execução sumária por grupos de extermínio ligados a policiais, ex-policiais e agentes de segurança. Os ataques se deram em mais de 60 municípios paulistas, em regiões predominantemente periféricas, além de postos policiais e pontos comerciais, em que 59 agentes da polícia foram mortos. A contagem oficial de assassinatos, no entanto, aponta para 493 mortos e é colocada em questão pelos familiares das vítimas, que afirmam que nem todas as mortes foram contabilizadas pelo Estado. Este é o caso de Ana Paula Gonzaga dos Santos, que foi executada com nove meses de gravidez, no dia anterior à data marcada para o nascimento de sua filha, juntamente com seu marido. Vera Lúcia Gonzaga dos Santos, mãe de Ana Paula e avó de Bianca, juntamente com outras Mães de Maio, reivindicam que sua neta seja reconhecida como a vítima 494. Além disso, as Mães afirmam que pode haver “um número ainda maior de assassinatos no período, considerando ocultações de cadáveres, falsificações de laudos e outros recursos utilizados por tais agentes públicos violentos” (MÃES DE MAIO, 2011, p. 19). Diante deste cenário, as Mães se (re)conheceram, se uniram e passaram a se organizar como “uma rede de Mães, Familiares e Amig@s de vítimas da violência do Estado Brasileiro (principalmente da Polícia), formado aqui no estado de São Paulo a partir dos famigerados Crimes de Maio de 2006” (idem, p. 20). Foi o luto das mortes de seus filhos que serviu/serve de combustível para o engajamento das Mães na luta contra a estrutura social que levou à morte de seus filhos. "Do luto à luta" se tornou o lema chave do Movimento Mães de Maio, que enfrenta constantemente a perpetuidade dos atos violentos cometidos pelo "terrorismo de Estado" que demarcam a presente "democracia das chacinas". Seguindo os passos das Mães, busco identificar quais são suas categorias significativas e relações atuantes na constituição e continuidade do Movimento Mães de Maio, de modo a priorizar não o que venha a ser "luto" ou "luta", mas como se dá e quais as implicações da passagem "do luto à luta" operada por estas Mães. Em seguida, aproximo-me analiticamente destes elementos identificados utilizando algumas contribuições da Antropologia da Política em diálogo com searas antropológica como a morte, o parentesco, a memória e o urbano, entre outras. Desta maneira, a presente comunicação se debruçará sobre diversas questões, a exemplo de: como o luto se transforma em luta? O que e como ele implica no Movimento? Como estas Mães lidam com os territórios associados às memórias de seus filhos? O que a memória passada dos filhos cria no presente?
Memórias disciplinares embargadas, “cidades “da ditadura” e a política habitacional brasileira como política de consentimento, 1964-1974
Autoria: Igor Vitorino da Silva (capes)
Autoria: Nesta apresentação oral, discutimos como parte da literatura que se dedica à política habitacional brasileira comunga uma memória disciplinar, nascida da militância de seus produtores em oposição ao regime autoritário, destacando como esta ainda hoje vigora como efeito de verdade naquele campo de conhecimento em relação à compreensão daquela política pública no contexto dos governos militares. Além disso, realçamos como as transformações no cotidiano impostas pela crise da ditadura militar (1974-1985) alimentaram ou uma maneira de interpretar o passado imediato (ditadura militar, o milagre brasileiro), compartilhada especialmente pelos militantes políticos e suas vítimas, o que embargava, de certa maneira, a enunciação, voluntária ou não, de positividade em relação àquele, minimizando, em tom de manipulação, má-fé e superficialidade, suas tentativas de produção de consentimento e legitimação. Dado o intenso processo de fragmentação e dispersão do conhecimento histórico, assim como a escassa valorização no debate público das produções historiográficas, essas memórias disciplinares são continuamente retomadas em works acadêmicos, configurando imaginários profissionais e pessoais, em torno do lugar dessas políticas no Regime Militar enquanto desvios, corrupção e imbróglio político ou meramente funcionalidade do processo de modernização. Tal situação grava-se quando, também, toda política editorial desses campos de conhecimentos nos quais essas essas memórias circulavam : livros, revistas, assim como intervenções públicas e celebrações de registros autobiográficos e institucionais. Entretanto, enquanto fonte histórica dos períodos em que foram produzidas e discursos registrados registros discursos de sujeitos que foram ou não beneficiados pelas políticas sociais estas podem colaborar para que o historiador recolha ou pince depoimentos e informações que apontem a contrapelo dos objetivos enunciados por boa parte daquela literatura especializada a importância das políticas sociais na configuração da vida cotidiana do Regime Militar, assim como as preocupações – reais e imaginárias – dos governos militares em administrarem a questão social. De fato, ao buscarem desenhar as condições das políticas públicas militares tendo como foco o levantamento de suas contradições e a crítica apropriação privada dos seus benefícios, essa literatura especializada acabou, também, desenhando, mesmo sem perceber ou ter como objeto, por meio através de enquetes, diários de campos, entrevistas e arquivamentos de textos e jornais - como os das pessoas comuns que construíam suas vidas e buscavam produzir previsibilidade num contexto de transformação social e econômica, o que não será abordado profundamente neste momento.
Narrativas e condenações criminais: a construção de associados e traficantes em acórdãos criminais.
Autoria: Michel Cícero Magalhães de Melo (OAB)
Autoria: A presente proposta analisa a construção de duas categorias nos acórdãos criminais do judiciário fluminense: associados e traficantes. Estes acórdãos são fruto da produção judicial dos desembargadores que compõem as Câmaras Criminais, que na atualidade se constituem em oito câmaras, no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. A ideia central que busco discutir é como através de um fluxo de narrativas que são produzidas por diversos atores do “sistema” de justiça criminal se permite conectar narrativas que possibilitam a sujeitos determinados serem construídos como associados e traficantes. Quem são esses sujeitos? Quais fatores o condenam? Como o arcabouço jurídico é usado para construir tais condenações? Em tempos de acirramento das disputas em torno das configurações do sistema penal, vale lembrar o recente pacote anticrime, é urgente analisar como as condenações foram e são realizadas pelo judiciário. Os crimes tipificados pela legislação de drogas, Lei n. 11.343/06, correspondem hoje a um dos principais fatores de encarceramento, e de, justificava para operações/execuções policiais. Colocar na pauta do dia a análise dos dispositivos e mecanismos de poder que inserem marcas e números em sujeitos através dos processos é lidar não só com uma das principais mazelas que afligem negros, pobres e periféricos no Brasil atual mais também romper com uma lógica sistêmica de que punir é a solução para os nossos conflitos. Afinal, para quê(m) o nosso judiciário vem sendo tão produtivo?
O “clima de abertura” como modulador sentimental da transição da ditadura militar (1974-1985)
Autoria: Paulo Rodrigues Gajanigo (UFF - Universidade Federal Fluminense)
Autoria: O período de transição da ditadura militar (1974-1985) foi um longo processo centralizado e marcado por medidas reticentes de liberalização. Seu marco inicial foi a redução, após a chegada de Geisel à presidência, da censura da mídia, tendo como consequência um lento alargamento da esfera pública. Nesta comunicação, trataremos de como esse processo de alargamento da esfera pública foi realizado com a tentativa de controlá-la por meio do estabelecimento de um novo clima político. Com base na pesquisa sobre as evocações de um “clima de abertura” em jornais de grande circulação tanto por parte do governo como da oposição, argumentamos sobre a relevância que a configuração de um clima do debate político teve para a construção de uma transição lenta, gradual e controlada. Apontamos para a consideração do aspecto afetivo e ambiental dos estudos sobre esfera pública, discussão que se apoia tanto no recente campo de estudos que tem tomado as noções de humor e atmosfera (mood studies) como objetos de pesquisa das ciências sociais quanto nas críticas que apontam para o aspecto excludente do conceito de esfera pública habermasiano. A constituição de um clima, para o governo, serviu como espaço de educação afetiva com o objetivo de que, ao final da transição a considerada radicalidade dos movimentos sociais e partidos políticos se reduzisse. Nesse sentido, entendemos “clima” ou “atmosfera” da esfera pública como elemento importante para pensar acesso e marginalização dos sujeitos políticos pela imposição de barreiras sentimentais, bem como para compreender dispositivos e mecanismos antidemocráticos internos à esfera pública.
Os usos da categoria de “presos políticos” nos documentos de denúncia produzidos por militantes encarcerados na ditadura
Autoria: Lucas Pedretti Lima (UERJ - Universidade do Estado do Rio de Janeiro)
Autoria: A comunicação pretende refletir sobre os usos dados pelos militantes da luta armada presos durante a última ditadura militar brasileira (1964-1985) para a noção de “presos políticos”, a partir da análise de três documentos produzidos nos cárceres do regime: Livro negro da ditadura (1972), A repressão militar-policial no Brasil (1974/1975), e Bagulhão (1975). O texto apresenta resultados parciais de minha pesquisa de doutorado, e o recorte analítico para este artigo buscará restringir a análise à forma pela qual, nesses documentos, os militantes estabelecem fronteiras entre o “preso político” e o “preso comum”. Frente às acusações de que os militantes eram “terroristas”, tais documentos se dedicam a construir a noção do “preso político” de maneira corresponde a uma série de outras qualificações, como “resistentes”, “revolucionários”, “combatentes” e, mais raramente, “vítimas”. Por outro lado, elaborados em um contexto de violência estatal contra outros indivíduos – os cárceres onde também ficavam os “presos de direito comum” –, os registros operam também criando uma segunda distinção, entre diferentes categorias de atingidos pela violência. Nesse quadro, é reforçada uma distinção entre “presos políticos” e “presos comuns” que corresponde à clivagem entre “resistentes” e “marginais”. O argumento central do work é que esta análise permite elaborar uma pré-história da luta por direitos humanos e por memória, verdade, justiça e reparação no Brasil. E por que uma pré-história, mas não uma história propriamente dita? Porque, como notado por Heloísa Greco, tais publicações não mobilizam a “gramática dos direitos humanos” que marcará a atuação de familiares de mortos e desaparecidos políticos e de ex-presos políticos que se tornará mais intensa na segunda metade dos anos 1970 e, de forma mais explícita, no contexto da luta por uma anistia ampla, geral e irrestrita. Nesse sentido, busca-se entender como a produção dos próprios militantes da luta armada sobre a violência que o regime imprimia contra eles foi fundamental para a conformação dos enquadramentos que posteriormente seriam amplamente mobilizados ao longo da transição para o regime democrático. O work busca colaborar com discussões que vêm se desenvolvendo após o work das comissões da verdade no Brasil, e que tem como preocupação fundamental a reflexão crítica sobre as lutas e as políticas de memória estabelecidas no pós-ditadura. Diversos works têm demonstrado como esse campo da memória, verdade, justiça e reparação reproduz os efeitos de desigualdades e clivagens sociais, raciais e de classe. Nessa chave, pode-se compreender melhor as condições que levavam os militantes a narrar sua experiência de violência como algo particular, bem como enxergar os efeitos dessas narrativas.
Outro estudo sobre o terror e a cura: saúde mental, direitos humanos e as políticas públicas de reparação aos afetados pela ditadura civil-militar
Autoria: Felipe Sales Magaldi (UFRJ)
Autoria: A partir da década de 90, começaram a surgir as primeiras políticas públicas de reparação aos atingidos pela violência perpetrada durante a ditadura civil-militar no Brasil (1964-1985). No entanto, tais políticas coincidiram basicamente com a oferta de compensação econômica (indenizações) por parte do Estado, gerando uma série de controvérsias internas e externas ao movimento. Na década seguinte, concomitantemente ao estabelecimento de governos progressistas na região, e em consonância com os tratados internacionais de direitos humanos, se consolida a preocupação de exigir uma "reparação" que seja “não apenas econômica", mas também "simbólica", “psicológica", "moral" e/ou "integral". Este work procura compreender como os atores sociais, discursos e práticas do campo da saúde mental – e, em especial, da psicanálise – se articularam a essa mudança, que ganhou forma na criação de dispositivos clínico-políticos e estatais de atenção psicossocial destinados a familiares e sobreviventes. Para tanto, suscita material referente a uma pesquisa em andamento, a qual inclui acompanhamento de atividades públicas, entrevistas e investigação de relatórios e documentos relativos ao tema. Em particular, pergunta-se como (e até que ponto) as noções específicas de “trauma” e “testemunho” operaram nesse campo como ferramentas de flexão de binômios como indivíduo/sociedade, Estado/Sociedade civil e a própria demarcação temporal ditadura/democracia, redefinindo a conceituação de “vítima” da ditadura civil-militar.
Quarenta anos contra uma outra história: “demonização” e “afetividade” no campo de batalhas carcerário brasileiro
Autoria: Fabio Magalhães Candotti (UFAM - Universidade Federal do Amazonas)
Autoria: No dia 10 de fevereiro de 2020, em dezenas de bairros de Manaus, ouviram-se longas sequências de fogos de artifício. Embora a data marcasse 40 anos do Partido dos Trabalhadores (PT), comemorava-se outro acontecimento: uma reconfiguração das alianças de coletivos do crime, com adesão quase total ao Comando Vermelho (CV). No mais importante presídio masculino da cidade, alguém discursava: “Nós tinha tudo e acabamos praticamente com nada… Ninguém está ganhando nada com a guerra, ao contrário… Nem energia a gente tem, que é um direito nosso”. A fala expressa mais uma “união” contra situações insuportáveis dentro das prisões brasileiras. Junto com os fogos, expõe, também, a centralidade do sistema carcerário para a história recente das cidades brasileiras. O work proposto retoma uma problematização histórico-antropológica sobre deslocamentos micropolíticos na “transição” macropolítica da ditadura para a democracia no Brasil. Há dez anos, o intuito era entender como a emergência de um discurso em defesa da “participação” dos “trabalhadores” na política institucional, alicerce da fundação do PT, conectava-se à invenção de um novo inimigo das forças de repressão do estado: os “bandidos” coletivamente “organizados”. Invenção apoiada, desde o início, numa narrativa que traçou a genealogia do CV como filho da convivência entre “presos políticos” e “presos comuns” durante a ditadura. Em 1991, um preso contava outra história: que essa relação, muito mais antiga, foi rompida justamente pelos autodeclarados “presos políticos” dos anos 1970; que o CV foi um nome criado, em 1979, pelo próprio sistema repressivo, carente de um inimigo que justificasse sua existência; que esse nome era parte de um processo de “demonização” de presos, egressos e foragidos; enfim, que a união de “presos comuns” era algo “que não poderia ser destruído facilmente” pois sustentava-se na “afetividade”. Agora, em 2020, com um representante da tortura carcerária e policial na presidência do país, este work propõe-se a levar a sério o autor dessa narrativa soterrada – William da Silva Lima, falecido em 2019, aos 76 anos, cumprindo pena em regime aberto – para ajudar a responder uma pergunta: o que acontece com a história do presente brasileiro quando colocamos o campo de batalhas carcerário e seus saberes como referencial? Apenas como hipótese, pretendo analisar a “demonização” de “bandidos” e a “afetividade” carcerária como dois acontecimentos intimamente relacionados e cujas durações envolveram processos de intensificação progressiva. O primeiro atualizou uma gestão colonial da morte pelo agenciamento da distinção entre “trabalhadores” e “bandidos”. O segundo colaborou numa ampla problematização ética sobre “respeito” e “liberdade” que se situa na fronteira entre “work” e “crime”.
Um corpo sem reparação: a tortura a um menino dominicano nos anos 1960 e a temporalidade dos esquecidos
Autoria: Victor Miguel Castillo de Macedo (UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro)
Autoria: O presente work analisa o caso da pessoa mais jovem torturada pelo governo dominicano em 1968. A análise desse caso faz parte da minha pesquisa de doutorado sobre revolucionários, ex-combatentes da Revolução de Abril de 1965 em Santo Domingo, na República Dominicana. Em minha etnografia eu acompanho o dia a dia da Fundación de Solidaridad con los Héroes de Abril – FUSHA e suas lutas por reconhecimento e reparação. Durante a pesquisa conheci pessoalmente o senhor que ainda era uma criança quando foi torturado pelo serviço secreto do governo de Joaquín Balaguer (1966-1978). Sua história – comentada nos jornais da época – levanta um problema para o entendimento atual do que foi a revolução: se para muitos dos ex-combatentes ela foi bem sucedida, e hoje é até reconhecida pelo governo dominicano como uma efeméride pátria, parte desta história ficou legada ao silêncio ou ao esquecimento. A transição democrática esperada pelos revolucionários se transformou em 12 anos de tirania, mesmo tendo sido chancelada por uma eleição. Entre os primeiros achados da pesquisa está a reflexão a respeito de corpos e experiências passíveis de esquecimento e abandono. Compreendo a revolução como um evento crítico que produz suas próprias linhas temporais na vida de pessoas deixadas de lado pela narrativa oficial e pelo apoio do Estado (sem receber pensões ou reconhecimento). Por outro lado, o work associativo da fundação opera um tipo de reparação de base – dependente de ajuda de doadores e/ou outros combatentes – da qual a reprodução das memórias em redes sociais e a produção de certificados de heroísmo, são as principais atividades. O caso analisado traz a chave temporal dos efeitos imediatos do pós-Revolução de 1965 e a transição novamente ao autoritarismo. O homem em questão era filho de uma das lideranças populares da revolução e foi perseguido e torturado até meados dos anos 1970, quando finalmente foi exilado para a Europa. Em seu retorno ao país no anonimato já como músico e poeta, sequer foi reconhecido ou procurado pelas autoridades. Na história deste senhor encontram-se fragmentos comuns à maior parte de civis afro-dominicanos de baixa renda que participaram da revolução. É através dela, que pretendo delinear como, passados 55 anos, diversos tipos de violência se proliferam em suas vidas esquecidas e silenciadas.
Vidas Atravessadas pelo Cárcere – Raça, Gênero e Segurança Pública no Rio de Janeiro
Autoria: Fabíola Cordeiro (NESEG / PPGSA / UFRJ)
Autoria: Este paper analisa resultados preliminares de uma pesquisa sobre os impactos do encarceramento massa sobre as vidas de mulheres que vivenciam ou vivenciaram a prisão, como prisioneiras e/ou visitantes de unidades prisionais no estado do Rio de Janeiro, entre os anos de 2009 e 2019. Os dados apresentados foram coletados por observações etnográficas dentro e no entorno de prisões fluminenses e por entrevistas em diferentes momentos do período histórico analisado. A partir das trajetórias sociais das participantes da pesquisa e de sua relação com distintos dispositivos repressivos e punitivos de Estado, busca-se demonstrar múltiplos efeitos da política de “Guerra às drogas” e da crescente militarização da vida nas favelas e periferias fluminenses, apontando para práticas e lógicas socioculturais locais que refletem e repercutem processos em diferentes escalas. A atenção aos fluxos particulares, mais ou menos institucionalizados, da relação entre essa população e os agentes estatais permite apontar imbricamentos e porosidades entre distintos territórios e a prisão. Nesse sentido, as narrativas dessas mulheres apontam para a concretude de práticas e discursividades estatais enquanto tecnologias de gestão da vida orientadas por uma lógica racista e misógina, levando a um processo contínuo de criminalização, extermínio e acautelamento de pessoas negras e pobres – sobretudo, jovens. O paper aborda também práticas de solidariedade social e estratégias coletivas que permitem subverter, ainda que pontualmente, a dinâmica dos mecanismos de controle social a que estão sujeitas essas mulheres.