GT 18. As encruzilhadas entre fazer sofrer ou devolver a dor nas teias governamentais do sofrimento

Coordenador(es): 
Larissa Nadai (USP - Universidade de São Paulo)
Anelise dos Santos Gutterres (UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro)

Sessão 1 - Sobre fazer sofrer: o sofrimento como técnica e modo de governo
Debatedor/a: Everton de Oliveira (UEM - Universidade Estadual de Maringá)

Sessão 2 - Sofrimento como gramática: enredamentos entre política e práticas de existência
Debatedor/a: Adriana dos Santos Fernandes (UERJ - Universidade do Estado do Rio de Janeiro)

Dando continuidade aos debates iniciados na 31ª Reunião Brasileira de Antropologia, em Brasília, este Grupo de Trabalho aborda a relação entre as diversas malhas governamentais e seus efeitos na condução da vida cotidiana. Especificamente, interessa-nos os efeitos que geralmente são traduzidos como sofrimento, tanto pelos sujeitos que experienciam essa condição afetiva quanto pelos discursos que compõem o aparato governamental e seus modelos de gestão de corpos, populações e territórios. Ou seja, situações de pesquisa cujo nexo está exatamente em situar o sofrimento tanto nas tramas que conformam o aparato governamental em seus mais variados setores, órgãos e instituições, quanto no modo pelos quais os sujeitos se movem por tais emaranhados estatais. Nesse sentido, por um lado, procuramos reunir neste GT, investigações atentas etnograficamente aos modos pelos quais as instâncias estatais induzem (ou refreiam) o sofrimento (físico, moral ou subjetivo) das populações que visam governar, num entrecruzamento cujo móvel está nas práticas de controle, cuidado, intervenção, perscrutação e/ou extermínio de corpos, relações e territórios. Por outro lado, a fim de escrutinar os limites éticos de pesquisa em tais condições - assim como os desafios de uma escrita antropológica da dor que não reincida ela mesma na classificação maciça do sofrimento -, daremos prioridade às reflexões metodológicas e políticas nas quais a antropologia e as ciências sociais sejam o próprio foco de atenção.

Palavras chave: sofrimento; governo; etnografia
Resumos submetidos
Crimes de notoriedade e modos de exibição: um olhar para o acervo do Museu da Polícia do Estado de São Paulo
Autoria: Cilmara Veiga Lima de Melo (UNICAMP - Universidade Estadual de Campinas)
Autoria: Localizado no prédio da Academia de Polícia “Dr. Coriolano Nogueira Cobra”, o Museu da Polícia Civil do Estado de São Paulo exerce uma dupla função, segundo informa seu site oficial: “subsidiar a formação dos alunos policiais” e “preservar e divulgar a história da Polícia Civil de São Paulo”. Seu acervo começou a ser produzido na década de 1920 por meio da reunião de armas e outros objetos oriundos de apreensões e investigações policiais, com a intenção de instruir e ilustrar as aulas ministradas na antiga Escola de Polícia. Foi somente na década de 1950 que a coleção passou a ser exposta a aberta à visitação pública, dando, assim, outros contornos a tais propósitos pedagógicos. A presente comunicação volta-se precisamente para este espaço. Dentro de suas pretensões institucionais e históricas, o acervo do Museu possui uma variedade de peças que, em sua exposição e disposição espacial, buscam informar sobre o work da polícia ao longo do tempo: réplicas de carros, aparelhos de investigação e perícia, mobiliários antigos, uniformes, uma ampla coleção de armas. Nessa gestão da imagem da corporação e de suas atividades, o crime aparece como uma questão a ser também apresentada. Parte significativa do acervo exposto ao público é composto por objetos, fotografias, documentos e imagens dedicados a contar a história de “delitos de grande repercussão”, como o crime da mala, de 1928, o caso do Maníaco do Parque ou o caso da exumação de Josef Mengele, entre outros. Nesse sentido, na constituição do Museu da Polícia, o crime ocupa um lugar central na produção de conhecimento, memória, e exibição. Tendo em vista esse acervo e suas anunciadas pretensões, este paper se propõe a analisar as representações particulares feitas pelo Museu, assim como seus múltiplos efeitos, através da exibição de certos crimes e certos criminosos. Para tanto, o work se dedicará a refletir sobre a estreita relação entre o acervo técnico e a concepção das exposições. Ou seja, a partir da observação, em especial, das exposições destinadas aos “delitos de grande repercussão” e aos “criminosos sexuais”, busca-se compreender as dinâmicas e os critérios envolvidos na seleção do que será exibido e do que, por sua vez, permanecerá apenas arquivado como material de referência. Quais casos são escolhidos em detrimento de outros para compor esses espaços? O que é dito sobre cada um deles? Como estão organizadas e dispostas peças, fotografias e informações? Diante dessas e outras questões, pretende-se, portanto, refletir não apenas sobre a elaboração de tais espaços, mas também sobre os efeitos intrínsecos à produção de permanência e conhecimento engendrada pelo Museu, que se sedimentam por meio da escolha do que é exemplar, excepcional e digno de notoriedade.
Das “verdadeiras vítimas” e dos “verdadeiros sofrimentos”. Uma breve análise sobre violência sexual, aborto, abortamento legal e políticas de gestão de vidas na ADPF 442.
Autoria: Julian Simões Cruz de Oliveira (INSPER - Insper Instituto de Ensino e Pesquisa)
Autoria: Aborto legal, também chamado no jargão médico-jurídico de interrupção legal de gestação ou abortamento legal, é um tema envolto em controvérsias e disputas científicas, jurídicas, morais e religiosas. Por tal motivo, esta comunicação buscará discutir a economia moral que produz, reproduz, marca e legitima o acesso e o exercício de direitos e deveres a partir das ambivalentes categorias da “verdadeira vítima” e do “verdadeiro sofrimento”. Para isso, analisarei as discussões teórico-científicas decorridas da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 442 (ADPF/442) em andamento no Supremo Tribunal Federal Brasileiro. O intuito é indicar que nos argumentos movimentados pelas arguições realizadas em audiência pública no ano de 2018, tanto grupos contra como grupos a favor da descriminalização do aborto, têm se utilizado de maneira semelhante de artifícios de vitimização e de uma gramática emocional que legitimam suas demandas. Assim, salta aos olhos uma política de gestão de vidas que pretende disputar e reconhecer o verdadeiro sofrimento e, consequentemente, da verdadeira vítima em situações decorridas de violência e abuso sexual. Por isso, é fundante analisar as formas narrativas das arguições que articulam moralidades, direitos, sofrimentos, sexualidade e gênero, assim como analisar os efeitos desta articulação e sua incidência em políticas públicas de saúde.
Entre guerras e rede de mulheres: considerações sobre o “problema” da “Retirada compulsória” de bebês em Belo Horizonte
Autoria: Ariana Oliveira Alves (UNICAMP)
Autoria: A proposta de comunicação oral refere-se a alguns excertos da pesquisa de mestrado, concluída em março de 2020. Naquela ocasião tomei como objeto de análise o que foi convencionado como “afastamento”, "separação compulsória" ou “sequestro” de bebês em Belo Horizonte (MG). Para tanto, lancei olhar aos jogos de acusação, denúncias e normativas que produzem e disputam práticas de gestão em torno de determinadas maternidades e populações. De maneira geral, o objetivo da dissertação constituiu-se em explorar dois dispositivos da construção política e social de um “problema” em torno da “separação compulsória”. Em uma primeira dimensão, busquei analisar tanto a gramática dos direitos quanto de gênero que produz as mães, como “vulneráveis” e/ou “perigosas”. E que por sua vez forja uma segunda dimensão. Essa ao engendrar disputas nas formas de conceber, classificar e gerir o “problema”, sobretudo, através da criação de uma “rede” de apoio e articulação, organizada a partir da identificação social à categoria “Mães órfãs”, coloca em disputa na arena pública noções de “direitos” e “violações”, a partir de um entendimento bastante específico de maternidade. Ou seja, ao analisar a constituição deste “problema” como uma “causa”, dei especial atenção à “rede mães órfãs” e suas estratégias e engajamento, sobretudo, na formulação e denúncia do tema como uma causa pública grave e urgente de “violação de direitos”. Isso posto, inspirada pelo tema do GT, tais discussões estão ancoradas nas articulações entre técnicas de gestão e as formas pelas quais instâncias estatais atuam diretamente no sofrimento das populações que visam governar e gerir. A fim de explorar tais conexões, nessa presente comunicação, buscarei explicitar as articulações em/da “rede Mães órfãs” e às contradições que conformam esse processo, para tanto apresentarei narrativas e relatos em que poderemos perceber as disputas institucionais travadas entre as diversas instâncias estatais. Segundo os relatos das participantes da pesquisa, muitas mães e seus bebês foram “separados arbitrariamente” sem haver a comprovação de maus tratos. Consequentemente, elas alertam que as filas de espera nas instituições de acolhimento em abrigos se tornaram ainda maiores e, segundo relatos das próprias mães, estas eram impedidas de sair da maternidade com seus filhos, mesmo com a alta médica. Ademais, as entrevistadas também afirmam que, após a expedição da Portaria nº 03/2016, ampliaram-se os relatos de mulheres que “fugiram” das maternidades com seus filhos e diversas mulheres que não buscaram atendimento do pré-natal nos Centros de Saúde ou deixaram a cidade para ter seus filhos, por receio de “perderem” seus bebês.
Impasses biopolíticos de uma ‘‘política da vida’’. Uma etnografia no Programa Médico de Família de Niterói.
Autoria: Román Eduardo Goldenzweig (UFF - Universidade Federal Fluminense)
Autoria: Neste work pretendo problematizar, a partir de uma abordagem etnográfica, os impasses biopolíticos de uma política de saúde que se pretende uma “política da vida”, em consonância com as diretrizes da Constituição de 1988 e da lei orgânica da saúde, assim como com as diretrizes da denominada “reforma sanitária”. A distinção entre biopolítica e política da vida foi elaborada por Didier Fassin, em convergência com a noção adaptada de George Canguilhem de “fazer andar a vida” (les allures de la vie). Sustento que as ações de cuidado incorporadas nos protocolos formalizados da biomedicina, enquanto dimensão impessoal e racional legal, se vêm confrontadas pela demanda dos usuários como uma demanda ética que se transforma numa exigência ética (Cf. Emmanuel Levinas e Judith Butler) para os profissionais de saúde. Se essa demanda se constitui inicialmente como uma demanda por atendimento em saúde, nos marcos de protocolos biomédicos, a mesma é transbordada e ultrapassada na dinâmica da relação paciente-médico (e usuários-equipe de saúde), ao colocar a própria vida (dos usuários e dos profissionais de saúde) no centro e em questão. Deste modo, o encontro clínico se configura num contexto dinâmico e conflitivo, colocando-se um desafio de abertura à contingência, em que os profissionais de saúde são interpelados para além de sua capacidade de reduzir a relação interpessoal aos marcos estritamente burocráticos dos protocolos biomédicos. Assim, deixar-se ser afetado se configura como um eixo estratégico para ir além de uma relação normalizadora de cuidado. A observação etnográfica tenta registrar essa dinâmica ambivalente, com avanços e recuos, ora com ênfases na impessoalização objetivante e burocrática, ora no desenvolvimento de um vínculo interpessoal, entre os polos da “normalização” e da “capacidade normativa”, isto é, segundo, Canguilhem, a capacidade de viver de acordo com suas próprias normas, num âmbito de frágil construção dos cuidados de si (tanto dos usuários quanto dos profissionais de saúde). Nesse contexto de observação elaboro uma reflexão preliminar sobre o “dispositivo antropológico”, isto é, os modos discursivos, gestuais e corporais em que a presença do antropólogo na cena do encontro clínico participa performativamente na sua construção, como uma espécie de “auxiliar hermenêutico” em que fazer sofrer, deixar sofrer, fazer viver, deixar de fazer viver, deixar andar a vida, fazer andar a vida se constituem como instâncias cruciais de significado e intervenção.
Modos de sentir, sofrer, conflitar e reconciliar: a regulação dos conflitos familiares nas tramas da Justiça
Autoria: Camilla Felix Barbosa de Oliveira (clinica), Raquel Wiggers
Autoria: Este work consiste em um recorte de pesquisa doutoral e etnográfica acerca dos conflitos familiares e dos modos de resolução dos mesmos operados pelo sistema de Justiça, na qual temos analisado as ditas políticas humanizadas que propõem uma justiça sensível às problemáticas emocionais, em especial os traumas e sofrimentos advindos do divórcio/litígio conjugal. Sustentamos a tese de que tal movimento, denominado de humanização da justiça, caracteriza-se por um conjunto de tecnologias e práticas judicializantes que se propõem a gerir relações, sentimentos e comportamentos. Com efeito, nos deparamos com a legitimação de modos de regulação das famílias, sobretudo de determinadas modalidades de sentir e de sofrer tidas como adequadas/inadequadas, normatizando atitudes, falas e emoções que os sujeitos passam a incorporar em suas narrativas pessoais e que embasam os discursos coletivos e as políticas contemporâneas. Destarte, tomaremos como exemplo uma das categorias etnográficas emergentes do campo de pesquisa, a saber, a reconciliação. Trata-se de situações de audiências de conciliação, inicialmente com demandas de divórcio, que culminaram na reconciliação dos sujeitos provocadas pelas intervenções e suposta capacidade empática dos agentes estatais. Em outros termos, casos e histórias que ganharam notoriedade midiática de famílias cujos sofrimento e dor da separação deram lugar a um “final feliz” – isto graças à sensibilidade do juiz ou mediador de perceber sinais como troca de olhares, gestos carinhosos, expressões de sofrimento, relutância e outros indícios de sentimentos existentes no decorrer das audiências. Ao analisar criticamente tais cenas, problematizamos as lógicas de tais práticas ditas humanizadas e esse modo de fazer justiça que passa pela análise e regulação dos sentimentos e sofrimentos das pessoas envolvidas em um litígio judicial. Portanto, compreendemos que o discurso da humanização se ancora na moralidade dos agentes do Estado que se propõem não só o ouvir o sentimento do outro, mas à corrigi-lo, moldá-lo e ajustá-lo, caracterizando as modalidades de resolução de conflitos e de se fazer justiça na atualidade.
O Tempo Como Transforma(Dor): Sobre o desejo da maternidade e seus (in) sucessos
Autoria: Juliana Borges de Souza (UFRRJ - Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro)
Autoria: Este work tem como objetivo analisar os efeitos dos estudos de gênero na produção do parentesco nas relações familiares sob a égide do luto neonatal e gestacional no grupo do Luto a Luta: grupo de apoio neonatal e gestacional, localizado na cidade do Rio de Janeiro. Assim sendo, as reflexões a seguir fazem parte das inquietações incorporadas à minha pesquisa para o doutoramento advindas de conversas que me inspiraram ao longo do grupo de pesquisa Conectividade. Proponho pensar como a noção da “temporalidade” da Janet Carsten (2014) e a noção de “mutualidade do ser” do Sahlins (2013) se entrelaçam. Visto que a noção de temporalidade é atravessada nas relações de parentesco, sofrimento, violência, moralidades e afetos. Ao falar sobre a relação da perda do filho é acionada também a figura do tempo passado/presente/futuro, no sentido usado pelas interlocutoras que passaram pela perda neonatal e gestacional, de que “sou mãe e sempre serei mãe” . Essa produção de memória produz também “uma condição de parentesco que religa as nossas conexões com o passado, mas também nosso senso de quem nós somos no presente e na possibilidade de criar parentesco no futuro” (CARSTEN, 2014, p. 115).
Redes, Mediadores e Governança em Domínios de Cuidados no contexto da Síndrome Congênita do Zika
Autoria: Russell Parry Scott (UFPE - Universidade Federal de Pernambuco)
Autoria: Dando sequencia a um work anterior que examinou mães de filhos com a Síndrome Congênita do Zika e suas redes de cuidados em Pernambuco na qual se buscou compreender como as famílias organizam novas mobilidades para: 1) melhorar acesso a serviços de deslocamento das suas moradias para os locais de tratamento; 2) incluir/excluir integrantes da família para efetivar o cuidado; e 3) mudar a residência para perto dos locais de tratamento especializados, este work foca na mediação da formação de redes em diferentes domínios de cuidado (relacionais, de atendimento e de conhecimento), para mostrar as múltiplas maneiras de negociação da governança da vida das mães e das suas famílias provocadas pela inserção num contexto de emergência de saúde de dimensões nacionais e internacionais. Argumenta que a formalização da busca de cidadania e de direitos abre um espaço de interlocução com serviços de atendimento privados e públicos e com pesquisadores que influencia fortemente a formação de redes de relacionamento através da ato de cuidar intensivamente durante o tempo excepcional da epidemia. Através de alguns casos aprofundados, mostra que as mães formam redes de apoio muito seletivamente de entre os seus parentes tanto devido à sensibilidade à condição do filho como deficiente, e não doente, quanto em função das intensivas cobranças, próprias e alhures, do tempo e da mobilidade dedicado ao acompanhamento. Realce é dado a esferas de saúde, assistência social, previdência e moradia como setores privilegiados de atuação, que formam fulcros nodais para mediação de redes intersectadas. Em cada uma dessas esferas procura ver as negociações realizadas pela mães através de mediadores para elaborar as suas estratégias de vida diante das exigências de cuidados e também da lógica das praticas de controle favorecidas pelos mediadores nas esferas onde operam.
Reflexões sobre desastres socioambientais e sofrimento a partir da análise de “governos das chuvas” e suas narrativas e disputas (Nova Friburgo/RJ)
Autoria: Maria Suellen Timoteo Correa (SEEDUC RJ)
Autoria: A presente comunicação analisa relações institucionais e de poder a partir de malhas governamentais em contextos de desastres socioambientais e alguns de seus efeitos em populações afetadas. O work parte de uma etnografia realizada entre 2015 e 2020 a respeito de usos e sentidos em torno de chuvas e de eventos de desastres em diversos períodos em Nova Friburgo - RJ, e dos chamados “governos das chuvas” na cidade. Para a presente comunicação, cumpre destacar situações apresentadas em dois desastres, de 1979 e de 2011, de maneira a evidenciar narrativas e interesses confrontados a partir destes eventos. Em 79, as disputas entre os governos estadual e municipal em torno da decretação do estado de calamidade e do envio de verbas à cidade são problematizados, bem como a resposta à cidade com as medidas de reconstrução. Em 2011, são apresentados os usos do sofrimento e dos problemas relacionados ao desastre como forma de omitir a responsabilidade estatal frente ao evento e, ao mesmo tempo, de justificar políticas de territorialização. Essas situações acabam por mostrar como o sofrimento das populações afetadas em desastres pode ser manipulado midiaticamente para interesses políticos diversos e/ou se tornar um problema secundário a ser solucionado pelo aparato governamental, ou mesmo um dos efeitos das políticas governamentais de gestão e de intervenção em situações catastróficas e de crises.
Tecendo redes: gênero e violência nas periferias de São Paulo
Autoria: Milena Mateuzi Carmo (USP - Universidade de São Paulo)
Autoria: Esta apresentação tem por fim expor alguns elementos de minha pesquisa de doutorado, ainda em andamentos, que busca compreender como famílias moradoras de regiões mais empobrecidas das periferias da cidade de São Paulo têm sido afetadas pelo recrudescimento da força repressiva das políticas de segurança. Dialogando com estudos que enquadram essas ações estatais como aspectos da necropolítica, argumento que gênero também constituiu uma das dimensões que sustentam a reprodução não apenas dessas violências, mas também de agenciamentos e resistências nesses territórios. Enquanto são homens que estão, majoritariamente, envolvidos em práticas ilícitas ou são vítimas imediatas da ação violenta do Estado, às mulheres recaem: o sofrimento da perda de parentes; a sobrecarga financeira gerada por mortes, prisões ou dívidas com o tráfico de drogas; e o tarefa do cuidado. São as mulheres que percorrem os labirintos do Estado – na manutenção de prisões (visitas, envio de provisões, etc), na busca de informações no sistema de justiça, na procura por políticas sociais locais, etc. Além de serem elas também que estão a frente de diversos movimentos sociais, tais como grupos de mães que se identificam com a Luta contra o genocídio de jovens negros e pobres ou de familiares que atuam contra o sistema prisional. Meu argumento é de que nessas operações cotidianas em distintos espaços dois processos se destacam. Um deles é a remodelação de relações e percepções de gênero, isto é, se por um lado nas portas de presídios o estigma de mulher ou mãe de bandido é reforçado, nos movimentos sociais essas mulheres passam a ser vistas como guerreiras, lutadoras ou vítimas do Estado. O outro é que as redes formadas por mulheres vão sendo tecidas a partir da gramática do cuidado. Cuidado esse que não se restringe ao espaço doméstico, mas o extrapola. Cada vez tem surgido mais grupos de mulheres (tanto ativistas, como familiares) que se organizam buscando auto-cuidado: grupo de mães, círculo de mulheres, coletivos feministas periféricos, grupos de familiares de pessoas presas etc. Enfim, minha hipótese, profundamente inspirada nos works das antropólogas Veena Das e Adriana Vianna, é a de que este cuidado extrapolaria o espaço doméstico, reproduzindo-se no âmbito público: presídios, políticas sociais e movimentos sociais. E, se por um lado essa tarefa do cuidado é experimentada como sobrecarga que produz esgotamento e adoecimento, por outro lado, constitui-se como possibilidade pela qual as mulheres refazem e reabitam não apenas mundos depois de perdas e sofrimentos.
Uma aposta política-teórica-ética-metodológica: o sofrimento encruzilhado
Autoria: Ueslei Solaterrar da Silva Carneiro (UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro), Laura Lowenkron
Autoria: Este work propõe uma discussão genderizada e transviada no campo da saúde mental e sustenta uma discussão da saúde mental e processos de subjetivação no campo dos estudos transviados, tendo a dimensão racial como uma discussão transversal. A partir da noção de “sistema de gênero moderno colonial” e de uma perspectiva analítica interseccional, realizou uma etnografia multisituada por meio da aproximação de espaços que foram aqui nomeados como dispositivos encruzilhados, e a partir das histórias de vida de quatro mulheres trans e travestis, com o objetivo de analisar as formas de gestão do sofrimento que atravessa essas mulheres. O sofrimento foi entendido aqui em seu duplo sentido, isto é, o de gestar e o de gerir. A partir dos itinerários de vulnerabilização, ou seja, da história da gestação do sofrimento pela Casa-grande, de um lado, e dos itinerários de encruzilhamento, que fala sobre os atos de rupturas e reconfigurações que as mulheres trans empreenderam nas estruturas de poder na tentativa de construção de outras formas de habitar o mundo, chega-se à noção do sofrimento encruzilhado como a interseção desses itinerários e trajetórias. Tensionando a noção de sofrimento que se tem apostado pelo saber-poder hegemônico, propõe-se o sofrimento encruzilhado como lugar de tensão, de tensionar as fronteiras do (im) possível, lugar de paradoxo, do ser e não ser, da opressão e da agência. É o lugar de onde se pode, a partir do encontro com as feridas e traumas intersecionais, produzir outras narrativas, outras oralidades para que seja possível se contar outras e renovadas histórias sobre o tempo, o espaço e o ser e o viver do passado-presente-futuro. O sofrimento encruzilhado é o sofrimento intersecional, o sofrimento localizado, marcado pelas diferenças que fizeram a diferença na vida das pessoas, é o sofrimento que nos ajuda a (re) contar uma história. Em termos metodológicos, sugere-se um processo de reestruturação das práticas de cuidado em três níveis: dimensão simbólica, dimensão estética e dimensão metafísica. A encruzilhada é acionada aqui como necessidade de tensionar a modernidade ocidental e “desencadeirá-la do seu trono”. Aponta-se para a urgência de engendrarmos outras respostas para esse sofrimento que não seja a medicalização, a patologização, a violência e o silenciamento. Engendrar novas políticas de cuidado a partir da invenção de outras políticas de compreensão etiológica sobre o sofrer. Portanto, esta noção de sofrimento; por se afastar da noção de “sofrimento psíquico” ou “transtorno mental”, e se aproximar da noção de “sofrimento social”, se coloca como uma aposta, como um ato de se somar à necessidade de epistemologias que alimentam a produção de inflexões decoloniais e interseccionais.
‘Aceita que doi menos’: escrevivendo sobre sofrimentos na escola no contexto de necropolitica
Autoria: Izabela Amaral Caixeta (secretaria de educação)
Autoria: A presente proposta tem por objetivo tecer reflexões autoetnográficas, em perspectiva interseccional, sobre o crescente adoecimento docente no contexto capitalista e a relação do racismo e do sexismo na produção de sofrimentos na escola. O adoecimento docente no Brasil vem sendo expresso pelos aumentos significativos de afastamentos do work, ligados principalmente as questões de saúde mental. São comuns os debates sobre condições laborais da categoria, falta de reconhecimento da profissão, como também as múltiplas demandas frente à precarização da educação pública. Aqui pretendo propor outra narrativa, ao refletir de que forma as violências estruturais do racismo e do sexismo afetam e produzem sofrimentos expressos no chamado “mal estar docente”. A expressão “aceita que dois menos” é um aforismo presente em falas cotidianas de tom prescritivo e moral que podem revelar uma espécie de tensão entre resistências e/ou resignações frente a elementos de poder estabelecidos. Aqui utilizo esse aforismo como exemplo simbólico da imposição de um projeto de mundo moderno/colonial/ocidental/racial presente também na linguagem e reproduzido pela escola, ‘norteada’ por suas ‘grades curriculares’. Na esteira do filósofo camaronês Achille Mbembe , em sua obra Politicas da Inimizade (2017), busca-se aqui refletir sobre o papel da necropolítica e seus efeitos na educação. Neste contexto de exploração do sofrimento, banalização da violência e de fronteiras metafóricas da separação (do eu e do outro) argumento ser possível identificar uma relação muito estreita entre reprimendas ‘comportamentais’, presentes na escola enquanto instituição total e lócus da ação estatal , com mais um dispositivo do fazer morrer (MBEMBE, 2017) vigente, da prática do chamado ‘racismo de estado’. Busco compreender a relação do processo de militarização de escolas, em franca expansão no Brasil, com o exercício do necropoder e na (de) formação de subjetividades. Também propor reflexões sobre necessárias práticas antirracistas e antissexistas enquanto estratégias de promoção da saúde na escola. A partir das contribuições da escrevivência (Conceição Evaristo), busco possíveis aproximações metodológicas com a autoetnografia para melhor compreender experiências do adoecimento docente em contexto periférico de uma escola pública no Distrito Federal.
“A lama que veio e aqui ficou”: Desdobramentos institucionais do desastre da Samarco e sofrimento social na foz do rio Doce
Autoria: Flávia Amboss Merçon Leonardo (Universidade Federal de Minas Gerais)
Autoria: Este texto examina a situação de crise vivenciada pelos moradores de Regência Augusta, distrito de Linhares (ES), deflagrada com o rompimento da barragem de rejeitos minerários de Fundão, no município de Mariana (MG). Através da perspectiva da Sociologia e Antropologia dos desastres, o artigo tem a finalidade de discutir as redes de articulações e disputas que se configuram entre diferentes sujeitos no caso em tela, sobretudo, entre aqueles que são considerados aptos a pensar e atuar na gestão do desastre (Estado e empresas) e aqueles que vivenciam os efeitos do desastre no seu cotidiano, não obstante, possuem participação limitada nas arenas institucionais, onde as discussões, negociações e decisões que afetam suas vidas são realizadas. Desde 2015 tenho realizado etnografia dos encontros entre as vítimas, sobretudo aquelas residentes na região da foz do rio Doce, e as instituições dedicas à gestão da crise em destaque. Nesses espaços, tenho observado a formação de um campo conflitivo: de um lado, a narrativa institucional e corporativa, que envolve um aspecto linear sobre o evento, os impactos e a elegibilidade das vítimas, do outro lado, a experiência do desastre é narrada e denunciada a partir de sua complexidade, por aqueles que sofrem cotidianamente os efeitos nos territórios. Nesses espaços de interação é possível testemunhar, portanto, não só a violação de direitos, que é cotidiana, mas também a ampliação do sofrimento social como consequência do processo de gestão do desastre.
O corpo como arena: uma etnografia sobre velhice institucionalizada em um asilo da Baixada Fluminense – RJ
Autoria: João Pedro de Oliveira Medeiros (UFF - Universidade Federal Fluminense)
Autoria: O envelhecimento em nossa sociedade é interpelado e redimensionado por inúmeros campos, tais como: seguridade social, sistema de saúde, gerontologia, sistema político; nichos de consumo, rejuvenescimento, produtos estéticos; mídia, tele-novelas; envelhecimento ativo; solidão. No que tange as ILPI’s (Instituições de Longa Permanência para Idosos), outras circunstancialidades dão a tônica singular destes espaços. Além dos estigmas que acabam por associar essas instituições aos antigos asilos, onde uma espécie de cultura manicomial imperava, pobreza, abandono, morte e finitude parecem signos lógicos que dão um espectro cristalizado a esses espaços (CHRISTOPHE e CAMARANO, 2010). Fruto de um work etnográfico de pouco mais de dois anos em uma ILPI da Baixada Fluminense (RJ), esta empreitada interpretativa busca esmiuçar as formas pelas quais os internos desta instituição – diga-se de passagem, duplamente desqualificados: velhos e institucionalizados – experimentam seus corpos e jogam-nos dentro desta trama institucional. Sob esse ângulo, esses corpos revelam as teimosas e extensivas amarras institucionais, uma micro-política, de fato; suas dissimuladas insurgências; suas dedicadas e intransigentes reformulações extracorpóreas. Por fim, dentro dessa gramática emocional (REZENDE, 2012), singularmente melancólica, pintam-se relações entre pessoas e coisas (INGOLD, 2012), onde pomposas e coloridas vivências surgem.
Produção e gestão do sofrimento no sistema prisional
Autoria: Catarina Pedroso (UNICAMP - Universidade Estadual de Campinas)
Autoria: O work a ser apresentado consiste na primeira fase de pesquisa de mestrado que tem como objetivo analisar as relações entre o processo de encarceramento em um contexto de governo neoliberal e os efeitos subjetivos do aprisionamento nas pessoas que estão ou estiveram presas. Especificamente, trata-se de investigar a categoria sofrimento no caso do sistema prisional paulista, buscando compreender a função desempenhada pelo sofrimento na gestão e produção dos indivíduos encarcerados. Se a penalidade neoliberal cumpre o papel de gerir a miséria, faz-se necessário lançar um olhar sobre as maneiras pelas quais esse aparato incide sobre a subjetividade daqueles e daquelas que se encontram encarcerados, de forma a moldá-la e a marcá-la de maneira decisiva. Esta pesquisa persegue os objetivos específicos que se orientam em torno das seguintes perguntas: como se dá a produção e a gestão do sofrimento pelo aparato prisional? O que as próprias pessoas presas ou egressas do sistema prisional entendem por sofrimento?