GT 17. Antropologias da paisagem

Coordenador(es): 
Thiago Mota Cardoso (UFAM - Universidade Federal do Amazonas)
Pedro Castelo Branco Silveira (Fundaj)

Sessão 1 - HABITAR PAISAGENS
Debatedor/a: Emmanuel Duarte Almada (UEMG - Universidade do Estado de Minas Gerais)

Sessão 2 - COSMOPOLÍTICA DAS PAISAGENS E MODOS DE RESISTÊNCIA
Debatedor/a: Rafael Palermo Buti (UNILAB - Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira)

Sessão 3 - PAISAGENS NO/DO ANTROPOCENO
Debatedor/a: Karine Lopes Narahara (UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro)

Paisagem é uma categoria que tradicionalmente ganhou pouco destaque nas discussões antropológicas, geralmente compreendida a partir de suas dimensões estéticas e representacionais, especialmente aquelas relacionadas ao campo visual. Recentemente, abordagens processuais das paisagens tem ganhado força a partir, por um lado, do questionamento das fronteiras entre natureza e cultura, com autores contemporâneos como Philippe Descola, Tim Ingold e Anna Tsing e, por outro lado, com abordagens que incluam a dimensão da ecologia politica e do reconhecimento público de paisagens como patrimônio imaterial de povos e comunidades tradicionais. O GT discutirá as diversas possibilidades do uso do conceito de paisagem na antropologia, incluindo abordagens estéticas e processuais, dimensões visuais, sonoras ou táteis, e suas relações com outros conceitos antropológicos tais como território, terra, lugar, ambiente e patrimônio, e com os debates sobre o Antropoceno. São encorajados experimentações etnográficas que se fazem em diálogos com outras disciplinas que se utilizam desta categoria, entre elas a geografia, a ecologia e as artes visuais.

Palavras chave: Paisagem; Ecologia Politica; Natureza
Resumos submetidos
"Quando mapa não é território": sobre o conceito de "naane", histórias e lugares habitados pelos Ticuna no rio Solimões e Afluentes
Autoria: Patricia Carvalho Rosa (IDSM), Luiza Maria Câmpera
Autoria: Este work aborda o conceito relacional Ticuna de naane embasado em descrições etnográficas que o relaciona com outro conceito indígena, mã'ü, associado aos processos de produção do corpo-pessoa. Nosso intuito é apreender por meio delas as histórias e engajamentos sobre as experiências do fazer lugares desses sujeitos no "beiradão". Para isso, partimos da premissa etnográfica de que naane corresponde à cosmopolítica dos lugares–mundos, inscrita nas paisagens e histórias singularizadas de sujeitos Ticuna, perpassando a ética dos encontros com a alteridade numa perspectiva de longa duração e através da qual podemos conhecer com eles as formas que dialogam com as noções exógenas de território e cartografia como possibilidades política e epistemológica de produzir outras perspectivas analíticas sobre a problemática dos deslocamentos e processos de territorialização na região do Alto e Médio rio Solimões e Afluentes.
#Lute como uma praia do nordeste?: impactos da contaminação por petróleo nas praias de Pernambuco.
Autoria: Ana Cláudia Rodrigues da Silva (UFPE - Universidade Federal de Pernambuco)
Autoria: Em agosto de 2019 as primeiras manchas de óleo de petróleos apareciam nas praias do nordeste. Nos meses seguintes presenciamos paulatinamente a chegada do óleo nas praias de Pernambuco mobilizando, primeiramente, pescadorxs e pessoas que utilizam as praias para sobrevivência, voluntários e por último o poder público. Considerado o maior desastre ambiental no litoral brasileiro, o derramamento acarretou danos para humanos e o para todo um ambiente marinho e de manguezais. Este work apresenta resultados de um projeto de extensão realizado na praia de Suape (Vila de Suape), no Cabo de Santo Agostinho, litoral sul de Pernambuco, e busca pensar os impactos socioeconômicos e ambientais na vida dos moradores da vila em especial pescadorxs, comerciantes locais (barraqueirxs) e trabalhadores do turismo. A Vila de Suape passou por diversas intervenções advindas de grandes empreendimentos como a instalação do Complexo Portuário de Suape, a construção de um Resort e o derramamento do óleo influenciando diretamente na forma de ser e viver seu ambiente. Assim, discutiremos os significados imbricados na ideia de “lutar como uma praia” sistematicamente impactada pelo desenvolvimento.
Ɨnɨh S’ah: works de mapeamento com os Hupd’äh (2015-2020)
Autoria: Bruno Ribeiro Marques (UFSCAR - Universidade Federal de São Carlos)
Autoria: Retomo um conjunto de works realizados com os Hupd’äh entre 2015 e 2020, envolvendo diferentes formas de mapeamento e que dizem respeito, de alguma forma, à sua ideia de ɨnɨh s’ah, (“nossa terra”). Os Hupd’äh (2.634 pessoas, FOIRN/ISA 2017) são um povo indígena da região do Alto Rio Negro, parte da família linguística Naduhupy. Estão distribuídos em dezenas de comunidades e sítios, e, nos últimos anos, têm circulado frequentemente no centro urbano de São Gabriel da Cachoeira (AM, Brasil). Suas terras tradicionalmente habitadas, compartilhadas com povos da família linguística Tukano oriental, estão entre os rios Papuri, Tiquié e Uaupés; e os pontos neste território circunscrito são entrelaçados por uma infinidade de caminhos terrestres (tiw). Há dois objetivos principais neste work, dividindo o texto em duas partes. O primeiro é descrever um conjunto de works realizados no decorrer da elaboração do PGTA (Plano de Gestão Territorial e Ambiental) da TI Alto Rio Negro, de pesquisas de registro cultural em vista da salvaguarda e da patrimonialização dos modos de fazer caminho dos Hupd’äh (Museu do Índio/UNESCO) e de pesquisas acadêmicas em sentido mais estrito. Nisso, foram realizadas uma série de oficinas para elaboração de levantamentos socioambientais, desenhos de mapas por cada uma das comunidades e um censo com o histórico de deslocamento espacial das famílias até a formação das comunidades atuais. Em duas regiões habitadas pelos Hupd’äh, foram realizadas caminhadas na floresta como aprofundamento dos works de mapeamento, além da gravação de narrativas sobre os mitos e os nomes de lugares e de fórmulas xamânicas para a proteção dos caminhantes na floresta. Há algo de inventário e organização de pesquisa nesta apresentação. O segundo objetivo é destacar linhas analíticas a serem desenvolvidas mais profundamente em estudos futuros. Neste sentido, apresento alguns conceitos, tropos telúricos do pensamento hup, das potências vitais nos caminhos, na floresta e os sentidos da multiplicidade. Exemplos: o saber fazer o caminho e a formação xamânica e de práticas de atenção dos jovens; a densidade simbólica da região das cabeceiras dos igarapés; as serras (paç) com lagos de leite em seu topo e cidades em seu subterrâneo; a antropogenia da paisagem, com os sítios antigos marcados pelas árvores frutíferas dos wähäd d’äh (“ancestrais”); os lugares e seus donos (hũ wähäd d’äh, os “velhos da caça”); as toponímias míticas e xamânicas, lugares hat niiy (“que tem nome”). Por óbvio, em vista do volume de dados, a apresentação será um sobrevoo por aspectos colocados de maneira mais clara no texto a ser discutido.
A paisagem festiva da procissão de Nossa Senhora dos Navegantes
Autoria: Oswaldo Giovannini Junior (UFPB - Universidade Federal da Paraíba)
Autoria: Este work é parte de um projeto em andamento que realiza uma pesquisa em torno da festa de Nossa Senhora dos Navegantes. Trata-se de uma festa popular tradicional que celebra a santa padroeira da comunidade de Coqueirinho, aldeia indígena Potiguara, pertencente ao município de Marcação/Litoral Norte da Paraíba. O momento culminante é uma procissão de barcos que sai de Coqueirinho até a vila de Barra de Mamanguape, atravessando um estuário que é área de proteção ambiental. A festa envolve romeiros, turistas e comerciantes oriundos de diversas cidades da região do Vale do Mamanguape e de outras cidades do estado e dos estados vizinhos, perfazendo milhares de pessoas de diversas origens sociais e culturais. Ocorre no segundo ou terceiro domingo de dezembro, dependendo da fase da maré e é organizada principalmente por pescadores. A festa tem característica polifônica (BAKHITIN, 1987) e polissêmica (TURNER, 2005), perfazendo uma grande “arena de disputas” (STEIL, 1996) onde cada pessoa ou grupo se relaciona com o evento e com o sagrado e a paisagem de praia e beira de rio de modo diferenciado evidenciando uma grande diversidade de sentidos, por vezes complementares, por vezes conflitantes. Tal diversidade de sentidos é notado na forma como os envolvidos se comportam, como se postam corporalmente no ambiente e diante das imagens das santas, nos cortejos e nas situações festivas diversas, realçando de um lado a devoção com intensa experiência do sagrado e de outro a efervescência profana com intenso consumo de bebidas alcóolicas, dando à festa um caráter dionisíaco (PEREZ, 2017). A pesquisa pretende discutir a relação entre festa e paisagem (INGOLD, 2015), compreendendo as mesmas como sistemas abertos e fluidos, no sentido de perceber a ocorrência de uma paisagem festiva onde uma e outra não se opõem nem se separam durante o evento ritual. E ainda, sob aporte da antropologia visual, tem realizado registro etnográfico audiovisual da festa, procurando abarcar a diversidade de sentidos dos personagens que fazem travessias por esta paisagem festiva, compondo-a e sendo atravessados por ela, através de imagens.
A presentificação das catástrofes e as paisagens devastadas da exclusão nuclear no nexo da arte japonesa pós-Fukushima
Autoria: Ryanddre Sampaio de Souza (UFMT - Universidade Federal de Mato Grosso)
Autoria: O presente work alicerça-se na análise da relação arte-catástrofe, tão evidente no nexo da arte japonesa sobretudo no contexto social do país após o desastre nuclear de Fukushima em março de 2011. Através da crise, a potência devastadora da catástrofe e suas consequentes possibilidades de reconstruir ou reinterpretar as paisagens devastadas pela experiência humana representaram profundas transformações estéticas, políticas e sociais no Japão. Dar-se-á ênfase à produção do coletivo Chim↑Pom, em especial a exposição “Don’t Follow the Wind”, montada em 2015 dentro das zonas de exclusão nuclear de Fukushima. Pensada enquanto contradiscurso que não visa representar a destruição, mas presentificar a catástrofe evidenciando as desconexões da vida social causadas por ela, iniciativas como esta nos possibilitam refletir sobre formas de sobreviver às crises do Antropoceno e desestabilizar noções tais como arte, natureza e paisagem sobretudo compreendendo as sobreposições de histórias e agências que estão presentes no suposto vazio radioativo considerando que, segundo Tsing et. al (2017), toda paisagem devastada é assombrada por modos de vida passados. Assim, a arte japonesa pós-Fukushima aponta para possibilidades agentivas contra-hegemônicas, humanas e não-humanas, que fazem frente aos discursos autorizados do governo e suas consequências cosmopolíticas para pensar um mundo de possíveis e um futuro pós-nuclear menos violento.
A zoada do mangue: território e territorialidades a partir dos sons
Autoria: Lucas Coelho Pereira (UNB - Universidade de Brasília)
Autoria: Pegar caranguejo é um work solitário, entrecortado de sons e silêncios. No mangal, os caranguejeiros se comunicam através de gritos: “Booooi”, “Uuuu”, “Cooorno”, “Iupiii”, “Huuuum”. Ora palavras soltas, ora gemidos grossos que podem ser tanto um chamado para os parceiros de uma mesma turma se juntarem na beira do rio quanto um aviso de que se está trabalhando em certa ponta de mangue e não em outra. É pela zoada ainda que se sabe da presença de animais incômodos, como os macacos-prego. Os barulhos, portanto, comunicam sobre formas humanas e não humanas de habitar e circular pelos mangues. Mas como os sons podem nos ajudar a pensar territórios e paisagens multiespécies? O que os barulhos nos indicam sobre organização, movimentos, ocupações dos manguezais, saberes e preferências de caranguejeiros em suas práticas diárias de captura? No diálogo entre as noções de vida e paisagem sonora, discutirei território a partir dos ouvidos. Pretendo falar sobre isso com base nas minhas andanças ao lado de caranguejeiros e caranguejos no delta do rio Parnaíba, onde realizei pesquisa por doze meses entre os anos de 2018 e 2020.
Aprendendo com a paisagem das serras Kiriri.
Autoria: Gabriel Novais Cardoso (UFBA - Universidade Federal da Bahia), Vanessa Coêlho de Moraes
Autoria: O povo Kiriri é uma etnia do Nordeste, localizado no município de Banzaê-BA. Possuem território homologado de 12.320 hectares, com quase 4 mil indígenas vivendo em 13 aldeias. Pude fazer algumas caminhadas nas “matas” do território. Nessa apresentação busco demonstrar o que observei que eles aprendem. Notei uma relação estreita entre o aprendizado da “ciência do índio” e caminhar na serra. A “ciência do índio” é o conhecimento oriundo dos antepassados Kiriri, os quais hoje habitam as serras. Entendo “habitar” nos termos de Ingold (2015): como um modo de criar múltiplas relações com o contexto em um emaranhado que se movimenta na inter-relação entre as coisas e os seres. Entendo as serras Kiriri como um espaço de comunicação entre Kiriris e seus antepassados. Muitos rituais são feitos nelas, como o Toré e a “Concentração”: ritual em que ficam sentados, fumando seus cachimbos e atentos aos sons das folhas, do vento e dos pássaros, a partir dessa concentração, adquirem conhecimentos. Pude perceber assim como Durazzo (2019) que há uma pedagogia da mata: um processo de aprendizado não só com os seres que ali habitam, mas com a própria mata em si, enquanto agente do saber, que permite uma maior compreensão da “ciência do índio”. Isso ficou nítido na caminhada que fiz em direção a “Pedra Iscrivida”, local considerado um mistério para os próprios índios, pois nessa pedra existem palavras que são identificadas pelos Kiriri como sendo da língua dos seus antepassados, a qual conhecem algumas palavras e buscam “retomar”, inicialmente ao ampliar seu léxico. A “Concentração” é um dos momentos que fazem isso, aprendendo seu idioma com/na mata. Nesse work busco apreender “a mata” como uma paisagem que possibilita o aprendizado linguístico, pois nela mesma se encontram expressões linguísticas e aprendem na/com a mata a se comunicar com alguns seres que habitam nela, bem como, entende-los. Exemplo disso é minha chegada a “Pedra Iscrivida”, onde tiramos muitas fotos e, em uma delas fotografamos o “dono” (entidade responsável pela proteção de dada localidade) desse lugar: à primeira vista era apenas um borrão de luz, mas ao mostrar essa fotografia para diferentes pessoas Kiriri, fui informada que tratava-se do “dono” ou de algum outro “invisível” (categoria genérica para falar de entidades que habitam as matas), o qual ironicamente apareceu de modo visível em uma foto. O que nos leva a concluir a existência de um “dono” protegendo o local que existem registros da língua dos antepassados Kiriri. Buscarei apresentar com fotos o que é a paisagem e a partir de Ingold (2015), abordar as serras como um local de múltiplas relações e interações entre seres em movimento. Mostrarei o movimento da pedagogia da mata para o aprendizado da língua Kiriri.
Aterro: histórias, ressurgências criativas e diversidade contaminada em uma paisagem arruinada.
Autoria: Ivan Tadeu Gomes de Oliveira (UFSC - Universidade Federal de Santa Catarina)
Autoria: Nos últimos 50 anos, Florianópolis, capital do estado de Santa Catarina, localizado na região sul do Brasil, vem acumulando intensas e inumeráveis perturbações humanas. Em ritmo acelerado, os eventos de perturbação com gênese intra e extra locais contribuíram e continuam a contribuir para a configuração atual de sua paisagem, impactando fatal e violentamente os modos de vida – humanos e não humanos – que com a ilha se desenvolveram ao longo de séculos. Resultado do projeto modernista brasileiro da segunda metade do século XX, a expansão da malha rodoviária e os planejamentos urbanistas desde então elegeram os automóveis como paradigma primordial de desenvolvimento das cidades. Seguindo a mesma toada, a política de desenvolvimento de infraestrutura e mobilidade do Estado catarinense ignorou o potencial propiciado pela superfície marítima da ilha-capital e empreendeu mega projetos, como o aterro para ampliação das margens insulares e continentais do canal central e a construção das pontes Colombo Machado Salles e Pedro Ivo Campos - ambas servindo especialmente ao propósito de ampliar a malha rodoviária entre a ilha e o continente. Esses empreendimentos foram – e são - responsáveis por perturbações aceleradas que alteraram consideravelmente a paisagem - não apenas do centro da ilha, mas de grande parte das baías sul e norte – arruinando diversos ecossistemas humanos e não humanos. Minha pesquisa de mestrado se debruça sobre alguns desses efeitos, catando e recontando histórias de ressurgências criativas de vidas em coordenação, que têm como ponto de contato a paisagem arruinada da baía central. Não apenas histórias de morte e devastação: mas também de reinvenções e teimosia, apesar de tudo.
Bagunça de passarinho: reflexões sobre paisagens sonoras desde os Yanomami Yawaripë
Autoria: Marina Sousa Lima (UNICAMP - Universidade Estadual de Campinas)
Autoria: O objetivo deste artigo é pensar alguns dos elementos que compõem a paisagem sonora da porção leste da terra indígena Yanomami-TIY. A partir da potencialidade conceitual de paisagem sonora (soundscape) elaborada por Murray Schafer (2001), descreveremos operações sonoras de transformação da paisagem nas regiões do Apiaú e Ajarani, na TIY. Uma paisagem sonora é constituída a partir de eventos ouvidos: o canto de um pássaro, a conversa entre os mais velhos, o ruído de aviões e motor de energia, a correnteza do rio tocando pedras no caminho, o choro de uma criança. O caráter dinâmico e transformável da paisagem sonora amazônica será analisado, seguindo a conceituação deste autor, a partir dos aspectos dos sons que a compõe, considerando que sejam relevantes desde sua singularidade, preponderância e quantidade. Em “A queda do céu” (KOPENAWA; ALBERT, 2015), Kopenawa oferece uma compreensão nativa do sistema macrossocial dos brancos, uma teoria crítica do outro, e uma definição específica para capitalismo. O estranho que chega e promove a destruição da terra e da floresta criada por “Omama”, demiurgo Yanomami, é tido conforme um animal voraz, “comedor de terra”. Tal como “porcos-do-mato” promovem a alteração da paisagem por meio de suas escavações na terra e pela utilização de mercúrio nos rios. Os cantos dos “xapiri”, espíritos e animais ancestrais, que habitam a floresta desde o “tempo outro” silenciam. A floresta é tomada pelo barulho das escavadeiras e das máquinas que iriam construir a Perimetral Norte, ou parte dela. A partir disto, descreveremos eventos ouvidos que se mostram relevantes na composição da paisagem sonora dos Yanomami, de modo a contribuir com o entendimento da vida acústica desta localidade.
Como amar uma planta: experiência, agrobiodiversidade e relações multiespécificas no semiárido paraibano
Autoria: Gabriel Holliver Souza Costa (UFRJ)
Autoria: Baseado em um engajamento etnográfico desde 2015, o presente artigo pretende oferecer uma descrição dos sistemas agrícolas tradicionais na região do Médio Sertão da Paraíba. Dividido em quatro partes, no primeiro momento descrevo a história, contextualizo a paisagem local e esses agricultores que se autodenominam por ‘agricultores experimentadores’. Aqui, o conceito nativo de ‘experiência’ é central para compreensão de suas práticas. Em seguida me concentro nos roçados sazonais de milho e feijão, onde ressalto sobretudo a agrobiodiversidade presente nestes cultivares. Posteriormente, quando meu alvo se torna o cultivo de arroz vermelho, o que vem a superfície é sua complexa história e as relações multiespecíficas presentes nestes jardins cultivados. Por fim, abordo de maneira mais ampla as ‘sementes da paixão’, quando enfatizo este gênero de conhecimento tradicional, estabeleço relações com parentesco e introduzo em minha reflexão a ideia de amor multiespecífico.
Inventário Fantasma da Paisagem: Imagem-Ruína e a Estética do Luto pela Cidade no Recife Contemporâneo
Autoria: Fabiano Lucena de Araujo (UFPE - Universidade Federal de Pernambuco)
Autoria: A presente comunicação busca uma reflexão em torno das imagens engendradas por uma classe artística-intelectual atuante no Recife, em interlocução com os a(r)tivismos relacionados à agenda do Direito à Cidade, segundo a concepção de Henri Lefebvre, cuja aplicação insere-se numa posição estética-política que entrevê o espaço urbano público como festa ou obra de arte. Para além de uma evidência desta pauta proporcionada a partir de 2012 pela comunidade virtual Direitos Urbanos e o Movimento Ocupe Estelita, há uma tradição do pensamento crítico recifense preocupada com a manutenção de um caráter da cidade, nos termos freyreanos, que remonta ao início do século XX, em reação às intervenções urbanísticas, assumindo uma postura crítica da modernidade e o seu modelo resultante de progresso. Dialogando com uma herança crítica dos intelectuais inspirados em Gilberto Freyre e ultrapassando o Ocupe Estelita, o contexto contemporâneo da presente pesquisa de doutoramento realizou uma imersão no contexto das efervescentes ocupações do espaço público durante os anos de 2015-2018, as quais alcançaram um ápice no contexto pós-golpe/impeachment da presidente Dilma Rousseff. Esta tradição do pensamento crítico,relativa a um posicionamento de enfrentamento e defesa de uma identidade urbana, está inscrita num diagnóstico formulado por Jacques Rancière, o qual aventa que um regime estético-político predominante na contemporaneidade caracteriza-se por um processo de luto e que converge numa melancolia de esquerda, segundo Enzo Traverso. As imagens geradas neste contexto tendem a ser uma paisagem das ruínas, representando uma alegoria da instabilidade moderna ou uma imagem-tempo, de acordo com Seligman-Silva ou Didi-Huberman. Estas imagens, que serão analisadas neste artigo, fazem parte de a) produções audiovisuais: Aquarius (2016) de Kleber Mendonça Filho, cineasta e organizador do Festival Internacional Janela de Cinema, b) de fotografias dos agitadores culturais promoventes de festas urbanas, Marília Benevides e Jota Nogueira, autores da festa-manifesto Pérola Pulsante, a qual propõe a ocupação itinerante de espaços subutilizados em áreas degradadas ou abandonadas da região central do Recife; alimentam também páginas públicas nas redes sociais dedicadas à festa ou aos projetos relacionados onde registram imagens da cidade com a mesma finalidade de dar visibilidade ao patrimônio material e imaterial (Jota Nogueira: Antes que Suma/Só vê quem vai a pé e Marília Benevides: A Vida no Centro) e c) obras de artistas visuais: especialmente, Bruna Rafaella Ferrer, autora do Guia Comum do Centro do Recife, livro que mobilizou um coletivo de artistas visuais em prol de um inventário de lugares e práticas afetivas em situação de abandono, ruínas simbólicas ou físicas.
Marcas de encantados: arqueologia etnografica sobre as paisagens do Lago Amanã, Amazonas.
Autoria: Jaqueline Gomes Santos (UFMG - Universidade Federal de Minas Gerais)
Autoria: Uma abordagem pulsante na arqueologia amazônica tem entre seus objetivos produzir narrativas sobre a milenar história de ocupação indígena da região e demonstrar a amplitude das transformações antrópicas sobre a biodiversidade. A recorrência de ocupações contemporâneas nos sítios arqueológicos tem sido parte da agenda de pesquisas, enquanto a ecologia histórica tenta elucidar como se dão empiricamente relações entre humanos e natureza, a arqueologia busca compreender os contextos históricos e sociais nos quais as transformações sobre aquele bioma parecem se intensificar. Na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Amanã, Unidade de Conservação localizada próximo à confluência dos rios Japurá e Solimões, no Estado do Amazonas, venho desenvolvendo um estudo sobre como as paisagens são construídas e transformadas por comunidades ribeirinhas, elegendo como vetores os lugares significativos para além dos sítios arqueológicos. As existências de encantados e outros seres não-humanos são tão factíveis que estratégias são tomadas para evitar o encantamento das pessoas. Nesse contexto é possível reconhecer nas paisagens marcas desses seres, como por exemplo, vestígios da mobilidade da cobra-grande impressos no surgimento de banco de areias, caídas de terra, mudanças nos cursos hídricos e mesmo na formação de ilhas vegetais. Como arqueóloga com engajamento etnográfico precupo-me com as relações mais amplas das pessoas e a materialidade, e quero apresentar neste work informações sobre aspectos da vida cotidiana e afetiva em Amanã, buscando articulá-las às formas de territorialidade. Elas englobam relações com o ambiente ecológico, conferindo às paisagens significados multidimensionais. Lugares têm donos e histórias nas quais está descentralizada a exclusividade das marcas humanas para falar sobre o passado e transformações vividas. Enquanto a Arqueologia ao associar o processo de transformação de paisagens aos modos de vida de populações tradicionais, traz profundidade histórica a tais aspectos, ela ainda ignora uma extensa rede de relações entre dimensões que ultrapassam o binômio natureza e cultura. Iniciativas de pesquisas vêm experimentando com sucesso formas de ampliar a materialidade foco das análises arqueológicas na região - seja através dos estudos de formação de solos antrópicos, do manejo agroflorestal, domesticação de plantas e construção de florestas antrópicas - contudo, vejo que há possibilidades de uma análise alternativa. O exercício é considerar não somente critérios ecológicos para dar sentido à formação de lugares de gente humana, mas contemplar uma dimensão ontológica das relações estabelecidas entre as pessoas e suas paisagens que são povoadas por muitos mais seres que o registro arqueológico tradicional permite visualizar.
O mangue e seus entrelaçamentos de vida: maré, marisqueiras e mariscos (Matarandiba - BA)
Autoria: Renata Freitas Machado (UFPE - Universidade Federal de Pernambuco)
Autoria: De longe, desde o porto, posso avistá-las em posição agachada. Elas dão um outro colorido ao cinza da lama da maré vazia. Caminham de um lado ao outro, se agacham por um tempo e, em seguida, vão a um outro ponto, se agacham, cavam e esse movimento dura horas. Horas suficientes para que a maré, de maneira quase imperceptível, retome seu espaço e cubra essa lama já marcada pelos passos e pelos incessantes movimentos feitos pelas marisqueiras. As marcas de uma jornada de work. Compreendo mais de perto o movimento que elas fazem e a velocidade com que fazem. Escuto a fricção da faca sobre as cascas do marisco. Vejo os baldes quase cheios de mariscos que resultam de uma longa jornada. Esta breve descrição condensa a movimentação das mulheres marisqueiras na maré vazia. A mariscagem é uma atividade realizada por mulheres, no mangue ou na beira do mangue, entre as marés de enchente (preia-mar) e vazante (baixa-mar). Nas marés de vazante, as marisqueiras saem com panos enrolados na cabeça que dão o equilíbrio aos baldes. Elas retornam na maré de enchente, por volta de 6 horas depois. Ao chegar a casa, o work continua: este é o momento de escaldar o marisco no fogo a lenha e catar casca por casca com a ajuda das comadres, vizinhas, filhas e netas. Esta proposta trata da movimentação das mulheres marisqueiras entre a maré e a casa para realização das atividades de mariscagem na Vila de Matarandiba, Bahia. Refiro-me à movimentação que envolve as mulheres no cotidiano da mariscagem que se associa à movimentação de mariscos e crustáceos relacionado à movimentação das águas. O contexto de pesquisa é a comunidade de Matarandiba, localizada no estuário do rio Jaguaripe, que desemboca no Oceano Atlântico, na Baía de Todos os Santos. A maioria da população se autodeclara negra, segundo dados do IBGE. Os habitantes da comunidade vivem da pesca e da coleta de marisco. Estas atividades são divididas de acordo com o gênero, de modo que os homens são responsáveis pela pesca e as mulheres pela mariscagem. Esta proposta é um desdobramento da pesquisa realizada no doutorado sobre a comunidade de Matarandiba e a sua relação com a morte, os mortos e a maré. A tese forneceu uma etnografia sobre as narrativas e práticas das marisqueiras e pescadores da Vila de Matarandiba. Mostrei que a profunda imbricação entre morte e vida repercute nas relações de parentesco, experiências e técnicas pesqueiras elaboradas pelas pessoas na comunidade.
Paisagem, memória e transformação a partir dos Hupd´äh do alto rio Negro.
Autoria: Rafael Moreira Serra da Silva (Museu do Índio)
Autoria: Com o propósito de oferecer uma explicação propedêutica acerca do quadro clínico da neurose obsessiva, Freud (1909 [2013], p.174-175) tomou certa vez como pano de fundo o urbanismo de Londres, as suas ruas e monumentos antigos, como recurso analítico. É como se o neurótico, sugeriu Freud ao público, passeasse pelas ruas londrinas revivendo memórias traumáticas por meio dos monumentos históricos erguidos na cidade. Sentindo grande pesar, o sujeito espreitaria a Charing Cross, construída em homenagem à falecida princesa Eleanor no século XII e o The Monument, que recorda o grande incêndio que apossou a cidade em chamas no século XVII. A doença manifestar-se-ia, assim, pela incapacidade de o sujeito esquecer-se completamente de eventos dolorosos, há muito tempo transcorridos, instalados no seu inconsciente. Fixados na paisagem, esses monumentos são como símbolos mnemônicos que se associam as lembranças aflitivas, repentinamente retomadas no presente a partir de acontecimentos específicos. Fazendo contraponto ao caso do neurótico, os mitos ameríndios parecem sugerir que os povos indígenas são obsedados acerca do conhecimento sobre o surgimento de animais, plantas, seres diversos e a humanidade em tempos longínquos, tema explorado com maestria na obra Mitológicas, de Lévi-Strauss. Há uma vasta produção etnológica desde as terras altas as terras baixas sul americanas que ilustra como a memória dos acontecimentos míticos e históricos dos indígenas estão inscritos em rochas, pedras, serras e paisagens diversas ao longo do território (Santos-Granero, 1998; Cayón, 2008; Hugh-Jones; 2012; Ramos, 2018 entre outros). Renato Athias (2018) sugere chamá-los, na região do alto rio Negro, como lugares-monumentos. Sugiro explorar a partir de material etnográfico dos Hupd´äh do alto rio Negro, os espaços de memória na paisagem não como monumentos, no sentido de uma obra que permanece imóvel a observação do sujeito, do que como lugares de passagens portadores de agência humana e não-humana, com o potencial de impulsionar transformações perigosas, que escapam ao controle do sujeito. Ao contrário do neurótico freudiano, que adoece ao não sair de uma memória desperta pelos monumentos, para os Hupd´äh, aprender a reconhecer e a lembrar os eventos e seres associados a paisagens, é importante para evitar e curar doenças ou mesmo para irromper malefícios a outrem (Ramos, 2013, p.53). Em contrapartida, a hipótese que explorarei na exposição é que através do engano ou da equivocação, os Hupd´äh são levados a lugares-outros, passagens, perdendo-se na floresta, na cidade, longe do mundo ordinário habitado por eles, onde impõe-se a necessidade do retorno, com o propósito de evitar a captura ou predação pela perspectiva de seres que habitam espaços e tempos diferentes.
Paisagens do “progresso” e a resistência na terra: perspectivas de futuro para os Munduruku no Médio Tapajós
Autoria: Luísa Pontes Molina (UNB - Universidade de Brasília)
Autoria: Imponentes silos na margem do rio, por onde descem consecutivas barcaças com toneladas de soja. Pick ups encostadas onde deveria haver calçadas. Ruas de asfalto remendado, esgoto, urubus. Lojas de compra de ouro se enfileirando na principal avenida da cidade. Outdoors, cartazes e até estátua de exaltação do garimpo. Nas televisões, em discretas conversas de bar, nos rádios dos taxis e dos ramais de acesso ao rio, a propaganda insistente de mudanças por vir: novos portos para transporte de soja, hidrovias, ferrovias, hidrelétricas, regularização da mineração em terras indígenas. A paisagem do “progresso” no Médio Tapajós interpela a todo momento quem percorre a cidade de Itaituba (PA), como uma espécie de cerco inexorável dos possíveis: com tanto ouro sob a terra, há de se lançar à corrida do garimpo; foi-se o tempo da preservação ambiental, os indígenas não podem mais impedir o avanço da civilização; e como não desejar os investimentos chineses na região? O “desenvolvimento”, essa marcha ininterrupta em só uma direção, seria inescapável – afinal, abriu-se uma estrada no meio da floresta, e não muito depois chegaram àqueles recônditos até mesmo os gigantes do agronegócio. Todavia, a luta do povo Munduruku, que habita a bacia do rio Tapajós há mais de três séculos, aponta para outra direção: opondo-se frontalmente ao que chamam de projetos de morte, em uma complexa crítica cosmopolítica do desenvolvimento, os Munduruku furam continuamente o cerco, criando outras possibilidades de vida e de projetos de futuro – territórios existenciais que têm na terra, na história e na mitologia seus principais pontos de força. O presente work partirá de minha pesquisa etnográfica e aliança política com os Munduruku para pensar algumas dimensões e certos aspectos da luta e da resistência desse povo frente aos vetores geno/etno/ecocidas do “desenvolvimento”. Mobilizarei algumas percepções e preocupações de meus interlocutores, alinhavadas à descrição sucinta das paisagens do “progresso” em Itaituba, para apresentar em mais detalhes a ideia de um “cerco de possíveis” enfrentado pelos Munduruku. Voltaremos em seguida para o que esse mesmo povo ensina a respeito da força política e de vida que tem o entrelaçamento da terra e da cultura – tomada aqui como categoria nativa. Procurarei argumentar que habitar a terra passa por habitar um projeto (ou, quem sabe, um conceito) de vida; é, de partida, uma forma de resistência contracolonizadora, como propõe Antônio Bispo; e é por excelência a via de garantia da autodeterminação indígena, da autonomia em relação ao próprio futuro.
Paisagens interceptadas: sobre fricção e fissuras na/da “terra”
Autoria: Marília da Silva Lima (Unicamp)
Autoria: Na pequena vila de pescadores e marisqueiras de Matarandiba, situada numa ilha homônima localizada na contra costa da Ilha de Itaparica, município de Vera Cruz - Bahia, não é raro ouvir dos moradores mais antigos sentenças como “a terra está secando”, “tá tudo oco aqui embaixo”, “a terra é forte, mas, do jeito que tá, vai rachar”. Tais vaticínios se referem diretamente às atividades extrativistas de uma empresa estadunidense e petroquímica que, desde a década de 70 do século passado, tem a concessão de lavra de sal-gema na região. Os dutos, responsáveis por efetivar as operações de extração e transporte do mineral até a região metropolitana de Salvador, entrecortam mangues e matas até ocultar-se completamente em redes subterrâneas e por entre as águas da maré. Assim, no presente texto, a fim de tecer intersecções conceituais sobre “territorialidade” e “paisagem”, argumento que nesse contexto etnográfico as imputações atuais à esterilidade da “terra” relacionam-se diretamente às percepções nativas sobre a agência desses instrumentos/mecanismos de extração no território.
Pescadores e botos na Barra do Rio Tramandaí: paisagens e transformações urbanas nas paisagens do Litoral Norte do Rio Grande do Sul/Brasil
Autoria: Olavo Ramalho Marques (UFRGS - Universidade Federal do Rio Grande do Sul)
Autoria: Apresento, neste work, reflexões a partir de uma pesquisa etnográfica acerca das territorialidades e paisagens da “Barra do Rio Tramandaí”, onde a foz do rio Tramandaí junto ao Oceano Atlântico compõe um estuário que delimita a fronteira entre Tramandaí e Imbé, municípios do Litoral Norte do Rio Grande do Sul que fazem parte da rede urbana reconhecida oficialmente como Aglomeração Urbana do Litoral Norte. Este território sedia uma relação singular entre humanos e não humanos: a interação entre pescadores artesanais de tarrafa (rede circular) e botos (Golfinhos Nariz-de-Garrafa), que pescam tainhas em conjunto, em um esquema reconhecido como pesca artesanal cooperativa. Esta etnografia, mediada pela produção de imagens em vídeo visando à produção do documentário etnográfico “Pesca do Boto", privilegia a perspectiva dos pescadores artesanais sobre esta paisagem e suas transformações, na curta e na longa duração - uma vez que, para além do que se vê, as paisagens também se constróem a partir do que se escuta, incluindo-se aí o "som ambiente" mas também as narrativas que recompõem seus processos de produção e transformação. Portadores de memórias e saberes quanto aos botos (comportamentos, relações intergeracionais, reações às ações humanas), quanto às paisagens (ventos, marés, ciclos das águas) e suas transformações, os pescadores, em suas narrativas biográficas, remontam memórias e trajetórias de vida que conduzem à compreensão de uma singularidade enquanto grupo, bem como de lógicas e tendências de ocupação, transformação e desenvolvimento do Litoral Norte, tendo em vista o crescimento urbano, a degradação ambiental, a pesca industrial predatória e conflitos gerados em tais processos. Reunindo contribuições de estudiosos tais quais Simmel, Durand, Bateson, Berque, Ingold e Descola, busca-se refletir sobre a paisagem como categoria de análise, uma vez que está em jogo, neste contexto etnográfico, todo um tensionamento e extravazamento dos próprios limites entre natureza e cultura - inclusive da cultura como construto exclusivamente humano. Coletivos de humanos e não humanos se engajam em uma forma social complexa amparada neste território; ao mesmo tempo, a presença das interações interespecíficas compõe a Barra como paisagem dotada de densa singularidade. Pensando a paisagem em seu processo no tempo, uma vez que realizamos uma "etnografia da duração”, como propõem Rocha e Eckert, emerge a projeção de futuros possíveis - cenário em ganha especial relevo, nas reflexões dos pescadores, uma dramática em torno de uma iminente impossibilidades de perpetuação desta prática. Tal percepção tem pautado a busca por mecanismos de valorização da figura do pescador, de preservação ambiental e de registro do Patrimônio Cultural associado à pesca cooperativa.
Sobre outro litoral: as paisagens Mbyá-Guarani na ilha de São Francisco do Sul
Autoria: Marília Pinheiro Rosa de Castro (UFSC - Universidade Federal de Santa Catarina)
Autoria: Partindo do problema da construção de quatro portos privados, acompanhados de obras retroportuárias, no município de São Francisco do Sul (litoral norte de Santa Catarina), proponho reflexões sobre como a ilha e suas distintas paisagens são construídas e pensadas pelos Mbyá-Guarani das Terra Indígenas Morro Alto e Reta. Argumento que essa paisagem é estabelecida a partir de uma cosmo-cartografia complexa, na qual o litoral e as ilhas ocupam lugar privilegiado. Ainda pouco explorado na literatura específica, o mar (para guachu) não só evoca emoções e tem qualificativos múltiplos para os mbyá, como também apresenta lugar importante em suas relações ecológicas e cosmopolíticas, representando, ainda, o que poderíamos chamar de começo da cartografia guarani - yvy akã (o fim da terra). (DARELLA, 2004; LADEIRA, 1991). A contrapelo do que aparentemente sugere o projeto desenvolvimentista para o qual o mar é meio para exportação de mercadorias, para os guarani ele não tem implicações diretas para subsistência: eles não pescam no mar, não se banham no mar, de forma que já me foi alegado, mais de uma vez, que o mar seria uma plataforma cuja principal importância é a contemplação, que acalma e traz vigor. Isso não reduz sua importância, posto que grande esforço é empreendido pelos mbyá para caminharem e viverem próximos ao mar, mas especialmente porque falamos da construção de lugares e paisagens que não são de maneira alguma óbvios. Diversas metáforas e estratégias são mobilizado pelos guarani em explicarnos a questão do invisível por detrás do visível em pedras, montanhas e lugares específicos na ilha de São Francisco do Sul. É o caso de certos componentes da paisagem (como pedras e montanhas) e “espécies espirituais” (WERÁ TUPÃ, 2004) que apenas os xamõi (mais velhos, que detém conhecimento) podem enxergar, ou são vistos apenas em sonhos - cuja invisibilidade, ou caráter centralmente contemplativo, como no caso do mar, não devem ser confundidos como aspectos secundários ou como imaginações/crenças em oposição ao real, material e aos fatos. Assim, como argumento a favor da profundidade e especificidade paisagística mbyá na ilha de São Francisco do Sul, busco começar a refletir, a partir da vivência com eles, sobre uma cartografia guarani que constrói complexas paisagens nos litorais, um tecer paisagístico construído através de avatares míticos e incidências xamânica, bem como por relações ecológicas, sociopolíticas e históricas. Ou seja, tenta-se começar a vislumbrar aqui uma cartografia outra, feita através de metodologias e elementos igualmente diversos.
Uma indústria em ruínas e os ruídos na vida e na paisagem incerta no tempo do Antropoceno
Autoria: Fernando Firmo Luciano (UFV - Universidade Federal de Viçosa)
Autoria: De 2011 para cá estudo os impactos de um grande projeto desenvolvimentista na região do Vale do Aço-MG. Minhas primeiras atenções e impressões focaram na escrita de uma história operária sobre a industrialização do leste de Minas Gerais. Estudei, sobretudo, os operários da indústria do aço, a construção de uma company town, as controvérsias entre uma “modernização” pulsante de um parque industrial siderúrgico e as práticas rudimentares empregadas no funcionamento de máquinas que trabalhavam em plena sinergia destrutiva com seus operadores. Descrevi deslocamentos territoriais, do campo para o parque industrial, e seus efeitos como a formação de uma suposta primeira classe operária industrial no Brasil, formada eminentemente de imigrantes e agricultores. A geração de “homens do aço” que figura em minha tese como coletivo, em sua maioria, estes homens sentiam-se privilegiados ao olharem da janela de suas casas e mirarem a chaminé da indústria (vomitando seus resíduos de pó e fumaça) encravada na paisagem, em suas vidas, há algumas gerações. Entretanto, privatizações, demissões em massa, perda de benefícios e poder aquisitivo, aparição de doenças devido a altas taxas de emissões de metais pesados na atmosfera, rompimento de barragens, seguidos de sentenças científicas de que novos rompimentos de barragens como a de Itabira-MG podem varrer do mapa toda a arquitetura de um sistema mundial produtivo dedicado a cadeia do aço, incluindo seus trabalhadores, soa em uma frequência tão alta e (quase) inaudível para um coletivo diverso que suas ações, engajamentos mostram-se um coro, por vezes, uníssono, ao declararem-se inimigos da empresa levantando a bandeira de que “somos natureza ou não seremos nada”. São vidas que acompanho desde então, unidas a minha por afetos e feitos variados, que tomo como casos-limites para discutir os efeitos práticos de um modelo industrial de acumulação em decadência que continua a arrasar o território e arrastar seus viventes para um futuro agonizante e desesperador.
“O mundo está escrevendo e o povo não está lendo”. Transformações na paisagem e as reações de mulheres no cerrado ao "secamento do tempo"
Autoria: Jacqueline Stefanny Ferraz de Lima (UFSCAR - Universidade Federal de São Carlos)
Autoria: "O mundo está escrevendo e o povo não está lendo", disse-me uma interlocutora de pesquisa certo dia em Uruana de Minas, Sertão Veredas, porção noroeste de Minas Gerais, referindo-se às transformações que têm observado na paisagem no cerrado mineiro. Especificamente naquela tarde em agosto de 2017, referia-se ao desmatamento e ao secamento dos rios na proximidade de sua casa. O desaparecimento das árvores, a diminuição das chuvas, a falta d’água nos rios, as alterações dos caminhos, são elementos igualmente recorrentes nas falas dos moradores do cerrado para chamar a atenção para o "secamento do tempo". Dito brevemente, o "secamento do tempo" se refere às alterações climáticas, dizem, "chove menos", "demora mais a chover", "faz um calorão diferente", "tem mais poeira". Também se refere às mudanças na paisagem: "não tem mais árvores", "os rios estão secos", "os rios não estão no mesmo lugar", "mudaram as passagens", "os caminhos", "os bichos tão desaparecidos", "não flore como antes". Ainda elucidam transformações na lida diária dos moradores, o envenenamento pelos agrotóxicos lançados nas lavouras monocultoras, a morte do cerrado, as lógicas mercadológicas que ignoram as especificidades de modos de produção locais. Esta proposta de apresentação é uma tentativa de conectar observações sobre as escritas do mundo que o povo não lê, para se inspirar na frase transcrita acima, e que são formuladas distintamente por outras interlocutoras de pesquisa que vivem em meio ao agronegócio e aos programas com expectativas desenvolvimentistas atuantes no Brasil central, especificamente no noroeste de Minas Gerais. Para tal, a comunicação se concentrará nas questões acerca das transformações da paisagem, da terra, das águas, especificamente, nos modos como algumas mulheres têm chamado a atenção para o "secamento do tempo" no cerrado mineiro. Por meio das ideias por elas formuladas de se "abreviar", "conhecer o cerrado" e "não ser escrava do sistema", a intenção é fazer da escrita antropológica um meio de ecoar junto ao chamado que fazem as mulheres no Sertão Veredas.
A Lagoa de Itaipu (RJ) desde um manguezal convidado-intruso
Autoria: Gisele Moura Camargo (UFF - Universidade Federal Fluminense), Viviane Fernandez
Autoria: Esta pesquisa objetiva compor a paisagem da Lagoa de Itaipu a partir da controvérsia em torno do manguezal que se desenvolve em suas margens. Afinal, seria ele convidado ou intruso? Estudos técnicos explicam que a chegada do manguezal à Lagoa foi consequência de obras urbanísticas previstas no projeto de desenvolvimento turístico da região, que alteraram a dinâmica natural do ambiente, favorecendo o crescimento propágulos de mangue oriundos da Baía de Guanabara. Seria o manguezal, portanto, um intruso a denunciar a ação antrópica desde a década de 70. Simultaneamente, caranguejos, aves, peixes e moradores do entorno vieram a interagir com o manguezal. No final dos anos 90, moradores iniciaram ações de plantio, tornando-o um convidado a compor a paisagem. Para além dessa controvérsia, a situação crítica do sistema lagunar e a tomada de decisão na esfera pública têm mobilizado diversos atores em torno da conservação do ambiente e gerado conhecimento sobre os manguezais. Desse coletivo emaranhado pretendemos não distinguir natureza e representações sociais, seguindo a abordagem da antropologia das ciências e das técnicas e os pressupostos teórico-metodológicos da teoria ator-rede. O material empírico recolhido consistiu de 30 anos de acervo jornalístico, postagens do movimento “Lagoa para Sempre” nas redes sociais, visitas ao manguezal e entrevistas com pescadores, ativistas, moradores, pesquisadores, entre outros. Evidenciamos as distinções entre mundos que consideram o manguezal convidado ou intruso e as seguimos para compor progressivamente um mundo comum (Latour), ou a paisagem como transfiguração (Descola), ou uma malha resultante do encontro de inúmeras linhas (Ingold). O manguezal convidado-intruso é a reunião de múltiplos manguezais: o manguezal originado da salinização das águas da lagoa; o manguezal plantado, que age como instrumento de educação ambiental e como objeto de financiamento público para a restauração ecológica do entorno da lagoa promovido pela cidade de Niterói; o manguezal argumentativo, que age ao proteger o sistema contra a possibilidade de posse e uso da área; o manguezal assoreador, que apresenta-se como ponto de preocupação por promover a retenção de sedimentos e, o manguezal dotado de valor estético. A composição deste híbrido evidenciou questões fundiárias resultantes da venda de lotes do projeto de desenvolvimento territorial, a poluição hídrica e o apelo silencioso da população pela melhoria da qualidade de água e do sistema de saneamento básico da cidade. Porém, argumentamos e concluímos que, para sanar tais questões, o ponto de vista do manguezal convidado-intruso poderá nos auxiliar a compreender o real significado de abraçar a lagoa "para sempre", como reclamou a ação ativista (nov. 2017) em prol de sua conservação.