GT 16. Antropologia, Saúde Pública e fabulações cosmopolíticas: etnografia e possibilidades simbiopoéticas de cuidar/fazer o mundo.

Coordenador(es): 
José Miguel Nieto Olivar (USP - Universidade de São Paulo)
Maria Paula Prates (UFCSPA - Fundação Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre)

Colocamos em discussão três sistemas de produção de conhecimentos: a antropologia, a saúde pública e as cosmopolíticas. Trata-se de sistemas não equivalentes com relações não simétricas. Assumimos como ponto de vista a antropológia, principalmente de base etnográfica. Olhamos para a saúde pública como um campo fundamental de ação política e de gestão de novas e antigas formas de governo. Entendemos o marco cosmopolítico como um conjunto analítico e proposicional contemporâneo de extrema relevância para pensar “o mundo” nos seus limites e multiplicidades, em relação com formas possíveis de produção de conhecimento. Nos perguntamos: O que a antropologia brasileira contemporânea, objeto múltiplo e em franca transformação, tem a dizer sobre as relações possíveis entre antropologia e saúde pública no marco do conjunto de transformações e desastres que tem sido compreendidas como “fim do mundo”, Antropoceno, entre outros? Como a saúde pública pode se ver afetada no atravessamento de perspectivas antropológicas e etnográficas no marco do Fim do Mundo? Quais as possibilidades de uma antropologia da saúde, com sua tradição de corpos, curas, perturbações, saberes e emoções, no marco das propostas em curso sobre intervenções cosmopolíticas e intrusões de Gaia? Como alimentar etnograficamente os processos de cuidado, resistência, intervenção, intromissão e (re)feitura d/nos fins do(s) mundo(s), enquanto abre-se a possibilidade de reinvenção da antropologia?

Palavras chave: cuidado; diferença; relação
Resumos submetidos
"A parteira faz simbiose": a parteria tradicional e os campos de saberes
Autoria: Elaine Müller (UFPE - Universidade Federal de Pernambuco)
Autoria: Atuando em suas comunidades, as parteiras tradicionais prestam serviços de cuidado que vão muito além da assistência obstétrica. Nos cuidados com a saúde, assistem mulheres que querem engravidar ou tiveram aborto, cuidam da saúde das crianças, aconselham sobre aleitamento e nutrição, encaminham para a assistência hospitalar os atendimentos que "não são para elas". Resolvem questões burocráticas relacionadas ao registro civil e o reconhecimento da paternidade, mediam conflitos. Acompanham, avaliam e colaboram com o sistema oficial de saúde. Dona Prazeres, parteira de Jaboatão dos Guararapes, resume os múltiplos talentos das parteiras tradicionais dizendo que elas fazem uma simbiose, e estão em todos os lugares. A ideia de simbiose, como relação entre seres de espécie diferentes na qual ambos se beneficiam, no entanto, pode ser utilizada como chave conceitual para uma necessária discussão epistemológica sobre o campo dos saberes obstétricos que hoje chamamos de tradicionais. As parteiras aprendem na oralidade, de uma geração a outra, e na prática, observando cada atendimento em suas particularidades, chegando a um amplo repertório de saberes e práticas. Mas também dialogam com saber técnicos da biomedicina e com discursos da humanização do parto, atualizando sua assistência. Dona Prazeres, que aprendeu o ofício de parteira com a mãe e depois cursou Enfermagem obstétrica, diz que descobriu que o entendimento não era tão diferente, apenas a linguagem, e "misturou os dois sem machucar nenhum". Nesse work, gostaria de refletir sobre essa simbiose de saberes e práticas como uma categoria epistemológica útil para o entendimento do ofício de parteira, sua relação com outros saberes com os quais se relaciona de forma hierarquizada, e, consequentemente, o caráter de resistência de seu campo.
"ALÉM DE ÍNDIO AINDA É DOIDO": uma abordagem etnográfica sobre um indígena em uma instituição total
Autoria: Mariana Corrêa Soares Muniz (FAP - Faculdade do Baixo Parnaíba)
Autoria: Este artigo discute a relação entre saúde mental e povos indígenas, no contexto de uma instituição total. Em 1999 a saúde mental indígena passou a ser uma pauta mais frequente com a implementação dos Distritos Sanitários Indígenas pela Fundação Nacional de Saúde (FUNASA). Alcoolismo, uso de drogas sintéticas, depressão e suicídio são fatores que nas últimas décadas vem contribuindo para que indígenas recebam cada vez mais diagnósticos de doença mental e sejam encaminhados para tratamento especializado fora de seus territórios. Nesse contexto, em 2007 foi criada a Política de Atenção Integral à Saúde Mental das Populações Indígenas (PAISMPI) que aponta como diretriz assegurar a saúde mental destes povos através de medidas adequadas que respeitem sua especificidade étnica e garanta um atendimento específico e diferenciado. A análise aqui desenvolvida aborda duas questões: entender como políticas de ordem geral – particularmente as voltadas para a saúde mental - podem gerenciar ações destinadas a povos específicos; e compreender como se dá a dinâmica de atendimento em saúde mental para indígenas que são encaminhados para fora de seus territórios. Toma como base a situação de um indígena Tentehar/Guajajara internado em uma instituição manicomial cinco vezes entre os anos 2016-2019. Para entender a dinâmica de atendimento, analisa os prontuários de uma Clínica localizada em São Luís (MA). Também foram realizadas algumas entrevistas semiestruturadas com profissionais que tiveram contado com o indígena durante seu período de internamento. Conclui que a Clínica – como uma instituição total – produziu impactos destrutivos sobre a vida do sujeito indígena, distanciando-o de objetos e sentimentos que o ligam a dimensão do seu “eu”. A PAISMPI (2007) mostrou-se ineficaz no que tangencia o sistema de monitoramento em ações de saúde mental indígena e na formação permanente de recursos humanos.
A saúde autônoma no movimento zapatista: cosmopolítica e organização comunitária
Autoria: Ana Paula Massadar Morel (UFF - Universidade Federal Fluminense)
Autoria: O Exército Zapatista de Liberação Nacional (EZLN) e suas bases de apoio são formados predominantemente por indígenas falantes das línguas tzeltal, ch’ol, tzotzil e tojolabal que vivem na região de Chiapas, no México. O movimento veio a público a partir do levantamento armado de 1º de janeiro de 1994, quando reivindicaram o fim das grandes propriedades de terra e dignidades para os povos indígenas e pobres, em um contexto de racismo e exploração do work indígena. Desde então, o movimento é conhecido mundialmente por construir todo um modo de existência autogestionado e independente ao Estado mexicano e às instituições privadas, o que se convencionou chamar de autonomia zapatista. A autonomia está presente nas mais diferentes esferas da vida zapatista: educação, justiça, governo, work, comunicação e saúde. A partir de work etnográfico realizado na região, buscaremos explorar como se dá a construção cotidiana da saúde autônoma, tendo como foco as concepções de saúde em jogo e sua relação com a organização comunitária. A interlocução com promotores autônomos de educação e saúde possibilitou conhecer um pouco de uma potente “imaginação conceitual” anti-capitalista e descolonial que compõe a própria noção de saúde em tzotzil. A saúde é ocupada pela noção de terra, já que para ter saúde é preciso pertencer a um cosmos, permeado pelo respeito recíproco com os mais diferentes seres, em uma luta constante para engrandecer o ch’ulel (espírito) e com isso caminhar para o lekil kuxlejal (bem-viver). Para colocar em prática esses princípios, o cuidado em saúde é protagonizado pela organização autônoma do movimento que dialoga diretamente com os saberes indígenas. As causas, problemas, possíveis soluções da área de saúde devem ser debatidas nas assembleias, que através da sua auto-organização apontam e executam as ações a serem feitas. Os cuidados da saúde não são responsabilidade de um corpo de especialistas afastado da comunidade que detém o conhecimento biomédico - ainda que possam dialogar também com os saberes da medicina ocidental -, tampouco de indivíduos isolados que devem transformar seus hábitos para ter um “estilo de vida saudável”, mas da organização comunitária atravessada pela relação com um cosmos, uma terra.
Cenários complexos: Leishmaniose e mudança sócio-ambiental na Terra Indígena Wajãpi
Autoria: Joana Cabral de Oliveira (UNICAMP - Universidade Estadual de Campinas)
Autoria: Essa apresentação parte de uma experiência de pesquisa sobre o padrão epidemiológico de leishmaniose tegumentar na Terra Indígena Wajãpi (TIW) - Amazônia brasileira. A leishmaniose é uma doença tropical cujo ciclo envolve diversos agentes: o protozoário; os animais (em geral mamíferos) reservatórios; e o vetor (flebotomíneos) que repassa o parasito aos humanos. O aumento de casos dessa doença tem se mostrado diretamente relacionado aos impactos ambientas, que alteram as relações ecológicas que compõem o ciclo, bem como padrões sociais, aumentando a exposição das pessoas, caracterizando-se como um problema de saúde pública altamente complexo. As pequenas centrais hidroelétricas e o desmatamento em torno da TIW, bem como a sedentarização promovida por políticas do Estado e as mudanças nos padrões de ocupação territorial, parecem estar diretamente ligadas ao aumento da doença entre as famílias wajãpi. Sendo realizada por uma equipe multidisciplinar (bióloga, epidemiologista, veterinária e antropóloga) a pesquisa ainda contou com a ampla participação de alguns wajãpi. Todos esses fatores (o ciclo da doença, a relação com questões ambientais e sócio-culturais, bem como o processo de pesquisa que integra uma serie de atores distintos) nos conduziu a uma enorme complexificação das variantes ligadas à doença, apontando para a impossibilidade de se operar com as grandes divisões de Natureza e Cultura, Ciência e Saberes Tradicionais, Estado e Contra Estado, Fatores Sociais e Fatores Ambientais etc. Além de apresentar aspectos do desenvolvimento da pesquisa, pretende-se discutir as dificuldades enfrentadas nesse processo advidas dessa densa e complexa rede de atores agentes não-humanos.
Cosmopolíticas ao redor dos medicamentos: reflexões a partir da medicalização dos Povos Waiwai
Autoria: Rui Massato Harayama (UFOPA - Universidade Federal do Oeste do Pará)
Autoria: Apresentamos dados preliminares da etnografia conduzida entre povos waiwai da região do rio Trompetas-Mapuera, cujo tema central é a interface entre saúde mental, xamanismo e medicalização. Apesar da reflexão sobre saúde mental entre povos indígenas encontrar referências desde a sua fundação ainda observamos a presença do modelo explicativo no qual as peculiaridades de comportamentos e ações são justificadas como elementos ‘culturais’ que devem ser respeitados e preservados ao mesmo tempo em que há perpetuação da medicalização do cuidado na implementação do modelo de atendimento diferenciado, que é mediada pelos equipamentos e atores da medicina ocidental e que muitas das vezes são recebidos junto a outros equipamentos ocidentais, como a escola e a religião. No caso waiwai, foi no processo de evangelização na década de 1950 por missionários americanos que trouxe consigo o discurso de que o feitiço e o xamã deveriam ser descontinuados. Essa mudança é datada historicamente, na fala dos próprios waiwais e na literatura, e é a partir da conversão do grande líder espiritual Ewka que a prática xamânica perdeu força e foi sendo associada à prática demoníaca, e proibida entre os convertidos. Entretanto, pode-se observar que, apesar de interdito, na etnografia e em conversas cotidianas, é recorrente a explicação do feitiço como etiologia de distúrbios mentais. A ação do feitiço que gera doenças em uma comunidade oficialmente convertida ao cristianismo coloca em tensionamento ruídos que persistem no processo terapêutico, sobretudo na prática medicamentosa alopática normalmente preconizada pelas lideranças políticas - evangélicas. As falas das lideranças que solicitam medicamentos fortes para o trato de dores de cabeça, e dores em geral, retoma a discussão da bibliografia que indica que a conversão foi um processo de apaziguamento das guerras e mortes causadas pelo feitiço. A promessa da conversão parece estar ligada a um mundo sem dores mediada pelo uso de medicamentos, sobretudo os injetáveis. Um dado que associado ao projeto capitalista contemporâneo associa-se diretamente ao mundo dos bens e insumos de saúde ocidental. O que os dados etnográficos demonstram é que o processo terapêutico ocidental não é exitoso em todos os casos, entretanto, assumir que a operação de feitiços causa doenças mentais é assumir que o processo de conversão é falho ou incompleto e, consequentemente, a cosmopolítica com o mundo dos brancos, podendo gerar um processo de queda de prestígio étnico em relação às outras etnias da calha norte do Pará que foram ‘waiwainizadas’ ou trazidas ao mundo ocidental por intermédio dos waiwais. O que os dados indicam é que a ausência do controle da dor pode gerar um desequilíbrio cosmopolítico com o mundo dos brancos e das outras etnias da região.
Cosmopolíticas do cuidar: mulheres indígenas e o Estado
Autoria: Fabiana Maizza (UFPE - Universidade Federal de Pernambuco)
Autoria: Com inspiração na crítica feminista e na emergência de uma antropologia para além do humano, e com base em meu material etnográfico sobre as relações que um grupo ameríndio, os Jarawara, estabelecem com plantas cultivadas, e em especial o tabaco, procurarei pensar uma “cosmopolítica do cuidar” Jarawara em contraste com as noções ocidentais de família. O foco das minhas preocupações estará nas contradições intrínsecas ao conceito do cuidar, tal como recentemente proposto por Bellacasa (2017). Em paralelo, procurarei fazer uma reflexão sobre o conceito de parentesco tal como ele parece ser concebido inicialmente pelo Estado brasileiro – a partir da centralidade do ideal da ‘família monogâmica heterossexual reprodutora’ – em contraste às concepções de coletivos indígenas amazônicos contemporâneos. Procurarei tensionar os arranjos estatais através de problemas colocados pelo “parentesco” do povo indígena jarawara; onde conceitos como multiparentalidade, relações com seres não-humanos (tais como a parentalidade com plantas), casamentos “poligâmicos”, uma sistemática criação por “adoção” de crianças e outros seres, dentre outras formas, coloca questões que desestabilizam as noções de família e cuidado, tal como propostas nos modelos do Estado brasileiro.
Etnografias da reincidência: epidemias, a (des)construção da Política Nacional de Atenção à Saúde de Povos Indígenas e o Primeiro Distrito Sanitário Especial do país
Autoria: Adriana Romano Athila (Fiocruz - Fundação Oswaldo Cruz)
Autoria: Este work toma a “epidemia”, decorrente da “invasão garimpeira” na década de 80, e os Yanomami, em sua especificidade de povo de recente contato frente à possibilidade de “genocídio”, como motores políticos transversais a diversos agentes relacionados à criação do Distrito Sanitário Yanomami (DSY), nos termos de um “evento crítico” (Das 1997). Acionado por diferentes campos e tempos, este evento é capaz de deflagrar outros parâmetros de ação histórica, colocando talvez diferentes questões, com relação a outros eventos no campo das políticas públicas e povos indígenas. Adotando uma etnografia transtemporal, tomamos comparativamente três momentos. O de 1991, quando, em meio a epidemias e sob a invasão maciça de garimpeiros, a criação do DSY corresponde ao primeiro exemplo de reconhecimento formal, pelo Estado brasileiro, da associação entre uma minoria populacional, um território singular e sua saúde. Estas noções estão articuladas nas demandas dos nascentes movimentos indígenas, indigenistas e da reforma sanitária, em convergências relevantes à longa trajetória da saúde indígena diante do aparato jurídico-formal do Estado, de 1991 a 1998, quando a “Lei Arouca” cria as bases legais do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena, dentro do SUS. O de 2010, quando Davi Kopenawa faz uma série de reflexões cosmopolíticas, dialogando com a noção de “epidemia” e a invasão dos Yanomami por colonizadores, missionários e garimpeiros, em “La chute du ciel”. Ali, o xamã parece não conceber o mundo antes das incursões dos Brancos e de suas fumaças de “epidemia”. Desde então seu funcionamento está severamente perturbado: a epidemia e a extinção aparecem como risco permanente. E o de 2019, durante as manifestações contra a municipalização da saúde indígena, na cidade de Boa Vista, unilateralmente proposta pelo Estado. Recebidos com cães e policiais, os Yanomami tomam a praça do Centro Cívico, em frente à câmara de vereadores. Entre outros povos, ali estavam seus diversos sub-grupos, muitas mulheres, dançando/cantando/protestando em sua língua. Davi, pede que o governo não seja covarde e dialogue, respeitando “sua própria lei”. A ameaça epidêmica e o afluxo crescente de garimpeiros chega a patamares análogos àqueles dos anos 80, entre 2019 e 2020. Os Yanomami e sua TI continuam como alvos de políticas de um Estado controvertido e de nacionalismo exacerbado, frentes agropecuárias e, com destaque, grandes companhias e (mesmos) agenciadores minerários no estado de Roraima. Sua integração e a exploração da TI – invadida por milhares de garimpeiros e sob risco epidêmico -, são tratadas como solução econômica para o país. É a reincidência do Estado, no bojo da (des)construção da Política Nacional de Atenção à Saúde de Povos Indígenas, entre outras específicas ao segmento.
O COVID-19 no contexto político brasileiro: tramas, atores e repertórios
Autoria: Thais Rodrigues Penaforte (UFBA - Universidade Federal da Bahia)
Autoria: A emergência do COVID-19 tem confrontado líderes e entidades governamentais e descortinado ações e posicionamentos desses atores frente à essa pandemia. Buscando compreender quais elementos são acionados, no contexto parlamentar da “Comissão Externa destinada a acompanhar ações preventivas da vigilância sanitária e possíveis consequências para o Brasil quanto ao enfrentamento da pandemia causada pelo coronavírus” - CEXCORVI, procurou-se acompanhar como ocorre a edificação do vírus a partir da atuação dos parlamentares brasileiros. O acionamento de dimensões científicas para configuração do cenário pandêmico justificam visões de mundo particulares e que se posicionam de forma a legitimar ou deslegitimar o lugar do COVID-19. Essas controvérsias permitem perceber a extensa rede de mediadores heterogêneos que se conectam ao vírus em debate. Seu status ontológico não se assenta apenas em teorias da Biologia ou Virologia, mas se expressa nas relações intersubjetivas da vida cotidiana. Os agenciamentos do vírus conformam processos de coprodução, tendo como fio condutor os efeitos do vírus na vida social e econômica. Na disputa por disposição de verdades, um agrupamento político se orienta por uma certa “visão técnica” e se instrumentaliza pela medicina baseada em evidências e orientações dos organismos internacionais de saúde pública. A experiência com a COVID-19 se revela a partir do cenário dos hospitais e outras instituições de saúde, das pesquisas cientificas e da própria estrutura social e doméstica. Já outro grupo, reverbera os entendimentos do próprio presidente da república, desprezando a competência do vírus que possui significância apenas por ameaçar as liberdades individuais e o desenvolvimento econômico nacional. Observa-se que o COVID-19 enreda perspectivas sociais, econômicas e formas de conhecimento. Sua natureza viral imprime preocupações com a vida pública e social, centralizando seu debate e canalizando atuações, nem sempre associadas à pandemia. Essa arena de disposições, a partir do legislativo brasileiro, conforma um quadro referencial de múltiplas dimensões. São perspectivas fragmentadas, que criam significados ao COVID-19, nem sempre coerentes ou sustentadas por uma causalidade, mas, a partir de práticas sociais que são negociadas e agenciadas por relações de intercâmbio de interesses e de representação. O COVID-19 encontra relevo nos fragmentos da vida cotidiana e da produção política evidenciando agendas, conteúdo legislativo e alinhamento de demandas.
O cuidado e suas redes: doença e diferença em instituições de saúde indígena em São Paulo
Autoria: Valéria Mendonça de Macedo (UNIFESP - Universidade Federal de São Paulo)
Autoria: 'Cuidado' e 'humanização' são duas palavras intensamente interseccionadas na literatura de etnologia indígena e, de modo bastante distinto, na literatura antropológica sobre saúde. Busco estabelecer conexões parciais (Strathern 1991) entre esses repertórios como modo de fazer visíveis algumas questões concernentes à minha experiência etnográfica na Casai (Casa de Apoio à Saúde Indígena) na cidade de São Paulo. Para muitos indígenas, esse espaço pleno de diferença intensifica a vulnerabilidade inerente ao adoecimento, em que se é habitado por alteridades e seus efeitos transformacionais. Em meio a irredutível singularidade de suas experiências, estar sob cuidado dos brancos constitui um ponto convergente entre os indígenas que vêm a São Paulo para tratamento biomédico. Ser alvo de cuidado implica estar sob o olhar – e, portanto, sob a consideração ou a intervenção – de outrem, mas implica também fazer-se visível a ele, mobilizá-lo de modos específicos, fazer com que ele faça. Este artigo se volta para algumas relações de cuidado em que pacientes indígenas e profissionais de saúde estão ativamente, e diferentemente, implicados. Particularmente no que diz respeito a políticas no campo da saúde indígena, a humanização costuma ser vinculada a proteção e respeito a condições de vida tradicionais e a concepções dos pacientes indígenas concernentes ao processo de adoecimento e seu tratamento. Pautado pelo multiculturalismo, o cuidado humanizado entre profissionais de saúde via de regra implica o reconhecimento da humanidade como fundamento biológico comum (desqualificando hierarquias raciais) e das culturas como direito à diferença (desautorizando hierarquizações culturais). A antropologia, contudo, vem aprendendo com os povos indígenas que cuidado e humanização podem estar diferentemente implicados em ontologias que não incluem premissas biologizantes. Adoecimentos, práticas de cuidado e outras intervenções nos corpos produzem aparentamentos e desaparentamentos, e por extensão, processos (sempre reversíveis, posto que relacionais) de humanização. O paper se volta para como corpos e doenças são feitos, desfeitos ou refeitos por meio de relações de cuidado nessas instituições de saúde indígena. Nos engajamentos envolvendo indígenas e profissionais de saúde que pude acompanhar, o cuidado parece aproximar-se do que Mol designou como espaço heterotópico (2008), marcado por sua incompletude, contingência e por experimentações que mobilizam diferentes conhecimentos, pessoas e materialidades, em processos de tradução mútua que expressam a vulnerabilidade e a potência de compor-se com outros.
O nascer na hora da morte: o parto Mehinako hospitalar e seus aspectos cosmopolíticos
Autoria: Aline de Paula Regitano (USP - Universidade de São Paulo)
Autoria: Esta comunicação tem por objetivo analisar os aspectos cosmopolíticos do nascimento em um cenário de morte iminente (era das catástrofes), a partir do caso Mehinako (Alto-Xingu/MT). Pensar o nascer pode soar paradoxal, haja vista que as previsões dos eventos vividos pelas novas gerações são marcados por políticas de morte, sobretudo no que diz respeito aos povos indígenas. O nascimento é senão um acontecimento marcante, que para o povo Mehinako diz respeito tanto a vida quanto a morte, e que necessita de especial atenção, sobretudo nas novas formas que assume. Na última década, as mulheres deste grupo passaram a escolher parir nos hospitais ao redor da Terra Indígena, ao invés de suas casas na aldeia, justificado dentre outras coisas pelo medo que sentem do nascimento domiciliar desencorajado pelos profissionais de saúde que atendem em área. Essa relativamente nova configuração de parto traz novas questões para esta arena em disputas, onde as ações (possibilidades de vivenciar o fenômeno) são todas negociadas. Como decidir sobre como se cuida e quem cuida de gestantes, parturientes, puérperas e seus bebês quando os entendimentos sobre o que seja cuidado são múltiplos e divergentes? A zona de interferência de entendimentos e práticas do hospital anuncia a impossibilidade de partir de uma noção una de mundo, de saúde, de cuidado, a medida em que ocorre um atravessamento de mundos em um mesmo espaço compartilhado. Em diálogo com a cosmopolítica de Isabelle Stengers e o pluriverso de Marisol De La Cadena e Mario Blaser, este work se volta para o parto indígena hospitalar e acontecimentos a ele relacionados, interessado em compreender o que se passa nos interstícios, onde se encontram perspectivas divergentes; investigar como as relações se estabelecem; além de verificar possíveis respostas — e modos de resistir — aos novos problemas que se apresentam.
Políticas públicas e mundos insubordinados: contribuições da abordagem multiespécie numa etnografia sobre o combate ao Aedes aegypti em Porto Alegre-RS
Autoria: Nathália dos Santos Silva (UFRGS - Universidade Federal do Rio Grande do Sul), Elisa Oberst Vargas
Autoria: Este work argumenta que, no marco das transformações compreendidas como “fim do mundo”, uma abordagem antropológica pertinente à saúde pública é aquela potencializada pelo descentramento do “anthropos”. Apostamos nas “etnografias multiespécie” (KIRKSEY; HELMREICH, 2010) para considerar mundos que se fazem e desfazem no Antropoceno. Descrevê-los, afinal, passa por “repovoar” a antropologia de agenciamentos não só humanos, reorientar a atenção para as zonas de contato (VAN DOOREN, KIRSKEY, MÜNSTER, 2016; RIFIOTIS, SEGATA, 2018) ou, ao menos, reconhecer e conferir relevância ao modo como, no caso de nosso estudo, animais humanos e não humanos têm suas vidas (e mortes) entrelaçadas. Partimos de nosso work de campo para comentar as contribuições de uma abordagem antropológica multiespécie do tema da saúde pública. Entre 2017 e 2018, acompanhamos a rotina de controle de zoonoses relacionadas ao Aedes aegypti na Secretaria de Saúde de Porto Alegre/RS. Embora dengue, zika, chikungunya e febre amarela não sejam consideradas endêmicas nessa região, surtos ocorrem com frequência. A principal ferramenta da prefeitura é o “Monitoramento Inteligente do Aedes aegypti” (MI-Aedes), uma tecnologia digital adotada desde 2012 para coleta de informações (dos corpos) de mosquitos capturados e processamento de análises genéticas e geográficas do vetor e da circulação viral. Esses dados, cruzados com informações sobre casos humanos das doenças, sustentam alertas e indicações de intervenção com inseticida. Sob o signo do risco em saúde pública, o governo da vida humana faz-se através do governo da vida animal e de microorganismos (PORTER, 2013), facilitado por tecnologias digitais (SEGATA, 2017) Na tentativa de descrever o MI-Aedes, o que acompanhamos foi o engajamento de agentes, veterinários e biólogos com insetos, formulários, tubos, substâncias químicas, gráficos, mapas e softwares em uma variedade de composições provisórias. A expectativa de progresso e precisão depositada na tecnologia foi frequentemente contrariada pela insubordinação de mosquitos, vírus e clima - que nem sempre cooperaram com o que “se esperava” deles. Assim, descrevemos processos de produção de conhecimento que se fazem no encontro com mundos que extrapolam e contestam representações científicas e de Estado. Como a própria antropologia se transforma ao tentar descrever esses mundos? Que tipo de esforço etnográfico pode ser conduzido com a aceitação da proposição do Antropoceno? Essas são questões norteadoras de nossa reflexão.
Sobre enforcamentos, envenenamentos e afogamentos: O fenômeno do “suicídio” entre pessoas hupd’äh no Alto Rio Negro
Autoria: Rafaela Waddington Achatz (USP - Universidade de São Paulo)
Autoria: Os Hupd’äh são um povo indígena que vive na região do Alto Rio Negro, às margens de igarapés no interflúvio do Tiquié e do Papuri, rios afluentes da margem esquerda do rio Uaupés. Desde os anos 2000, têm sido notificados casos de suicídio de jovens no Alto Rio Negro, entre indígenas das diversas etnias. As mortes têm ocorrido tanto na sede do município de São Gabriel da Cachoeira, quanto nas comunidades em que as pessoas frequentam a cidade em algum período do ano. O maior índice vem sendo registrado entre jovens hupd’äh. Os principais métodos utilizados são o enforcamento e a ingestão de timbó. Além disso, há inúmeros casos de pessoas alcoolizadas que morrem afogadas, que não são notificados como suicídio, mas deixam margem para ambiguidades. Nos últimos anos, o índice de suicídios no DSEI Alto Rio Negro tem aumentado exponencialmente. Buscando aproximar-me tanto quanto possível das diversas lógicas e sentidos que são levados em conta pelos Hupd’äh e pelos profissionais do DSEI em suas interpretações e experiências destas mortes, pergunto-me se a noção de suicídio é uma boa tradução para classificar estas mortes. A compreensão dos enforcamentos, afogamentos e as mortes por ingestão do veneno de timbó ou gasolina como suicídios, a saber, como mortes intencionalmente autoinfligidas, parece-me insuficiente no contexto do Alto Rio Negro, dado que, geralmente, os indígenas ali compreendem estas mortes como resultados de ataques xamânicos: sopro, estrago ou feitiço. É interessante notar que as explicações de feitiço não se contrapõem necessariamente às explicações que atribuem as mortes a motivações pessoais, conflitos interpessoais e questões sociais. Essas explicações parecem ser diferentes facetas de uma intrincada rede cosmopolítica (Stengers 2011). Assim, as compreensões de que os suicídios são reverberações de violências coloniais se entrelaçam às compreensões de que os suicídios são resultados de ataques xamânicos. Tendo isso em vista, buscarei trazer algumas considerações sobre as conversas que tive com colegas psicanalistas em São Paulo, que compreenderam o fenômeno ora lastreando-se na noção de paranoia ora reduzindo as etiologias e propedêuticas hupd’äh a metáforas ou crenças dotadas de eficácia simbólica. Penso que explicitar os equívocos implicados nessas compreensões e levar nossos interlocutores a sério coloca uma série de impasses e nos deixa numa posição de incerteza que pode ser boa para pensar em propostas clínicas que estejam em maior consonância com as realidades locais, contribuindo para uma maior complementariedade na atenção básica diferenciada.
Transgressão ou revés: disputas e acordos narrativos sobre as vidas e os mortos.
Autoria: Sofia Santos Scartezini (UNB - Universidade de Brasília)
Autoria: As Mortes autoprovocadas carregam consigo a característica marcante de em contextos diversos serem vistas como causas e interpretadas- em muitos casos- como consequências de desequilíbrios cosmológicos e epistêmicos os mais variados. Parto da pesquisa prévia iniciada em meu mestrado em 2016 sobre as mortes autoprovocadas entre a população Karajá de Ibutuna, Ilha do Bananal-TO, estendendo atualmente no doutorado o olhar para outras populações indígenas, repousando o foco nos discursos e atuação dos profissionais da saúde em contextos interculturais. Em campo e através de pesquisa bibliográfica, surgem os dados de que o suicídio não é um consenso e muitos casos indígenas demonstram que o fenômeno pode ser fruto de um ataque de outrem que leva a pessoa a provocar a própria morte ou até mesmo a economia entre vivos e mortos que transformam pessoas –vivas- em moribundas, as narrativas indígenas são diversas. Em materiais oficiais divulgados pelo Ministério da Saúde, que classificam esse tipo específico de morte como “causas externas intencionais” nota-se que há, em muitos casos, a substituição do termo “suicídio”, pelos termos “autocídio” e “mortes autoprovocadas”. Segundo os usos médicos e específicos das áreas de psicologia,os termos atuam nos laudos e relatórios como sinônimos. Questiono esses usos, adicionando o diálogo com psicólogas e psicólogos que também já apresentam mudança de linguagem e colocam suas perspectivas em dúvida, quando há o contato com o campo. E também questiono diagnósticos que apontam quadros depressivos seguidos de medicalização por esses mesmos profissionais. Ampliando a linguagem, interesso-me em como essa “terceira margem” se desenrola na interação entre os discursos indígenas e não-indígenas. Sigo as pistas e a possibilidade poética para aproximar-me das questões que envolvem a temática, ancorando-me no conto “A terceira Margem do Rio”, de 1994, de Guimarães Rosa, que narra a história de um homem, pai, marido, que decide por abandonar a família e sua vida em terra, manda fazer uma canoa e vai-se pelo rio, vagando em silêncio, em ausência, nas dúvidas que deixa nos que ficou e no mistério eterno de sua escolha (ou não?). Memórias que perduram entre os que vão e os que ficam também fazem parte das engrenagens que permeiam as fabulações sobre os fatos. As possibilidades e abstrações dos discursos não indígenas sobre os indígenas que transformam ou nomeiam “boa vida” e “bem viver”, tendo como objetivo ações de cuidado e de promoção de saúde também são alvos da reflexão que proponho.
Transições de vida: buscando alternativas para viver no mundo em ruínas
Autoria: Stephanie Ferreira Sacco (UFPB - Universidade Federal da Paraíba)
Autoria: Segundo Harvey (1992) “temos vivido nas últimas duas décadas uma intensa fase de compressão do tempo-espaço que tem tido um impacto desorientado e disruptivo sobre as práticas político-econômicas, sobre o equilíbrio de poder de classe, bem como sobre a vida social e cultural.” (HARVEY, 1992 p. 257). Esse paradigma da aceleração tem consequências negativas para a saúde do planeta e da nossa espécie. Em paralelo à necessidade de acumular e consumir, as estruturas de work mudaram, e a onda de flexibilização e autonomia do work cria hordas de pessoas que são chefes de si mesmo e que acabam virando seus próprios carrascos. O filósofo sul coreano Byung-Chul Han (2015) relata como essa liberdade paradoxal acaba se tornando uma auto-violência que leva às doenças psíquicas como a depressão, ansiedade e a síndrome de burnout. São Paulo, por exemplo, tem 11% de sua população sofrendo de depressão e 19,9% sofrendo algum tipo de transtorno de ansiedade (VIANA, 2009). Frente a esse cenário de fim de mundo, algumas pessoas decidem buscar alternativas para viver nesse mundo em ruínas do antropoceno (TSING, 2019). Chamo de transição de vida o processo pelo qual passam essas pessoas que estavam inseridas em um estilo de vida urbano que decidem deixar de viver em grandes cidades. Essas pessoas se mudam para cidades pequenas, muitas vezes em zonas rurais, em busca de contato com a natureza, uma vida saudável, conexão espiritual e uma recusa ao estilo de vida capitalista da grande cidade, regida pelo work como elemento central da vida e pelo consumo. Apresentarei análises preliminares de minha pesquisa de campo no IV Encontro Saberes da Caatinga, que reuniu mais de 400 pessoas de todo Brasil na comunidade de Posto da Serra, em EXU, Pernambuco. Nesse encontro, pessoas que passaram por transições de vida buscavam conhecimentos - em especial sobre saúde e formas alternativas de cura - com raizeiras, benzedeiras e parteiras da região. Minha análise seguirá os passos da antropóloga norte-americana Anna Tsing, que além de falar a mesma língua que meus interlocutores e estar no limiar da ecologia com a antropologia, oferece conceitos que se mostraram muito úteis para a análise de meus dados de campo. Inspirada em Marilyn Strathern, ela usa um exercício de comparação incomum entre fungos e nós humanos para pensar em como viver nesse mundo em ruínas, com todos seus desafios ecológicos e sociais contemporâneos.
Uma "cidade lixo zero" em tempos de Antropoceno: circuitos ambientalistas e gestão de RSU em Florianópolis/SC
Autoria: Rianna de Carvalho Feitosa (UFRN)
Autoria: Em 04 de Junho de 2018 foi publicado no Diário Oficial do Município de Florianópolis o decreto nº 18.646, que institui o Programa Florianópolis Capital Lixo Zero, o que fez da cidade a primeira do Brasil a aspirar tal denominação. O Programa visa, através de ações que envolvem a iniciativa privada, o poder público e a sociedade civil incentivar a não produção de resíduos sólidos urbanos (RSU) ou sua redução, promovendo a valorização desses resíduos e a sua reintrodução na cadeia produtiva. Possui como meta desviar 60% dos resíduos secos e 90% dos resíduos orgânicos da destinação final a aterros sanitários até o ano de 2030. Isso significa reintegrar à cadeia produtiva todo material que possa ser reciclado ou compostado, além de promover a educação ambiental de toda a sociedade e a inclusão social de catadores e outros grupos sociais cujo work se liga a questões ambientais. Esta pesquisa investiga, com base em uma experiência etnográfica, as relações desenvolvidas no planejamento de uma “cidade lixo zero” em um contexto de crise ambiental, Antropoceno e certos impasses nas formas institucionais de governança. Nos propomos a pensar, portanto, em como ações individuais suscitam movimentos sociais, considerando a adoção desse estilo de vida como uma forma de habitar o mundo e de cuidar do mundo. Consideraremos, também, os processos de estruturação e institucionalização do conceito lixo zero, através da aprovação de leis municipais e do impacto de ações realizadas por diferentes grupos da população florianopolitana, pertencentes a diferentes setores sociais. Consideramos o lixo como actante, seguindo os seus rastros e o surgimento de novas formas de compreender e gerir os RSU para identificar circuitos compostos por atores sociais, grupos, ações e associações que se relacionassem de alguma maneira à idealização e tentativa de construção dessa “nova sociedade”, que se pauta no cultivo de crenças, valores e hábitos que se distanciam dos da sociedade capitalista, pautados no consumo e em um crescimento econômico infinito. Nesse contexto, pudemos identificar ações iniciadas por diferentes setores da sociedade: ações do setor público, por parte da câmara dos vereadores, prefeitura e ministério público; do empresariado; da sociedade civil institucionalizada; de grupos locais; de pequenos empreendedores e de âmbito acadêmico. Tentamos perceber a importância de cada uma dessas ações e a forma como elas se conectam, ganhando força e capacidade de suscitar mudanças sociais, culturais e ambientais. Levamos em conta a complexidade dos processos de mudança e transformação social e questionamos a noção de desenvolvimentismo e do crescimento econômico perpétuo, algo insustentável em tempos de “fim do mundo”.
“O povo Pankararu cuida de quem cuida da gente”: notas etnográficas sobre cuidado, saúde e território a partir das rezadeiras Pankararu e os profissionais de saúde da UBS do Real Parque – SP
Autoria: Arianne Rayis Lovo (UNICAMP - Universidade Estadual de Campinas)
Autoria: O que acontece quando uma equipe de saúde vira parente dos indígenas que ela cuida? Para responder essa questão, apresento a descrição de um “prato”, pagamento de promessa Pankararu realizado na favela do Real Parque, em São Paulo, na qual busco analisar a multiplicidade de ontologias que participam dos processos de aliança, cura e luta entre os diferentes agentes que estão em relação com o povo Pankararu na capital paulista. Noções como cuidado, sofrimento, saúde e território são diariamente acionadas nos processos de negociação de cura entre profissionais de saúde e indígenas, muitas vezes possuindo sentidos diversos a depender de quem os enuncia, provocando um dissenso (De la Cadena, 2018). A Unidade Básica de Saúde (UBS) do Real Parque, assim como as demais UBS’s no país, ocupa um território geográfico feito a partir da configuração da Política Nacional do SUS (Sistema Único de Saúde), compreendida como uma “territorialização da saúde”, que possui como finalidade estabelecer um elo de confiança entre as pessoas. No entanto, confiar, para os Pankararu é também cuidar, no qual o cuidado está associado às práticas de cura como as rezas, muitas vezes realizadas a partir das visitas domiciliares feitas na casa dos parentes. Seguindo o fio dos “caminhos das rezas” das rezadeiras Pankararu, a experiência do caminhar é pensada na forma de “habitar” (Ingold, 2011), ou seja, experienciar o mundo a partir de uma dimensão cosmológica, aonde caminham juntos encantados, plantas, pessoas, bens, mercadorias. Nesse aspecto, o território é um campo geográfico, semântico e ontológico de disputas. Assim, o work proposto busca trazer uma reflexão, a partir de dados etnográficos recentes, sobre a produção de novas territorialidades e as práticas terapêuticas dos sistemas médicos envolvidos.
Por uma antropologia/saúde ecológica: cosmopolíticas em fricção e mundos porvir
Autoria: João Victor Martins Oliveira Guerra (UFC - Universidade Federal do Ceará), Sindy Gabrielly Holanda Oliveira
Autoria: A emergência climática é um tema que constantemente destrói as fronteiras modernas entre ciência e política ou entre natureza e cultura. Gregory Bateson, desde os anos 70, já buscava ampliar os horizontes antropológicos abrindo caminhos metodológicos e epistemológicos para uma ecologia da mente. Desta forma, pensar a saúde pública só em termos de ampliação de hospitais públicos ou programas de vacinas, seria bastante restrito. Saúde deve ser pensada em termos ambientais, como a saúde do ecossistemas do planeta, principalmente em tempos de fins de mundos. Anna Tsing nos ensina a viver nas ruínas em parcerias com espécies inusitadas como de cogumelos. O novo coronavírus traz à tona um importante debate sobre a ecologia das doenças, especialistas da área indicam que a saúde humana e animal são inextricavelmente interligadas. Isso ocorre, pois muitas vezes a invasão humana na "natureza" aciona esses tipos de pandemias, assim sendo necessário repensar as interações multiespécies, algo que preveniria o surgimento dessas doenças. Entretanto, as políticas públicas seguem imediatistas e militarescas: grandes investimentos são feitos após surtos, com ênfase no combate e na gestão e vigilância dos corpos, a saúde como questão de segurança. Além de destruição ambiental ser um grande vetor de proliferação de zoonoses, ela também promove problemas de saúde pública muitas vezes esquecidos e tomados como um "mal necessário" do desenvolvimento econômico. Temos como exemplo: a poluição do ar, afetando o sistema respiratório dos seres; a poluição da água afetando muitas vezes a pesca e por sua vez a nutrição de alguma população. Mas para percorrer essas estreitas trilhas entre diferentes mundos, se faz necessária uma investigação etnográfica em diferentes contextos com diferentes atores. Neste sentido, a pesquisa em andamento lida com ecólogos que buscam proteger a biodiversidade, engenheiros pela mineração de terras, indígenas em luta por seus territórios e outras cosmopolíticas em disputa, fazendo - nos repensar o conceito de saúde. Tim Ingold nos mostra como a antropologia pode ser uma participante de um grande conversa para moldar o mundo, uma disciplina que conhece a diversidade teria muito o que dizer sobre como experiências distintas podem habitar este ambiente em comum. E por fim, Donna Haraway nos indica que a especulações fabulativas são um ótimo instrumento para podermos contar histórias desses mundos de ficções científicas e fatos científicos... Como conhecer/cuidar destes mundos porvir? Com uma antropologia/saúde ecológica.
Um corpo que não está só: reflexões sobre resguardo, práticas de saúde e agenciamentos entre as mulheres Ticuna
Autoria: Angélica Antunes de Souza (UFF - Universidade Federal Fluminense)
Autoria: O objetivo desde work é fazer uma breve apresentação de minha pesquisa monográfica realizada junto aos Ticuna, de abril a dezembro de 2018 na aldeia de Filadélfia, Terra Indígena Santo Antônio, alto Solimões (sudoeste amazonense). Durante este tempo pesquisei as práticas de resguardo das mulheres Ticuna, em especial os resguardos de menarca, mestruação, pré-parto e pós-parto. As informações e reflexões apresentadas situam-se no entrecruzamento da etno-linguística, cosmologia e ontologia Ticuna, com o objetivo de complexificar o entendimento do que é um resguardo e qual a importância desta prática para estes corpos assinalados socialmente como corpo de mulher. De acordo com a cosmologia Ticuna, o corpo não é uma entidade separada do cosmos, ele está em constante relação com o mundo envolvente. A construção da pessoa é um processo contínuo e está relacionado aos laços estabelecidos durante a vida, incluindo os laços com seres não-humanos. Por isso, é preciso tomar cuidado com essas agências Outras, pois elas podem levar a doenças ou a captura. Existem dois momentos de maior risco; os que produzem o cheiro de verde (doü) e os que produzem cheiro de sangue (puya). O corpo das mulheres mantém constante relação com o cosmos e as práticas de resguardo tem o intuito de tornar esta relação estável, mas a reciproca também é verdadeira, através dos resguardos e equilíbrio do cosmos também é mantido. Neste sentido, proponho que os resguardos se mostram como uma prática de saúde não-individual e como uma agência das mulheres na manutenção e equilíbrio do mundo.