GT 78. Saberes, ciências e tecnologias insubmissas: o conhecimento que se produz nas margens

Coordenador(es): 
Graciela Froehlich (UNB - Universidade de Brasília)
Rogerio Lopes Azize (UERJ - Universidade do Estado do Rio de Janeiro)

Sessão 1 - Engajamentos insubmissos
Debatedor/a: 
Rosana Maria Nascimento Castro Silva (UERJ - Universidade do Estado do Rio de Janeiro)

Sessão 2 - Corpos e tecnologias em disputas
Debatedor/a: 
Marcos Castro Carvalho (UFRGS - Universidade Federal do Rio Grande do Sul)

Sessão 3 - Desencontros e tensões entre práticas hegemônicas e contra-hegemônicas
Debatedor/a: 
Rafael Antunes Almeida (UNILAB - Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira)

Com inspiração no tema da 32ª RBA, o GT visa reunir pesquisas interessadas em um certo tipo de insubmissão: a dos saberes, ciências e tecnologias produzidas nas margens da hegemonia, por vezes em situações de embate e resistência. São temas de interesse mais evidente etnografias sobre os conhecimentos emergentes que mirem a Ciência hegemônica desde uma perspectiva crítica; os estudos que relacionem os processos de produção científica e tecnológica a pressupostos e efeitos racistas, misóginos, capacitistas e heteronormativos; as ciências que se produzem em espaços e por sujeitos ditos “leigos” ou não autorizados, por vezes em tensão com marcos regulatórios; apreciações críticas de pressupostos teóricos, epistemológicos e metodológicos dos estudos sociais e da antropologia da ciência e da tecnologia; bem como as miradas analíticas que (re)pensem tais propostas a partir dos contextos de crimes/desastres socioambientais e do Antropoceno. Vamos acolher etnografias e ensaios de natureza teórica que, ao se voltarem para a antropologia da ciência e da tecnologia, fomentem diálogos entre a antropologia simétrica e as antropologias pós e decoloniais. A despeito da recusa de Bruno Latour e de outros proponentes da ANT de uma linguagem metasociológica e de apontamentos quanto à incompatibilidade de perspectivas, interessa-nos acompanhar Anderson (2009), Harding (1998; 2008) e Benjamin (2016) em seu esforço de pensar possíveis pontes entre as duas tradições de pensamento e pesquisa.

Palavras chave: Antropologia da Ciência e da Tecnologia; Decolonialidade; Antropologia Simétrica.
Resumos submetidos
"Renalcast – falando sobre vida renal": um estudo etnográfico sobre sociabilidade, identidade e divulgação científica na era do podcast
Autoria: Milena da Silva Magalhães (UERJ - Universidade do Estado do Rio de Janeiro), Rogério Lopes Azize Rosana Maria Nascimento Castro Silva
Autoria: O work aqui proposto analisa dinâmicas contemporâneas em torno da vivência com a doença renal crônica a partir de um formato peculiar e de particular sucesso no momento, o podcast. Trata-se de um material multimídia (que se multiplica em plataformas como instagram, youtube, spotify, deezer e facebook) no formato de podcast, que têm no relato dos adoecidos renais e especialistas do campo seu eixo norteador, chamado “Renalcast”. Os episódios são criados, produzidos e apresentados por duas pessoas com doença renal, funcionando como um espaço de biossocialidade (Rabinow, 2002), com trocas de experiência e construção de um sentido de pertencimento à categoria dos “renais”. Os interlocutores se aproximam pelo compartilhamento de um status orgânico, de disfuncionalidade de um órgão, próximo ao que Nikolas Rose (2013) identifica como uma identidade somática. Ao mesmo tempo, a narrativa se espalha por uma “vida renal”, que vai além de um órgão e sua disfuncionalidade. Os apresentadores narram suas histórias de vida atravessadas pela experiência do adoecimento crônico, em um movimento pendular que ora opera em um registro de humor e jocosidade, ora lança mão de discursos formais e institucionalizados de suas respectivas profissões – advogado e nutricionista – para trazer informações e aconselhamentos na posição de especialistas, apresentando dessa forma, um discurso de caráter híbrido. O programa é dedicado ao público dos “renais”, familiares, cuidadores e interessados no conteúdo, com episódios disponibilizados semanalmente em diferentes plataformas de mídias sociais. No cruzamento entre antropologia e saúde coletiva, o que se apresenta aqui é uma análise dos sentidos atribuídos a esta “vida renal”, reconhecendo e discutindo ainda as interessantes possibilidades de uso do podcast, em termos de forma narrativa e conteúdo. A partir deste “primeiro podcast 100% renal!”, queremos discutir as condições de análise e escrita etnográfica que este formato enseja, através de narrativas, identidades, formas de expertise e mídias sociais, todas envolvidas numa espécie de tempo-espaço virtual em que passado e presente, humano e não humano coexistem e interagem.
Amarras burocráticas, paradigmas científicos e territórios tradicionais Mbya Guarani: a disputa entre empreendimento, patrimônio arqueológico e retomada de terra na Ponta do Arado, Porto Alegre, RS
Autoria: Marcus Antonio Schifino Wittmann (UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro)
Autoria: A ciência arqueológica praticada atualmente no Brasil tem um vínculo muito forte com os processos de licenciamento ambiental. Mais de 90% dos processos protocolados no IPHAN para pesquisas arqueológicas são referentes a projetos ligado a empreendimentos. Nesse panorama, ciência, burocracia e estado se interligam, influenciando e constrangendo a prática arqueológica efetuada em campo e em laboratório. A definição de “patrimônio” e “sítio arqueológico” é disputada entre concepções científicas e burocráticas em alguns processos de licenciamento, todavia, quando se inserem demandas por territórios tradicionais indígenas, novas camadas surgem nesse embate entre ciência, estado e povos tradicionais. A proposta deste work é seguir o trajeto do processo de licenciamento arqueológico de um empreendimento na Ponta do Arado (Porto Alegre, RS), desde suas disputas para a definição de um sítio arqueológico Guarani na área, até a retomada do local por um grupo de famílias Mbya Guarani e o embate surgido dai entre essa comunidade, o empreendimento, o IPHAN e os arqueólogos. Nesse contexto, a arqueologia - enquanto ciência hegemônica, capaz de construir uma grande narrativa sobre o passado, identidade étnica e território - ao atuar dentro do estado entra em embate com outros saberes e cosmovisões, as quais botam em cheque essa hegemonia. Traçando essas redes desde o processo de licenciamento arqueológico da área de estudo, nota-se como lógicas diferentes sobre terra, território, propriedade, materialidade entram em disputa entre os diferentes atores envolvidos.
Células do sangue menstrual e memória epigenética: o bioengenho de conversas e transformações possíveis
Autoria: Daniela Tonelli Manica (Unicamp), Regina Coeli dos Santos Goldenberg
Autoria: As numerosas e prolongadas controvérsias bioéticas sobre o uso de células embrionárias para pesquisa científica e terapias biomédicas levaram ao desenvolvimento de uma frente de pesquisas com células-tronco adultas do corpo, dentre elas as células mesenquimais. Partindo de uma pesquisa etnográfica conduzida no Laboratório de Cardiologia Celular e Molecular do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho, da UFRJ, temos trabalhado de uma perspectiva simpoiética (Haraway, 2016) com as CeSaM, células mesenquimais do sangue menstrual. Nesse paper, pretendemos desenvolver uma discussão sobre as temáticas da plasticidade celular e da memória epigenética dessas células. Diferentemente da pluripotência presente nas células embrionárias, e a despeito das técnicas consolidadas que induzem uma pluripotência às células adultas (iPS) - permitindo que elas se diferenciem em células de tecidos diferentes dos originários -, as células mesenquimais parecem resguardar características prévias, parecem de certa forma guardar uma “memória” da sua história vital, que tem a ver com os tecidos de origem. Isso pode ter consequências para as aplicações científicas e terapêuticas possíveis, mas parece estar sendo algo pouco elaborado, ou até negligenciado, pelas pesquisas na área, que apostam no modelo da pluripotência e da transformação celular modelada apenas pelos fatores moduladores já testados e descritos na literatura científica, desconsiderando sua história e sua memória. Propomos uma revisão bibliográfica pluridisciplinar num esforço de diálogo e reflexão sobre esse tema da memória epigenética e das possibilidades de transformação das células em laboratório, que exigem dinâmicas comunicativas específicas (“conversas” entre células e órgãos). Desenvolveremos essa discussão a partir das experiências de transformação das células do sangue menstrual, tal como desempenhadas no laboratório: sua capacidade de resistência às condições vitais do laboratório, descritas e caracterizadas pelas pesquisadoras da UFRJ, seu bom desempenho como meio de co-cultivo de embriões, e suas transformações em células cardíacas (cardiomiócitos) e do fígado (hepatócitos).
Ciência em contestação: a controvérsia em torno da contaminação de um bairro em Volta Redonda
Autoria: Maria Raquel Passos Lima (UFF - Universidade Federal Fluminense)
Autoria: O work analisa o caso de contaminação do bairro Volta Grande IV no município de Volta Redonda por resíduos industriais provenientes da atividade siderúrgica da Companhia Siderúrgica Nacional. Partindo da ideia de Beck (1992) sobre os riscos como “abertos a processos sociais de definição”, que tornam a atividade científica a principal mediadora e porta-voz das substâncias tóxicas invisíveis aos atores humanos, mergulhando, ao mesmo tempo, a ciência de modo inextrincável nas tramas da política, a discussão apresenta as formas como o caso da contaminação enreda a produção científica em arenas públicas de contestação. A pesquisa, desenvolvida no âmbito do projeto de pós-doutorado, apresenta uma perspectiva etnográfica a respeito das disputas em torno da contaminação e da determinação de seus riscos, e, inspirada nos estudos sociais da ciência, enfoca uma controvérsia científica a respeito da segurança ambiental do bairro. A controvérsia em saúde ambiental descortina um conhecimento científico inseparável de uma arena política na qual múltiplos atores, com níveis de influência e capacidade de exercício de poder extremamente assimétricos decorrentes da configuração histórica e da estrutura sociopolítica local, lançam mão de repertórios de ação e se articulam formando coalisões em disputa. Nesse contexto, apresento distintas concepções de ciência, mostrando como tais concepções compõem a ação coletiva dos atores em questão, sendo instrumentalizadas por estratégias corporativas e processos de contestação social, que engendram complexidades e diferentes efeitos políticos.
Colaboração nas entrelinhas: do guia nativo ao mateiro - A importância dos conhecimentos tradicionais para a pesquisa científica na Amazônia
Autoria: Luis Felipe Costa e Silva (UFAM - Universidade Federal do Amazonas)
Autoria: A produção de ciência com a colaboração do conhecimento nativo vem ocorrendo há séculos, de maneira discreta, porém constante, datando, em território amazônico, desde as primeiras expedições de que se tem registro. Esta presença ativa pode ser identificada, muitas vezes apenas nas entrelinhas, em diversos relatos dos diários de viajantes e cientistas que há séculos esquadrinham as florestas da Amazônia. As contribuições das culturas nativas de regiões distantes da Europa para o conhecimento científico adquirido ou construído, quase sempre têm sido desconsideradas pelos historiadores da ciência. A atenção destes é majoritariamente dirigida para as observações e teorias dos cientistas e acadêmicos, para suas formações, métodos de work e influências políticas e econômicas. Com frequência, as populações locais são descritas como iletradas e ignorantes, mas delas dependia, em boa medida, o êxito das expedições cientificas. Neste work, estas interações colaborativas, registradas nas entrelinhas e rodapés dos diversos relatos de viajantes e cientistas que se aventuraram pela região, são trazidas à análise e contextualização de acordo com os principais eventos históricos que vieram a constituir o “fazer ciência” na região amazônica. Três diferentes momentos fundamentais são assim distinguidos: 1) Antes mesmo das primeiras expedições científicas de fato, já se fazia notável a participação do brasileiro nativo, quase sempre índio ou mestiço, no processo de “desbravamento” da região Amazônica que permanecera, até então, virtualmente intocada pelo contato com os povos europeus, através dos relatos escritos por missionários, agentes religiosos que integravam as expedições que exploraram a região durante o século XXVII; 2) Mais tarde, o século XIX traz para a região diversas expedições de cunho cientifico, cujo intuito consistia na exploração e investigação dos recursos encontrados, abrangendo sua flora, fauna, população e ambiente físico. Motivados pelos avanços científicos da época, incluindo o surgimento das primeiras instituições de ensino e pesquisa no Brasil, diversos estudiosos, denominados “naturalistas”, empreenderam suas viagens floresta adentro, contando com a colaboração da população nativa para que seu êxito fosse alcançado; 3) Em um terceiro momento, a partir da mudança de cenário sofrida pela região a partir do século XX, onde, no contexto da pesquisa científica realizada pelas diversas instituições então atuantes, destaca-se o fortalecimento e surgimento formal do agente social conhecido como “mateiro”, integrante fundamental das equipes de pesquisa, que, a partir de então, constitui sua profissão e papel social a partir dos conhecimentos empíricos adquiridos através de sua experiência prática vivida junto ao ambiente natural.
Do 'smoke report' ao laboratório farmacêutico: reflexões sobre os métodos de avaliação e agenciamento do consumo de cannabis no Brasil
Autoria: Yuri José de Paula Motta (UFF - Universidade Federal Fluminense)
Autoria: O paradigma “médico-jurídico” é o saber que informa as normatividades e legislações relacionadas às drogas no Brasil e no mundo. Em pesquisas anteriores, busquei refletir através da interlocução com membros de uma associação canábica, localizada na cidade do Rio de Janeiro, sobre a diferença entre o consumo maconha social/recreativo e o terapêutico/medicinal, construindo dados socioantropológicos que demonstram a fragilidade de tal paradigma ao estabelecer um controle sobre a maconha no Brasil. Esta fragilidade pode ser percebida justamente através das fronteiras legais e ilegais que classificam a cannabis, podendo ser hora “remédio”, hora “droga”. Durante o work de campo estabeleci diálogo com pacientes e usuários que cultivam cannabis para diversos fins. Dessa maneira, tive a oportunidade de observar múltiplos ambientes, moralidades, finalidades, efeitos e substâncias que se movem em um circuito de atores que compartilham saberes, técnicas e conhecimentos práticos em torno da maconha, seja para fins terapêuticos, ou não. Focado nos saberes empíricos e práticos dos consumidores, acabei por deixar de lado conhecimentos científicos que estão presentes no cotidiano dos atores entrevistados, portanto, meu objetivo neste work é construir dados através da realização de entrevistas com pesquisadores, farmacêuticos e cientistas que trabalham com a cannabis Rio de Janeiro. A qualidade final da flor da cannabis, consumida para ambos tipos de uso (social ou terapêutico), é sobretudo um sistema classificatório que varia de acordo com a forma de como a planta foi cultivada, colhida e armazenada. Tal qualidade pode ser definida tanto a partir de conhecimentos práticos que implicam o consumo e o cultivo, quanto a partir do conhecimento científico onde são realizadas experimentações laboratoriais. Meu objetivo é compreender os métodos de avaliação e medição dos efeitos psicoativos presentes na planta Cannabis Sativa L, adotados por consumidores e pesquisadores. Portanto, viso a observar, descrever e comparar as práticas de ambos tipos e consumidores e além disso, as práticas de pesquisadores e farmacêuticos que utilizam de procedimentos científicos para classificar as cepas, informando a legitimidade e eficácia do consumo para tratamentos terapêuticos. Qual a relação entre a experimentação cientifica e a experimentação prática, e consequentemente, qual a importância da pesquisa acadêmica para o cotidiano das pessoas que utilizam a substância? Minha proposta é entrevistar e estabelecer interlocução com pacientes, usuários, e principalmente, pesquisadores, farmacêuticos e cientistas, a fim de compreender a construção dos sistemas classificatórios, como estas classificações influenciam no consumo e como os atores justificam as suas práticas.
Feminismo e antropoceno: novos olhares sobre saberes, política e natureza
Autoria: Marina Bohnenberger (USP - Universidade de São Paulo)
Autoria: A pesquisa teórica que ora levo a cabo pretende adentrar as temáticas do que pode ser chamado “feminismo do antropoceno”. O que inspira essa denominação é a publicação da coletânea Anthropocene Feminism, em 2015, reunindo textos de autoras como a antropóloga Elizabeth Povinelli e a filósofa Rosi Braidotti. A proposta, apresentada na abertura do livro, é empreender uma visão feminista para abordar os problemas do que vem sendo chamado antropoceno, a nova era que tem o humano como força geológica. Por um lado, as teorias de gênero, especialmente sob o olhar antropológico, têm feito importantes contribuições à investigação de paradigmas modernos e à questão da diferença, centrais no debate sobre as crises ambientais. Seguimos Marilyn Strathern, para quem a antropologia tem comunhão com uma “parte do empreendimento feminista, a saber, a minuciosa pesquisa acerca dos construtos ocidentais” (STRATHERN, 2009, pp. 86-87). Analogamente, problemáticas ecológicas do antropoceno lançam nova luz e fazem novas exigências à maneira como lidamos com os saberes, debate que oferece espaço profícuo às indagações feitas pela antropologia da ciência e o interesse por questões epistemológicas e ontológicas que tem povoado a antropologia. Mas como se faz o vínculo entre algumas questões feministas e outras latentes do antropoceno, e para onde ele nos leva? O que se apresenta é mesmo uma provocação instigante, crítica e atenta aos “paradigmas ocidentais” - dentre eles, a noção de uma natureza impactada e devastada pela ação humana, em paralelo com as relações de poder e subjugação com as quais os feminismos dialogam. Para isso, vamos navegar por breves leituras de Isabelle Stengers e um olhar renovado sobre “a Ciência” e sobre política; Anna Tsing, com uma análise sobre relações multiespécies no mundo do capitalismo em ruínas, e Donna Haraway, a partir da sua já clássica noção de saberes localizados e mais atuais discussões sobre as relações entre a modernidade e as crises ambientais e científicas. Marisol de la Cadena, antropóloga peruana vivendo nos Estados Unidos, traz a discussão sobre multimundos e pluriverso, contribuindo para pensar questões como a da diferença em políticas ontológicas. São muitas as aberturas que o feminismo do antropoceno possibilita. Através destas autoras, tento traçar um caminho entre questões que permeiam práticas de saberes, política e natureza.
Indigenismo missionário e o censo indígena no Brasil
Autoria: Elena Monteiro Welper (Fiocruz - Fundação Oswaldo Cruz)
Autoria: Resumo Em 1979 alguns jornais anunciavam que o IBGE incluiria o recenseamento dos índios que viviam em aldeias no Censo Demográfico Nacional do ano seguinte. Antecipando-se aos resultados deste levantamento, em outubro de 1980, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) apresentou o seu próprio recenseamento da população indígena do Brasil. A divulgação desses dados (227 mil índios, contando com “arredios e destribalizados”) tinha, conforme a narrativa da entidade, o objetivo de alertar para o fato que o work realizado pelo governo, embora incluísse um questionário de 70 perguntas, não seguia “nenhum critério especifico” para capturar a “situação real” desses povos, e que isso poderia “mascarar a realidade”. Para a entidade missionária, saber “quantos morreram, quantos tem terras, quantos vivem em áreas sem demarcação”, seriam dados importantes que não estariam sendo quantificados pelos formulários do órgão governamental. Desde a sua criação em 1972, como órgão oficioso” da CNBB, o Cimi teve uma grande preocupação com o levantamento da população indígena. Em meados de 1974 iniciou um “levantamento da situação dos índios do Brasil” com o objetivo de trazer “exatidão” aos dados, apurando sobre a situação sanitária, educacional, cultural e econômica da população indígena. Naquele momento formativo, entretanto, este “levantamento demográfico e sócio cultural” - que partia de dados já levantados pelas missões e pretendia ser o mais completo já realizado no país - previa um número menor do que a estimativa da FUNAI (120 ao invés de 180 mil). Em 1978, após uma série de coletas regionais e de significativas mudanças na direção do Cimi, este levantamento foi concluído registrando a existência de uma população indígena de 227 mil pessoas, um número muito maior do que era apontado pelos dados oficiais, que orbitavam entre os 90 -180 mil. Neste contexto da virada da década de 1970 para 1980, o Cimi se constituiu como uma das primeiras fontes de dados para as populações indígenas do Brasil, sendo como tal referenciado no 3º. Encontro da ABEP em 1982, o primeiro evento desta associação a incluir uma sessão temática sobre demografia indígena. Entendendo essa iniciativa não apenas como base para a definição das ações da própria entidade, mas sobretudo, como um referencial para a causa indígena, o presente work pretende explorar como essas contagens aconteceram, como foram divulgadas e assim entender como esse processo de coleta de dados produzido pelo indigenismo missionario, em contexto marginal e de oposição a política integracionista do regime militar, articulou um elemento de resistência pós colonial à produção de dados demográficos pelo Estado-Nação.
Interseccionalidade e consubstancialidade: descolonizando as perspectivas
Autoria: Keren Fonseca de Lima (UFAL - Universidade Federal de Alagoas)
Autoria: Neste work abordo o conceito de interseccionalidade e seu enfoque teórico-metodológico, assim como a crítica que recebeu de feministas materialistas francófonas que defendem o uso do conceito de consubstancialidade nas análises que articulam gênero, raça e classe. Através de aportes do pensamento fronteiriço e decolonial, do pensamento feminista negro, de cor e latino-americano, proponho um enfoque epistêmico crítico para problematizar as controvérsias entre ambos os conceitos.
Margens, violência e insubmissão: uma etnografia dos fragmentos vitais
Autoria: Romário Vieira Nelvo (PPGAS/Museu Nacional/UFRJ)
Autoria: Conforme as formulações de Michel Foucault na aula inaugural de seu curso “É preciso defender a sociedade”, estaria havendo, na segunda metade do século XX, um movimento contestatório de críticas sociais empreendidas no mundo público a partir da aparição genealógica da “insurreição de saberes”. Estes seriam “erudições inúteis” e “saberes das pessoas”, minoritários, no limite, sepultados. É o saber do psiquiatrizado, do prisioneiro, entre outros. Assim, nesta comunicação, propõe-se discutir as relações entre margens, violência e insubmissão desde uma perspectiva político-moral das “insurreições de saberes”. Tenho como pano de fundo algumas situações concretas batizadas por mim de “fragmentos vitais”. Tais fragmentos compuseram parte significativa da minha dissertação de mestrado, e tinham como finalidade trazer à tona uma reflexão sobre vida moral, regimes de humanidades e processos de formação do Estado-nação. Para tanto, parti de uma pesquisa de campo, confeccionada entre os anos 2017 e 2019, acompanhando o ativismo da “maconha medicinal” no Rio de Janeiro. Ali, no work monográfico, me chamava a atenção o tipo de sofrimento e o work do tempo pessoais que corriam à esteira da coletivização nos repertórios da “luta por justiça”. Indo na contramão do tempo que estetiza a organização política coletiva, uma moradora de rua que vive tendo crises convulsivas, uma mulher de meia idade que sente “dores incontroláveis” e deseja ser parte do que ela chama de “sociedade humana”, e uma mulher idosa, mãe de um adulto com deficiência, que testemunhou em seu corpo uma brutal violência estatal, me colocavam diante de um conjunto de questões sobre como narrar uma história coletiva da luta política, sem que se perdesse de vista as sutilezas triviais da vida ordinária. Se antes eu estava muito mais preocupado em apontar as narrativas que não chegam a serem coletivizadas, aqui, procurarei alargar um pouco mais o enquadramento a fim de pensar com os próprios fragmentos vitais e o que eles podem nos iluminar sobre a vida social. Em estreito diálogo com a proposta levantada pelo Grupo de work, seleciono pelo menos três horizontes analíticos a serem privilegiados no paper. Primeiro, apontarei como esses fragmentos permitem refletir sobre os conceitos de margem e de violência. Depois disso, espero revolver o status contestatório destes fragmentos, ao mostrar que eles desvelam os sentidos do humano, os marcadores da diferença e as relações de poder hegemônicas. Por fim, sugiro estarmos diante de uma fecunda oportunidade para se discutir sobre a etnografia e seus modos criativos de mensuração de vidas políticas. Como antes havia esboçado Foucault, acredito que o que está por detrás da “insurreição de saberes” é a história das lutas políticas.
Mulheres gordas à margem do diagnóstico de anorexia nervosa
Autoria: Beatriz Klimeck Gouvêa Gama (CPDOC FGV)
Autoria: O objetivo da presente apresentação é refletir sobre como mulheres gordas negociam seu pertencimento ao diagnóstico de anorexia nervosa, a partir de pesquisa desenvolvida no curso de meu mestrado acadêmico em Saúde Coletiva. Nas imagens que circulam entre diferentes veículos de mídia e alimentam o imaginário social, o corpo anoréxico é feminino, branco, jovem e extremamente emagrecido; tem costelas ressaltadas e o corpo esguio. Essa percepção acaba inferindo erroneamente sobre o reconhecimento da presença e da gravidade do transtorno alimentar: pessoas podem ser naturalmente magras sem dietas e pessoas consideradas “acima do peso” podem desenvolver relações conturbadas de restrição alimentar. Para a pesquisa, quatro mulheres autodenominadas gordas foram ouvidas em entrevistas presenciais, e debato aqui as produções marginais de saberes que as permitem acessar, de forma talvez um tanto atípica, o diagnóstico de anorexia.
O Dicionário de Favelas Marielle Franco e a descolonização do conhecimento
Autoria: Palloma Valle Menezes (UFF - Universidade Federal Fluminense), Sonia Fleury Marcelo Fornazin Clara Polycarpo
Autoria: Historicamente, as favelas são consideradas pelos poderes públicos, setores da imprensa e camadas médias e altas da sociedade carioca a partir de definições a priori negativas. Tais definições ajudam a moldar políticas direcionadas a esses territórios e suas populações, tanto no caso da segurança pública quanto no acesso a serviços de infraestrutura, prestados de forma descontinuada e insuficiente. Contudo, um conjunto variado de atores coletivos, notadamente os moradores destas localidades, insistem em questionar tais formulações e os impactos negativos (e muitas vezes violentos) que elas produzem em seus cotidianos. Há um ano, alguns desses moradores de favelas, em uma iniciativa conjunta com acadêmicos, lançaram o Dicionário de Favelas Marielle Franco. A ideia da plataforma é reunir e ajudar a ecoar múltiplas falas de moradores, lideranças e intelectuais – tanto da favela como de fora dela. Ao reunir os conhecimentos produzidos por meio de uma plataforma Wiki própria, colaborativa e de construção coletiva, o Dicionário busca a difusão de outras narrativas acerca destes territórios e suas populações ao valorizar suas memórias e experiências, efetivando o direito à cidade como um direito de cidadania. O projeto parte da ideia de que o sujeito “favelado” – assim como o sujeito “subalterno” do qual fala Spivak (2014) – é irredutivelmente heterogêneo. Por isso, o Dicionário de Favelas se constrói a partir da colaboração de um grupo heterogêneo de pessoas e tem por objetivo incentivar uma ampla articulação do conhecimento (acadêmico ou não) produzido sobre as favelas, muitas vezes disperso ou hierarquizado. A ideia do projeto, desde seu início, foi fugir do perigo de se construir o “favelado” apenas como objeto de conhecimento por parte dos intelectuais que almejam meramente falar pelo outro. Com a licença de creative commons, se trata de uma tecnologia de ponta que inverte a lógica colonial pela qual a produção de conhecimentos se dá em circuitos inovadores centrais e depois é difundida para as periferias. A plataforma, com isso, inova como forma de decolonizar a produção e a circulação do saber em uma condição de horizontalidade que rompe as dicotomias de produção acadêmica/saber popular; autoria individual/produção coletiva; impessoalidade científica/experiência vivida. Neste work, especificamente, buscamos problematizar e refletir sobre como vêm se dando os encontros de saberes de acadêmicos, ativistas e moradores de favelas nessa plataforma digital que já conta com 405 verbetes e 285 pessoas registradas. Avaliaremos a experiência de produção desse conteúdo que vêm expandindo os sentidos dos artigos de modo a também registar filmes, músicas e poesias, além da tradição oral das memórias das favelas em uma construção coletiva e continua.
Os Tentehar e os grandes projetos de desenvolvimento
Autoria: Anderson Augusto Mota Serra (UFMA - Universidade Federal do Maranhão)
Autoria: A partir da minha experiência pessoal, pretendo discutir uma trajetória possível no universo antropológico, em relação às experiências que venho vivenciando, nos últimos anos, a partir das pesquisas que desenvolvo sobre grandes projetos de desenvolvimento situados em territórios habitados por povos indígenas na região centro-sul do Estado do Maranhão. Ao partir de experiências que pude vivenciar na cidade de Imperatriz, Maranhão, com alguns indígenas do povo Tentehar, foi possível perceber que eles vêm atribuindo percepções próprias sobre a noção de grandes projetos e suas repercussões, que diferem da perspectiva usada por boa parte dos pesquisadores no campo acadêmico, que associam esta noção aos efeitos causados por empreendimentos agrícolas ou minerais. Procurei desnaturalizar concepções cristalizadas na academia, visando perceber novos saberes e as experiências dos Tentehar em relação a noção de grandes projetos.
Plantando floresta nos mares de cana: notas etnográficas sobre os saberes e práticas agroflorestais no interior paulista.
Autoria: Carlos Alberto Corrêa Moro (nenhuma), Helenito Hemes
Autoria: A região de Ribeirão Preto, cidade do interior do estado de São Paulo, é conhecida nacionalmente como um polo econômico da agroindústria sucro-alcooleira. No entanto, nos interstícios de um território visivelmente dominado pela monocultura de cana de açúcar e pelas gigantesca usinas do complexo sucroalcooleiro, vemos emergir experiências e projetos agrícolas que se colocam de forma antagônica ao modelo agrícola convencional. Neste artigo, escrito em colaboração com o agricultor e agrofloresteiro Helenito Hemes assentado no Projeto de Desenvolvimento Sustentável Sepé Tiarajú, abordaremos algumas características do manejo dos Sistemas Agroflorestais (SAF) que vêm sendo implantados em meio ao mares de cana de açúcar que dominam a paisagem do interior paulista. Das ruínas de uma terra esgotada por décadas de monocultura em larga escala irrompem, nas roças agroflorestais do Assentamento Sepé Tiaraju, experiências críticas à marcha homogeneizante do agronegócio. No lugar das dimensões sobre-humanas, a escala de manejo manual. No lugar da homogeneidade de espécies, a explosão de biodiversidade das roças. No lugar do saber produtivo cristalizado em pacotes tecnológicos, o processo de apropriação criativa e construção coletiva de conhecimento. No lugar de um modelo produtivo dependente de insumos químicos, fertilizantes e combustíveis fósseis, um modelo que busca, pela otimização das relações entre elementos bióticos e abióticos, manter o solo vivo e enriquecido por meio da ciclagem natural de nutrientes e da matéria orgânica produzida pelo próprio sistema. Neste artigo abordaremos sobretudo duas rupturas em relação à agricultura convencional. Em primeiro lugar, ao trabalhar com a biodiversidade e com a complexificação das relações interespecíficas, os SAFs rompem com a homogeneidade de espécies e com a coordenação linear e unitária do tempo de produção característica da monocultura. Por serem agroecossistemas complexos, compostos por uma maior variedade de plantas, que crescem e frutificam em tempos distintos, as agroflorestas são, para usar a metáfora de Anna Tsing (2015), arranjos polifônicos e de múltiplos ritmos. A segunda ruptura é em relação a alienação do conhecimento produtivo. Enquanto na agronomia dominante a transmissão de conhecimento é feita por meio de pacotes tecnológicos, protocolos fechados que são vendidos aos agricultores, na agroecologia, o conhecimento e as novas técnicas são pensados como apropriação criativa e construção coletiva, na qual cooperam cientistas, técnicos e agricultores experimentadores. Contra a unidade homogeneizada dos conhecimentos vendidos como mercadoria na forma de pacotes tecnológicos, os saberes dos agrofloresteiros consistem em regimes de conhecimento de caráter aberto e múltiplo.
Práticas contraceptivas e outras epistemologias da ciência em ação: como mulheres ávidas por saberes múltiplos têm questionado a hegemonia biomédica
Autoria: Virgínia Squizani Rodrigues (UFSC - Universidade Federal de Santa Catarina), Sônia Weidner Maluf
Autoria: A partir de um estudo sobre as controvérsias em torno da pílula anticoncepcional, pode-se observar alguns dos motivos pelos quais jovens mulheres - em idade fértil - estão recusando o uso de contraceptivos hormonais e optando por outros métodos, considerados por elas, como “menos invasivos” e “mais seguros”. Na esteira desses acontecimentos, um “reclame por mais ciência”, por parte de algumas destas mulheres, foi verificado. O argumento de que “se encontra mais alento nos fóruns de internet do que nos consultórios médicos”, verificado em campo, provocou refexões a cerca da autoridade da hegemonia biomedica ocidental. Sabendo da crise do sistema de peritos que vêm se desenrolando há décadas, procurou-se pensar como a emergência de epistemologias “de viés não científico” vêm a se combinar de diferentes maneiras com “a Ciência”. Diante de um contexto de incerteza generalizada, Latour (1999) observa nas crises ecológicas, uma crise de objetividade. “As questões levantadas pela produção científica contemporânea são não apenas práticas, mas epistemológicas” (CESARINO, 2005, p. 172). Se formos pensar que, ao recusar a pílula e aceitar que um ciclo menstrual não precisa ter, obrigatória e normativamente 28 dias, por exemplo, e que esse pode ser cuidado por meio de chás e exercícios físicos específicos... "a Medicina Ginecológica" passa a dividir espaço com outras “práticas terapêuticas integrativas". Nada disso seria estranho se "a Ciência" (e nesse conjunto, "a Medicina Ginecológica") não tivesse inventado a si mesma enquanto única correspondente à realidade, produtora de normas cujos processos de produção intenta apagar. Assim sendo, o presente artigo se propõe a pensar: até que ponto, então, as práticas das mulheres que recusam a pílula anticoncepcional corroboram para uma distinção entre "a Ciência" e "as ciências"?
Quanto vale a vida? O barramento do rio Xingu: as narrativas de impacto e as práticas insurgentes dos povos Juruna Yudjá e Mẽbengokre-Xikrin na Amazônia Paraense.
Autoria: Thais Regina Mantovanelli da Silva (UFSCAR - Universidade Federal de São Carlos)
Autoria: Sete minutos. Esse foi o tempo de duração do leilão para concessão e comercialização de energia da Usina Hidrelétrica de Belo Monte. Sete minutos cuja duração devastadora impõe-se perversamente aos povos indígenas da região da cidade de Altamira, na amazônica paraense brasileira, local do empreendimento. Quando vale a vida? Sete minutos que foram capazes de inaugurar, mais uma vez, o fim do mundo para os povos Juruna Yudjá da Volta Grande do Xingu e Mẽbengôkre-Xikrin da Terra Indígena Trincheira-Bacajá. A quem cabe o conceito de vida? Sete minutos que trouxe a consolidação pragmática e ontológica do que se pode nominar “a era dos impactos”. Negligenciadas pelos relatórios técnicos apresentados pela empresa concessionária Norte Energia, maior acionista do empreendimento, as práticas narrativas dos impactos sofridos por esses povos e suas ações de resistência são o que pretendo evidenciar nessa composição etnográfica. Os Mẽbengôkre-Xikrin e os Juruna Yudjá insistem em afirmar suas assustadoras teorias de impactos decorrentes do barramento do Xingu e da drástica diminuição de seus regimes de cheia. Esses povos questionam com veemência os dados do monitoramento oficial apresentado pelo órgão empreendedor e por técnicos especialistas contratados pela concessionária Norte Energia. Ao expressarem seus questionamentos que contradizem os dados oficiais, ambos povos defendem a validade das teorias e das narrativas de impacto condizentes com suas formulações. Além disso, ambos os povos estão engajados em ações de resistência como monitoramentos independentes participativos, roteiros de turismo ativista, processamento e venda de produtos, sejam da biodiversidade amazônica ou de artefatos produzidos. O posicionamento crítico desses povos e seu engajamento em ações de resistência inspiram-me a buscar possibilidades descritivas que potencialize suas relações de conectividade territorial, cultural, social, ecológica com a Volta Grande do Xingu como ações de defesa da vida, de modo a que elas impactem também as reflexões antropológicas da escrita etnográfica enquanto ofício da disciplina.
Saberes e fazeres do povo de axé na universidade
Autoria: Isabel Santana de Rose (UFAL - Universidade Federal de Alagoas)
Autoria: Minha proposta nesta apresentação é abordar a experiência do programa de Formação Transversal em Saberes Tradicionais da UFMG partindo especificamente de uma das disciplinas oferecida no âmbito deste programa: “Catar folhas, saberes e fazeres do povo de axé”. Esta disciplina contou com duas edições, em 2016 e 2017, e foi ministrada por três e mestras e um mestre, todos negros, ligados a diferentes vertentes de religiões afrobrasileiras no estado de Minas Gerais: Mametu Muiandê ou Mãe Efigênia Maria da Conceição, do quilombo Manzo Ngunzo Kaiango (Belo Horizonte); Pedrina Lourdes dos Santos, capitã da Guarda de Massambique de Nossa Senhora das Mercês (Oliveira); Iyanifá Ifadara ou Nylsia Lourdes dos Santos, do ilê Asé Asegún Itèsiwajú Aterosún (São José da Lapa); e Pai Ricardo de Moura, da Casa de Caridade Pai Jacob do Oriente (Belo Horizonte). A disciplina foi aberta para alunos e alunas de todos os cursos de graduação da UFMG; em sua segunda edição também foi aberta para alunos(as) de pós-graduação e para professores(as) da rede pública de Belo Horizonte, por meio de um convênio com a Secretaria de Educação. Procuro abordar aspectos como os espaços onde as aulas acontecem e seus desdobramentos; as relações e tensões entre os mestres dos saberes tradicionais e as burocracias acadêmicas; como presença de mestres(as) negros em sala de aula evidencia o caráter excludente, branco e eurocêntrico da universidade, ao mesmo tempo que aponta para possíveis linhas de fuga; a questão dos atores não humanos e seu papel central nas cosmovisões afro-brasileiras; e algumas reflexões preliminares sobre as relações entre antropologias e negritudes. Em um contexto de ataques à educação e à universidade pública, a apresentação pretende refletir sobre a importância das políticas de ações afirmativas; da presença dos mestres e mestras dos saberes tradicionais; e dos conhecimentos e epistemologias afro e indígenas nas universidades brasileiras.
Um estudo antropológico sobre os graus de (não)naturalidade de dispositivos e tecnologias cardíacas
Autoria: Marisol Marini (Unicamp)
Autoria: O propósito da reflexão é explorar o histórico de desenvolvimento de dispositivos conhecidos como corações artificiais ou dispositivos de assistência circulatória buscando compreender as especificidades da produção no Brasil. Há distintos modelos, trata-se de um campo bastante instável, e as equipes brasileiras engajadas em desenvolver versões locais se pautam, sobretudo, no desenvolvimento estadunidense. Pretendo argumentar que há uma imbricação entre moralidade e tecnicismo, de modo que cada dispositivo e solução técnica relaciona-se à uma compreensão de corpo e natureza específicas. Um dispositivo produzido no Brasil, que já foi considerado inovador (mais em termos conceituais do que técnicos em si, embora essa divisão não opere a todo momento) permite enfatizar essas diferenças, revelando uma concepção da natureza como um sistema inviolável.
Virginia Leone Bicudo e Guerreiros Ramos – para uma antropologia decolonial da perspectiva negro-brasileira nas Américas
Autoria: Nádia Maria Cardoso da Silva (Secretaria de Eduação do Município de Salvador)
Autoria: Buscando contribuir para a consolidação de uma antropologia decolonial na perspectiva negro-brasileira na América Latina, apresentamos dois intelectuais negros invisíveis nas ciências sociais no Brasil – Virgínia Leone Bicudo e Guerreiro Ramos - que viveram o mundo sócio-antropológico no Brasil, a partir dos anos 40 do século XX. A intenção é colocar em visibilidade seus pensamentos, pois, ambos apresentaram argumentos decoloniais que podem ser configurados como inaugurais de uma epistemologia decolonial nas Américas, interpelando o racismo/sexismo epistêmico das universidades brasileiras e perseguindo uma segunda descolonização do Brasil, apesar desses subalternos negra e negro pouco terem podido falar. Virgínia e Guerreiro fazem parte da geração dos primeiros cientistas sociais no Brasil, e foram alvos de uma poderosa operação de silenciamento. Virgínia Leone Bicudo se destacou já nos anos 1940 com uma inusitada tese em que negras e negros surgem não como objeto, mas como sujeitos falantes, narrando suas experiências sociais, econômicas, amorosas, educacionais em um contexto social paulista marcado por profundas hierarquias raciais e forte herança colonial. Guerreiro Ramos se destacou no mesmo período, ao apontar a colonialidade epistemológica das ciências sociais no Brasil quando objetifica o negro brasileiro, o constrói e o apresenta como um humano estático, exótico, mumificado, problemático. Ao mesmo tempo, defende que a descolonização/decolonialidade dos estudos sobre o negro no Brasil já estava em curso não na vida acadêmico-intelectual brasileira, mas no ativismo negro. Ambos silenciados, migram para a Psicanálise e para a Administração se tornando referências fundadoras nessas áreas no Brasil, evidenciando, com suas trajetórias intelectuais, como a violência epistêmica vem nos atingindo há muito tempo, produzindo invisibilização e silenciamento nas ciências sociais. Em plena década de 40, Virgínia e Guerreiro adotaram perspectivas críticas decolonias para pensar as permanências das estruturas coloniais na sociedade brasileira em que viviam. Apesar desse campo ainda não ter se constituído nesse momento, tomamos Virgínia Leone Bicudo e Guerreiro Ramos como nossos ancestrais que inauguraram o campo decolonial das ciências sociais na perspectiva negra no Brasil. Portanto seus pensamentos foram considerados aqui estruturantes de uma perspectiva negra de descolonização/decolonialidade que seguem presentes nas comunidades negras contemporâneas - nos quilombos, nos ativismos anti-racistas, nos terreiros de candomblé e nas rodas de capoeira – pois, anda que afetadas pela colonialidade dos poderes, tais comunidades vêm produzindo epistemologias de existências e resistências no Brasil.
“Bancos de dados vazios não sevem para nada”: os percalços da circulação de perfis genéticos para investigação criminal no Brasil
Autoria: Vitor Simonis Richter (UFRGS - Universidade Federal do Rio Grande do Sul)
Autoria: Desde 2009, após um acordo de colaboração com o FBI, o Brasil aumentou seus esforços para introduzir a tecnologia de bancos de DNA para investigações criminais em seu cenário técnico-legal. Em 2012, uma lei federal criando os bancos de DNA foi aprovada em um rápido processo legislativo que autorizou o funcionamento da segunda maior rede deste tipo de banco de dados em único país com 20 estados conectados ao Banco Nacional de Perfis Genéticos (BNPG) gerando preocupações legais, éticas e práticas em torno do uso cotidiano desta tecnologia pela polícia. Nesta comunicação descrevo os desafios práticos da instalação da infraestrutura desta tecnologia e os efeitos para a circulação dos perfis genéticos. A circulação, seguindo as reflexões de Amade M´Charek (2016), é o principal aspecto da performance (enactment), neste caso, das identidades, objetos e relações que emergem do uso do DNA para fazer suspeitos de crimes e especialistas em genética forense. Ao voltar minhas atenções para as infraestruturas que fazem com que os perfis genéticos circulem com maior ou menor facilidade, é possível refletir sobre o terreno político (Von Schnitzler, 2013, 2015) que emerge e se configura a partir da introdução desta tecnologia em um contexto técnico-legal que não compartilha necessariamente todos os pressupostos legais, morais e técnicos daquele no qual a tecnologia foi desenhada (Akrich, 2014). Diante de um cenário de predominância de um imaginário sociotécnico (Jasanoff, Kim, 2009, 2015) que alimenta um entusiasmo acrítico com as promessas do uso da ciência e da tecnologia na diminuição dos crimes violentos no país através dos bancos de DNA, a descrição do processo de introdução dos bancos de DNA no Brasil permite refletirmos sobre como a adoção de um modelo de bancos de DNA para investigações criminais privilegiado em países como Inglaterra e Estados Unidos foi feito sem muita atenção aos dilemas e desafios da justiça criminal brasileira, bem como às particularidades da organização institucional das polícias e do cotidiano dos presídios no país. Além disso, podemos refletir sobre quais os pontos, conexões, sujeitos e relações que criam resistências à maior agilidade na introdução desta tecnologia no Brasil e às condições que os especialistas da genética forense e da polícia brasileira consideram ideais. Esta comunicação, portanto, busca contribuir nas discussões sobre os usos cotidianos da ciência e da tecnologia nas tecnologias de governo e de administração da vida e do crime no Brasil.
Corpos que Importam Diálogos (Trans)Formadores: Reflexões Acerca dos Corpos de Transexuais E Travestis e a Educação
Autoria: Carlos Henrique Alves de Lima (UNILAB - Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira)
Autoria: O presente work tem por objetivo apresentar as principais discussões envolvendo cinco interlocutoras(e) em que suas falas se interseccionam e (RE)criam novas possibilidades de (RE)existências na ocupação das escolas e universidades. A pesquisa centrou-se principalmente em compreender, por meio das narrativas de pessoas travestis e transsexuais sobre as suas memórias de escola, como elas(e) significam e ressignificam seus corpos e as experiências vividas no espaço escolar. Pois não é nenhuma novidade que os espaços escolares, formais e institucionalizados não são receptivos às pessoas que desviem das normas de sujeito universal, ou seja: homem, branco, heterossexual, cisgênero, classe média-alta e cristão. As interlocutoras(e) deste work apontam e denunciam casos, estruturas e normas que são excludentes, violentas e que impedem de avançar na trajetória escolar. A discussão teórica presente no work e nas reflexões trazidas no audiovisual perpassam os principais conceitos presentes nas falas das interlocutoras para obter um melhor entendimento da questão. A partir de uma perspectiva interseccional, suporte indispensável para a análise investigativa e produção desse work. O estudo busca revelar (e refletir) o atravessamento de diversos discursos que se cruzam entre a ocupação do espaço educacional, ao uso do nome social, a respeitabilidade de acordo com as identidades das interlocutoras, de gênero e racial, a empregabilidade e a afetividade, também consideradas construções políticas de fortalecimentos de laços.