GT 74. Religiões de matriz africana e seus modos de convivência: caboclos, orixás e outras entidades

Coordenador(es): 
Miriam Cristina Marcilio Rabelo (UFBA - Universidade Federal da Bahia)
Clara Mariani Flaksman (UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro)

Sessão 1 - Tempos, Histórias e Registros
Debatedor/a: 
Miriam Cristina Marcilio Rabelo (UFBA - Universidade Federal da Bahia)

Sessão 2 - Vínculos e obrigações
Debatedor/a: 
Clara Mariani Flaksman (UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro)

Sessão 3 - Modos de Convivência
Debatedor/a: 
Luciana Duccini (UFBA - Universidade Federal da Bahia)

A proposta deste Grupo de Trabalho é investigar os modos de se relacionar com e entre as entidades presentes nas diversas modalidades de religiões de matriz africana, tanto no Brasil quanto em outros países da diáspora africana. Assim, pretende dar ênfase não somente às análises das manifestações religiosas em si, mas aos estudos voltados para as formas como vínculos são aí construídos e mantidos. Tendo como questão chave o debate em torno das dimensões ético-políticas das formas de convivência cultivadas nessas religiões, o GT está aberto para trabalhos que tratem dos procedimentos e conceitos que participam dos processos de construção de vínculos, que discutam as diferentes temporalidades e espacialidades em jogo nesses processos e/ou explorem como os vínculos com as entidades são mobilizados e testados em situações de encontro com outras formas de prática.

Palavras chave: religiões de matriz africana; formas de convivência; entidades
Resumos submetidos
"A jurema manda": sobre a convivência entre espíritos, entidades e pessoas na jurema de Recife, Pernambuco.
Autoria: Noshua Amoras de Morais e Silva (UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro)
Autoria: Esta apresentação pretende explorar questões iniciais de meu work de campo com a jurema, tal qual praticada em Recife, Pernambuco. Modalidade religiosa ainda pouco descrita nos registros etnográficos, e com uma intensa variabilidade de definições entre seus praticantes, a jurema se caracteriza, a primeira vista, como um conjunto heterogêneo de rituais, espíritos e pessoas. Meu objetivo é tentar agrupar algumas dessas definições nativas que, através de sua heterogeneidade, enfatizam o lugar central dos índios e caboclos como criadores e principais entidades da jurema. Entende-se que no decorrer do tempo, se uniram a eles as demais qualidades de espíritos, como mestres e mestras, ciganas, pretos-velhos, exus e pomba-giras. Mais especificamente, se diz que estas entidades foram acolhidas para “trabalhar dentro da jurema”. A entrada desses demais seres é normalmente interpretada pela bibliografia a partir de uma visada socio-histórica que teria como resultado uma síntese de agrupamento desses diferentes espíritos. Não obstante, o que as pessoas da jurema dizem, e principalmente o work ritual que operam, enfatiza uma gradação de forças entre as entidades, assim, o que tem mais força e antecedência ritual são os índios e caboclos e seus territórios: a jurema (sua árvore), as matas, as cidades onde habitam. Ou seja, se há uma visível abertura ao outro, isso não implica uma homogeneização das relações. A recorrente expressão “a jurema manda” indica que esse modo relacional se estende para além dos espíritos e entidades, incidindo na constituição dos corpos das pessoas, na interação da jurema com o candomblé, na modalidade de seu transe, etc.
Encantaria de Barba Soeira: relações entre encantados no terecô (Maranhão)
Autoria: Conceição de Maria Teixeira Lima (UFMA - Universidade Federal do Maranhão)
Autoria: O terecô é uma religião afro-brasileira muito praticada no Maranhão e estados vizinhos como Pará, Piauí e o Ceará. Em Codó, cidade onde faço pesquisa de campo, também pode ser ferida como Tambor da Mata e Encantaria de Barba Soeira, rituais nos quais acontecem a incorporação de entidades espirituais conhecidas como encantados. Os terecozeiros apresentam os encantados como pessoas que viveram na terra e que, em algum momento de suas vidas, desapareceram. Sem passar pela a experiência da morte passaram a habitar o mundo da encantaria. Estes seres vivenciam as suas relações com os humanos por meio da incorporação, aparições (visagens), e presenças em sonhos. Muitos deles são conhecidos pelas famílias ou falanges das quais fazem parte. Os que pertencem à família de Légua Boji Buá são muitos conhecidos no terecô de Codó. Apesar de expressiva presença nas tendas ( espaços rituais) dividem ambiente com outros seres como pomba giras, exus, erês, pretos velhos, orixás, voduns e encantados de outras falagens, como os Surrupiras. Essa diversidade de seres no terecô chamou minha atenção para os tipos de relações que se constituem entre eles. Na corrente de uma tenda, os encantados se organizam de forma hierárquica e apresentam divisões de funções. É comum ouvir de alguns Léguas que eles acolhem muitos encantados em sua encantaria. Além disso, apresentam entre si sentimentos de respeito, consideração, mas também de conflitos e divergências, se posicionando de forma diferente sobre a prática do terecô. Partindo de narrativas e vivências em campo, busco pensar como diversos vínculos e modos de relação entre os encantados se constituem e se mantem nesse universo.
Entre caboclos e orixás: relações e modos de fazer de um terreiro de candomblé na Região Metropolitana de Salvador
Autoria: Thaís Cristina Leal Verçosa (UFBA - Universidade Federal da Bahia)
Autoria: Esta proposta pretende discutir como a relação entre o orixá e o caboclo de uma jovem recém-iniciada no candomblé atravessou décadas e foi relevante para a vida religiosa dela, produzindo agenciamentos e conexões com outras entidades não-humanas - exus, erês, orixás e caboclos -, pessoas e espaços, definindo a escolha, construção e os cuidados com o terreiro de candomblé que ela veio a abrir após completar sua obrigação de sete anos e ser indicada para o cargo de mãe de santo. O caboclo Pena Branca apareceu na vida de Ana ainda na sua juventude e foi a partir da presença dele e das demandas exigidas que Ana começou a participar de sessões de mesa branca e de caboclo em alguns terreiros da periferia de Salvador. Como consequência do estreitamento das relações entre ambos, que se deu através de práticas de cuidado, Pena Branca solicitou que um terreiro fosse aberto para que ele pudesse ter sua própria sessão. A escolha inicial do local para o terreiro se deu em Salvador, mas o caboclo não estava satisfeito e um terreno foi indicado na cidade de Simões Filho por um dos clientes que frequentava as sessões do caboclo. Para os integrantes do terreiro, o novo local não apareceu por acaso: antes se deu pela interferência do caboclo na vida de Ana e a escolha do espaço marcava seu território. Apesar de levar o nome do orixá de cabeça da mãe de santo, eles acreditam que aquela terra também pertence ao Seu Pena Branca. Passadas algumas poucas décadas, com o crescimento das cidades, o local onde o terreiro se situa, antes um brejo ermo, se tornou um espaço mais habitado e muitas casas foram construídas no entorno. Com o crescimento populacional, a violência também chegou ao bairro e o tráfico de drogas se instalou nas imediações, trazendo medo à mãe de santo, que decidiu vender o terreno e mover o terreiro para outra região da mesma cidade. O orixá da mãe de santo enviou diversos recados através do jogo de búzios e do seu caboclo, indicando que o terreiro deveria permanecer onde estava, porém Ana decidiu remover todos os assentamentos e plantar o axé em um novo espaço, a despeito da insistência de suas entidades. Poucos anos se passaram e o terreiro não prosperava, levando a mãe de santo a entender que seria necessário reassentá-lo no terreno anterior. Assim, mais uma vez o terreiro se moveu no espaço, sendo necessário levar consigo todos os objetos e pessoas que o integram, onde permanece até então. Aqui, as entidades da mãe de santo são fundamentais tanto para entender sua trajetória religiosa quanto a instauração do terreiro de candomblé enquanto tal e seu deslocamento no espaço, lidando com os diversos agenciamentos que foram e são necessários para que o terreiro se firmasse ao longo do tempo.
Entre Entidades e fotografias no Terecô
Autoria: Fladney Francisco da Silva Freire (UFG - Universidade Federal de Goiás)
Autoria: O complexo campo da religiosidade afro-brasileira tem se apropriado cada vez mais das visualidades como uma narrativa importante no cenário nacional, seja na luta pelo acesso das políticas públicas ou na divulgação das práticas ritualísticas nas redes sociais. O campo da antropologia visual em diálogo com a antropologia da religiosidade afro-brasileira tem sido importante na construção teórica da pesquisa. Nesse sentido, a fotografia tem possibilitado perceber narrativas de temporalidades, afetos e reciprocidades. O presente work busca elencar o complexo e criativo enlace entre pessoas, entidades e fotografias no Terecô. Vale ressaltar que o Terecô é uma das religiões afro-brasileiras difundidas pelo estado do Maranhão com entidades organizadas em famílias, tendo muitas festas com toques de tambores nos terreiros. Trato do terreiro da minha família de sangue e de santo, localizado o terreiro na cidade de Bacabal (MA).
Fluxos e confluências de um terreiro Omolokô em Juiz de Fora/ MG
Autoria: Kelly Araújo Rabello (CAPES)
Autoria: Os cultos afro-brasileiros se estabelecem a partir de arranjos complexos, nos quais as construções religiosas não se apresentam de formas cristalizadas e imóveis (CAPONE, 2004). Em um terreiro Omolokô, na cidade de Juiz de Fora - MG, são observados trânsitos religiosos e identitários em diferentes esferas, a começar pela própria trajetória da chefe de terreiro. Aritana relata ter passado por diversas religiões ao longo de sua vida, dedicando-se, especialmente, à Umbanda e ao Candomblé. Segundo seus relatos, seus caminhos nas religiões afro-brasileiras começaram ainda na infância, acompanhando os percursos de sua mãe de sangue que, na época, liderava um centro de Umbanda. Já na vida adulta, fez o santo no Candomblé e permaneceu por alguns anos em um mesmo barracão. Aritana entende que a Umbanda é uma obrigação em sua vida, da qual não pode se desvincular. Por sua vez, no Candomblé se identificou e sentiu-se totalmente envolvida. Como uma resultante de sua trajetória, encontrou no Omolokô o ponto de convergência de seus caminhos, fundando em 2006 o seu próprio barracão. A mãe de santo explica que o seu terreiro não se trata de Umbanda, tampouco de Candomblé. Ali se vive o Omolokô, um terceiro caminho, que permite a confluência de ambas as tradições. Por outro lado, Nadi, médium de incorporação do mesmo terreiro, afirma que é candomblecista e diz não querer mais se recordar sobre seu passado na Umbanda. Já Liro, que na sua juventude esteve prestes a fundar seu próprio terreiro e hoje é médium de incorporação no barracão de Aritana, associa o Omolokô à “Umbanda de raiz”, uma Umbanda onde prevalecem os aspectos africanos, mais especificamente de Nação Angola, como ele mesmo explica. Diante dessas, e de outras narrativas, o presente work trata-se de uma reflexão sobre os dados iniciais da minha pesquisa de campo, que se encontra em curso e, por essa razão, não dispõe de resultados concluídos. O objetivo desta comunicação não é desvendar a origem do Omolokô, tampouco é abordar a vinculação ou não desse culto à religião umbandista ou candomblecista. A proposta aqui se consiste em pensar o Omolokô como uma “teia” que costura diferentes fluxos, como um “emaranhado de fios e caminhos” (INGOLD, 2011, p.148) de diferentes trajetórias de vida e diferentes concepções sobre a religião. Nesse mesmo eixo, cruzam-se as histórias de pessoas que vivem, em seus cotidianos, uma relação intrínseca com as entidades religiosas e que no barracão, junto aos Orixás, Pretos-Velhos e Caboclos, sustentam o axé do Omolokô. A partir dessas reflexões, proponho, portanto, uma partilha sobre os fluxos do meu caminhar entre terreiros de religiosidade afro-brasileira em Juiz de Fora e meu doutorado em Ciência da Religião.
Lampejos e inquietações a partir da convivência com entidades
Autoria: Emília Mota (UFG - Universidade Federal de Goiás)
Autoria: O texto inicia testes que procurarei desenvolver durante o doutorado, de seguir movimento provocado por experiências de convivência com entidades como Mestra Paulina. O primeiro contato com ela foi no terreiro de umbanda localizado em Aparecida de Goiânia.Chegou na linha de exu e pombagira.Tratada apenas por “Paulina” naquele espaço, sempre que possível se dirigia até mim dizendo "Pra você posso falar, sou Mestra Paulina.“Mestra” era um termo apresentado para poucos.A situação acompanhada de outras histórias compartilhadas por ela, mas também por outras entidades como Maria do Balaio, permitem o pontapé para procurar outras maneiras de abordar e compor com entidades.Pretende-se um descentramento das análises que acabam por focar na pessoa humana (Tola, 2014), no que é considerado como “ser” “vivo”, “ser humano”, que possui um “corpo” e se constitui enquanto indivíduo, para as entidades/espíritos.Estes, por vezes, são reconhecidos como pessoas apenas em um tempo pretérito, em sua “vida” passada.As experiências com entidades/ espíritos, por outro lado, demonstram que possuem agência, contam histórias de outros tempos e de tempos atuais, transitam entre falanges e espaços geográficos, produzem efeitos em materialidades diversas e em nossas percepções.A presença delas no momento visível da incorporação conjuga temporalidades distintas, como comenta Palmiè (2014) e Santos Junior (2014). Interesso-me aqui por aquilo que o título do livro organizado por Ruy Blanes e Diana Espíritos Santo (2014) evoca “a vida social dos espíritos”.Os autores argumentam que o ponto de partida seria o da pragmática dos efeitos das agências das entidades, de seus rastros e extensões. As entidades podem ser conhecidas através das trajetórias sociais que traçam no mundo.Na busca de possibilidades metodológicas e teóricas de fazer etnografia com entidades/espíritos, de tomá-las também como eixos narrativos e suas diferentes maneiras de se fazerem presentes, de viverem, dos movimentos, das agências, algumas categorias cintilaram e merecem nossas reflexões.Em “sociedades de universo único” (Nathan & Stengers, 2004) vida e morte são categorias que desdobram classificações para os seres.No caso dos humanos, os conceitos de espírito e de alma foram influenciados pelo que se pensa com o que acontece após a morte. Nessa disposição entre vivo/pessoa e morto/espírito outras categorias estão envolvidas como visível/invisível, natural/sobrenatural, corpo/mente.Reconhecendo que xamanismos, encantaria, jurema e outras religiões de matriz africana pertenceriam ao que Tobie Nathan denominou “sociedades de universo múltiplo”, cabe rever o tema da morte e da ancestralidade num caminho em que as entidades não existam apenas nas mentes ou nas teias de significados (Espírito Santo e Blanes, 2014).
MÃE XAGUI – uma encruzilhada de nações
Autoria: Ricardo Pereira Aragão (FAT - Faculdade Anísio Teixeira de Feira de Santana)
Autoria: O presente work tem como objetivo investigar, a partir da biografia religiosa de Carmelita Luciana Pinto, Mãe Xagui, o processo de formação de uma mãe de santo no candomblé de matriz bantu (candomblé Angola) ao longo dos seus 80 anos de iniciação, bem como as redes de relações estabelecida por ela no processo de produção do seu modo de fazer candomblé. Nascida em 17 de março de 1929 e iniciada no Terreiro Tumba Junsara em 1936. Mãe Xagui completa, em 29 de dezembro, 80 anos de inciação. O Tumba Junçara foi fundado em 1919 em Acupe, na Rua Campo Grande, Santo Amaro da Purificação, Bahia, por dois irmãos-de-esteira cujos nomes eram: Manoel Rodrigues do Nascimento (Kambambe2) e Manoel Ciriaco de Jesus ( Ludyamungongo), ambos iniciados em 13 de junho de 1910 por Maria Neném. O Tumba Junçara foi transferido para Pitanga, no mesmo município, e depois para o Beirú, local onde Mãe Xagui fora iniciada. A iniciação de Mãe Xagui, aos 07 anos de idade, pode ser entendida como uma abertura para possibilidades de compreensão diversa do “padrão ideológico e ritual dos terreiros de candomblé da Bahia” (PARÉS, 2006, P.102) reclamando para si uma ancestralidade mítica relacionada a uma determinada região de origem, não mais dos indivíduos mas das entidades espirituais para os quais o fiel foi iniciado, o modo como o candomblé foi sendo produzido pelos seus adeptos muitas vezes transcendiam a questão da “pureza ritual”. Minha percepção durante a produção da dissertação de mestrado (ARAGÂO, 2012) é que, embora os discursos presentes sejam de reafirmar a pertença a uma nação de candomblé, as práticas tendem a apontar para uma dimensão mais complexa na construção do cotidiano religioso, orientado por uma dimensão de cuidado (RABELO, 2014). Desta forma, a biografia de mãe Xagui abre possibilidades de análises e compreensões de um outro mundo presente na formação do Candomblé baiano e da cidade de Salvador, a partir dos percursos religiosos que ligam Mãe Xagui
Na reza e no Candomblé, o caminho da obrigação como noção central para a compreensão de uma ética do cuidado
Autoria: Luciana Duccini (UFBA - Universidade Federal da Bahia)
Autoria: Esta é uma proposta de cunho teórico que procura discutir a noção de “obrigação” como ideia chave para a compreensão da ética em uma ampla gama de expressões religiosas presentes no Nordeste do Brasil. Ainda assim, a discussão se inspira em work de campo realizado, em diferentes momentos, entre rezadeiras e benzedores do sertão da Bahia e Pernambuco e no Candomblé de Salvador. A benzedura costuma ser tratada como religiosidade popular diretamente ligada ao Catolicismo, porém observa-se a importância central de elementos como o uso de folhas (tanto na reza em si, quanto no preparo de banhos e beberagens), a comunicação direta com seres espirituais (em sonhos e aparições) e, sobretudo, a importância da descoberta de um “dom” de curar e aliviar aflições que estabelece uma “obrigação”. Tais elementos podem ser colocados em diálogo com a figura do caboclo no candomblé da Bahia, cuja atribuição principal é vir para “trabalhar”. Desta forma, um dos argumentos deste work é que a reza pode ser recontextualizada no campo afroindígena, como o fazem estudos em região amazônica, sem desconsiderar as fronteiras traçadas pelos próprios participantes. As formas de religiosidade aqui consideradas atribuem grande relevância ao tratamento das aflições sofridas, seja no corpo, na “alma” ou nas relações interpessoais, pelas pessoas que as buscam. Receber estas pessoas e tratá-las é um “dom” cuja origem diversa no caso da reza e do caboclo precisa ser considerada, pois neste último, há a distinção entre a entidade espiritual que “desce” para trabalhar e seu médium, que tem a obrigação de recebê-lo. Ainda assim, temos em ambas um dom que estabelece uma obrigação. Embora praticantes da benzedura se esforcem para demarcar a distância entre suas práticas e as de matriz africana, como o Catimbó e o Candomblé, e que haja, de fato, diferenças significativas, aproximações são possíveis tanto no que diz respeito às práticas quanto a ideias fundamentais em todo este campo popular afroindígena. Este work não tem o intuito de eliminar as diferenças e nuances entre as diversas práticas religiosas que comportam a noção de obrigação aqui considerada, mas antes de acompanhá-las, traçando seus contornos e, a partir deles, propor que se trata de uma concepção capital para a compreensão da ética própria de um conjunto amplo de religiosidades que têm na dimensão do cuidado seu pilar central, como podemos ver em works recentes.
Os terreiros de umbanda amazônica e seus modos de convivência com os encantados em São João de Pirabas, litoral amazônico.
Autoria: Hermes de Sousa Veras (Doutorando)
Autoria: Para algumas pessoas em São João de Pirabas, cidade do nordeste paraense localizada no litoral amazônico, conviver com encantados requer cuidado e respeito. Para outros é possível ainda recebê-los em suas croas (coroa, região da cabeça por onde a irradiação e/ou incorporação se potencializa). Os encantados, via de regra, são seres que não passaram pela morte física e sim por um processo de transformação, o encantamento. A partir daí, eles se conectam com determinadas regiões (as encantarias) que podem existir na própria geografia a qual podemos acessar, a terrena, mas também apenas em outras regiões, como o fundo (de rios, mares, igarapés). Em São João de Pirabas, uma região reconhecidamente encantada é a área insular da Praia do Castelo, onde reside uma pedra escura que é lida como a pedra do Rei Sabá (Rei Sebastião), encantado que domina os espaços litorâneos que vão do Pará ao Maranhão. A sua influência na cidade é tanta que todo dia 20 de janeiro há uma festividade, quando recebe oferendas e outras homenagens. Além disso, a encantaria de Rei Sabá surge relacionada com outras três encantadas, Cabocla Mariana, Tóia Jarina e Cabocla Herondina, que na mitologia local são descritas como filhas encantadas de Rei Sebastião. Essa trama das entidades reverbera entre as pessoas que as recebem e convivem com elas. A partir de pesquisa de doutorado em conclusão, trarei um panorama dos terreiros de São João de Pirabas e exemplos de como eles se relacionam com os encantados, que acabam por se conectarem com outros tipos de seres, tais como o povo da rua e malandros, caboclos, voduns e orixás. Essas conexões são cantadas em pontos e doutrinas, mas também narradas por esses seres. Junto a essas narrativas e elementos da teogonia encantada, trarei exemplos de como esses seres se relacionam e fazem com que as pessoas mobilizem redes de cuidado e respeito.
Os vínculos do Peji: corpos, curas e caboclos em uma religião de matriz africana do sertão baiano.
Autoria: Gustavo Ferreira Fialho (UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro)
Autoria: Como resultado da pesquisa de campo de doutorado, o presente work pretende percorrer algumas relações entre praticantes e entidades do Peji, religião de matriz africana situada no sertão baiano. Nas áreas rurais em torno da cidade de Jacobina encontram-se as casas e terreiros de Peji, onde os caboclos são as principais entidades envolvidas, mas não as únicas. As dinâmicas em torno do Peji propõem um regime de interações entre santos, orixás e caboclos no qual ao mesmo tempo em que várias entidades compõem seu universo religioso, cada uma é capaz de acionar uma prática específica. Desse modo, por meio das obrigações, especialmente os Carurus que são seguidos pelo toque dos tambores, os praticantes atualizam os vínculos com os seus caboclos e outras entidades. Procuro explorar esses vínculos que podem ser considerados inevitáveis e, portanto, são construídos e modulados ao longo de toda a vida dos “pejizeiros”, tanto no plano ritualístico e público quanto no plano da vida cotidiana. Nesse sentido, a minha principal intenção é fazer notar que esses vínculos são também criados nos corpos, sendo responsáveis pela produção e cuidado dos mesmos, o que se evidencia ao menos de três formas distintas. Em primeiro lugar, talvez a maneira mais explícita, trata-se do fato de que aqueles que recebem os caboclos nas festas devem ser capazes de atender aos intensos movimentos e ações dessas entidades. Muitas vezes, as incorporações exigem dos praticantes certa força e resistência consideradas excepcionais, criando e apagando marcas em seus corpos. Além disso, uma segunda maneira de observar nossa questão se atrela diretamente às práticas de cura que cercam o Peji. Isto é, as lideranças religiosas, os “curadores”, e seus caboclos são responsáveis pelo cuidado rotineiro dos corpos de seus filhos de santo, por meio de rezas, banhos, chás e outros works. Do que decorre, por fim, um terceiro modo de observação, a partir da interação frequente entre o saber dos “pejizeiros” e o saber da medicina tradicional. Mais do que apenas o confronto entre os dois saberes, o que nos interessa mostrar é que a eficácia das práticas dos “curadores” nos tratamentos de cura se assenta, em grande parte, na vinculação e proximidade entre pessoas e caboclos, em contraste com o distanciamento pelo qual as práticas médicas costumam operar.
Presenças e ausências no cotidiano, nas fotografias e nos rituais a Babá-Egún
Autoria: Andréa Silva D'Amato (UNIFESP - Universidade Federal de São Paulo)
Autoria: “Domingo vai ter um caruru, quer ir?”. “Você vai na saída de yaô ali no Lote?”. “Hoje tem axexê lá no Barro Branco”. “A Rosinha vai bater para caboclo no fim da tarde, aparece lá”. A experiência etnográfica em que se baseia esta pesquisa tem lugar no Alto da Bela Vista, em Itaparica (BA), envolvendo moradores do entorno do terreiro Omo Ilê Agboulá e o culto aos ancestrais, Babá-Egún. A ancestralidade reverenciada nas cerimônias a Babá-Egún desafia os limites da morte como instauração de um tempo passado, de maneira que o cotidiano em Bela Vista é habitado por ancestrais, orixás e outras presenças em agenciamentos de que participam humanos e não-humanos, inter-relacionando diferentes mundos. Nesta apresentação, será dada ênfase a modos pelos quais as fotografias participam desses enredos. Em diferentes momentos em que mostrei fotos antigas – de Pierre Verger e de acervos familiares – para pessoas mais novas, escutei: “Eu não alcancei este tempo”. A frase parece trazer à cena a astúcia das fotografias contra uma razão linear. A ação remete a um passado que está adiante, tensionando o limiar entre as bordas do tempo. O objetivo desta reflexão é não confinar as imagens à moldura da representação, buscando potencialidades de associação entre ausências e presenças mobilizadas no cotidiano, nos rituais, nas fotografias, nas memórias, na morte e no fazer etnográfico.
Tempo Reis: O acontecimento Malunguinho
Autoria: Cledisson Geraldo dos Santos Junior (OTSS)
Autoria: A percepção sobre a temporalidade nos terreiros de religiões afrobrasileiras ganha um sentido diferenciado daquele que estamos acostumados a experenciar em nossos cotidianos. Nos terreiros, é possível vivenciarmos o tempo não por sua linearidade e sim por saltos, acelerações, rupturas e diminuições de velocidades em detrimento, a uma linha temporal. Busco produzir um dialogo com Bergson que nos apresenta o conceito de duração, onde o tempo é duração, e nele não há mais uma relação de linearidade, nem de sucessão; passado e presente coexistem, são contemporâneos, havendo aí um paradoxo entre esses dois momentos heterogêneos e de naturezas distintas, ou seja, a duração se define pela coexistência, virtual, de tempos heterogêneos, ao invés da sucessão de eventos, isto é, há a coexistência de múltiplos planos temporais distintos. No culto da Jurema Sagrada, Malunguinho é uma entidade de grande poder, que se manifesta de quatro formas bastante distintas. Exu, caboclo, mestre e reis. O primeiro representa o mensageiro, fazendo o elo de ligação da linha da Jurema com as pessoas. O segundo é a figura do guia, o principal protetor dos praticantes do culto. O terceiro representa alguém que teve existência real na terra. A palavra Reis é escrita no plural, pois ele não é só apenas um Rei, mas sim vários reis representados em uma única divindade polissêmica e multifuncional. Malunguinho preservou suas características humanas de guerreiro, líder do Quilombo do Catucá, transpondo de forma mítica sua história real para sua cosmogonia, preservada em cânticos, rituais, dança e personalidade. Um homem bravo, forte, intolerante, tosco, bruto e perigoso. Malunguinho também é uma divindade que cura, que abre caminhos, que protege e afaga e é muito querido por quem o cultua, mesmo ainda sendo um esquerdeiro cruel nas horas de necessidade. Minha proposição a partir deste work visa questionar a interpelação de um passado que não deve ser entendido enquanto uma rememoração por compreende-lo sendo extensivo ao presente. Interpelar o terreiro (neste caso um território dedicado ao culto da Jurema Sagrada) desde a perspectiva da coexistência do passado e do presente pode nos apresentar alternativas sobre discussões referentes à persistência, em estratos ontológicos múltiplos, da escravidão negra e do racismo nas Américas.
Trama espiritual: pessoas, seres e reglas afro-cubanas no Ilé Oggún e Yemayá, Bogotá, Colômbia
Autoria: Luis Guillermo Meza Álvarez (PPGAS UFRN)
Autoria: Procuro explorar as relações que integrantes do Ilé Oggún e Yemayá constroem com um conjunto de seres espirituais/sobrenaturais por meio de algumas consagrações e, especialmente, a recepção de fundamentos. Nesse processo se estabelece uma série de vínculos que implicam em obrigações, responsabilidades, mas também em cuidados e proteção tanto com os ‘mais velhos’ quanto com os seres que passam a fazer parte da existência da pessoa e que têm uma presença material no lugar de moradia dos religiosos. Uma trama de relações entre pessoas (comunidade ou casa religiosa) e entre estas e um conjunto de seres (orichas, égguns de luz, nfumbe) que têm qualidades diferentes, dos quais tratam reglas diferentes (Espiritismo Cruzado, Palo Monte, Santería/Regla de Ocha e Ifá) por meio de uma série de procedimentos e sequências que conectam, dinamizam e também separam aquelas forças. No Ilé são praticadas quatro das principais religiões afro-cubanas, cada uma delas especializada no tratamento com forças distintas por meio de técnicas, receptáculos, ferramentas e espaços físicos diferenciados, cujas relações podem ser pensadas como de compatibilidade, alteridade, suplemento e complemento.
“Meus guias que fizeram meu encruzo”: feitura de uma mãe de santo no tambor de mina.
Autoria: Juliana Loureiro Silva (UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro)
Autoria: Desde menina Mãe Severina sofria com desmaios e aflições. Seu avô, Seu Dito, considerado entre os mais velhos como o maior curador que a comunidade quilombola de Santa Rosa dos Pretos já teve, costumava colocá-la no colo e a dizer que se estive ainda vivo quando ela fosse cumprir sua obrigação não a deixaria dançar. Ele considerava que era muito pesado carregar esse povo de Légua. Uma família de encantados numerosa, oriunda das encantarias das matas de Codó, que muitos pesquisadores e religiosos acreditam ser de origem banto e que desde o período da escravidão tem uma expressiva presença na região. O tempo passou, sua mocidade chegou e as aflições se intensificaram, mas Seu Dito já não estava entre os seus. Seu pai correu mundo em busca de um curador que tirasse “esse povo” dela. Mas todos diziam que isso a levaria a morte. Mesmo contrariando seu pai, Mãe Severina começou a dançar tambor de mina na Tenda Santa Bárbara de Mãe Georgina, assentada no próprio povoado. Dançou por anos sem nem ao menos saber quem era o guia que baiava em seu corpo. Foi então que se mudou para a cidade com seu companheiro e resolveu não mais dançar. Achava que se afastando do convívio com a comunidade poderia escapar da sina. Cortou todas as roupas de mina. Com os retalhos costurou roupas para filha e até pano de chão. Não passaram três meses e entrou em estado de “loucura”. Foi a maior “pisa” de caboclo que recebeu, quase morreu afogada no rio Itapecuru. Uma vizinha mineira compadecida de seu sofrimento resolveu fazer o seu “serviço”. Mas na hora do “encruzo” foram seus guias que tomaram a frente e colocaram as "contas"em seu corpo. A partir desse momento ela passa a ver, ouvir e reconhecê-los. Nessa comunicação apresento uma descrição a partir dos relatos de Mãe Severina, de seus guias e familiares, de como foi seu encruzo. Da narrativa extraímos o que esteve presente, a atuação das entidades, a posição que ocuparam nas relações e vínculos estabelecidos durante a crise e o encruzo, e de como Severina ganhou força e coragem para assumir sua sina de se tornar uma mãe de santo e fundar a Tenda Nossa Senhora dos Navegantes, a maior e mais conhecida entre as cinco hoje em atividade no Território Quilombola de Santa Rosa dos Pretos.
"Seu Tranca Rua que é dono da gira": Uma análise antropológica sobre Exu Tranca Rua no Terreiro Mina Nagô Cabocla Mariana e Tapinaré das Matas, nordeste paraense
Autoria: Victor Lean do Rosário (UEPA - Universidade do Estado do Pará)
Autoria: Este work tem por objetivo descrever os ritos, mitos e simbologias do dia de Exu Tranca Rua no Terreiro Mina Nagô Cabocla Mariana e Tapinaré das Matas, município de Igarapé-Açu, nordeste paraense, que ocorreu em 23 de agosto de 2019. Estas entidades pertencentes ao mundo umbandista são vistas como irascíveis, suscetíveis ao mal, e até mesmo são endereçadas como demoníacas, sendo estigmatizadas ao longo do processo de formação do Candomblé, até as suas variações na umbanda. Metodologicamente este work é construído a partir de um ensaio etnográfico, pois compreendemos que a etnografia é a própria teria vivida, e não apenas métodos de pesquisa. Ademais, utilizamos como procedimentos as conversas formais e informais com os/as médiuns do barracão, e as entidades que regem todo o aparato simbólico. Ao analisar a “Gira” de Exu, visualizando a preparação, os assentamentos, o sangue sacrifical, a corporeidade e a luminosidade do ambiente, percebemos que estas entidades recriam formas de (r)esistir na subalternidade da umbanda, manipulando determinados símbolos que são considerados pelo imaginário popular como demoníacos, para criar identidades singulares. Além disso, os Exus são vistos como arquétipos do mal, excluídos em vida do mundo social e posteriormente no mundo sobrenatural, que podem transitar entre a luz e a sombra, o sagrado e o profano, a benevolência e a malemolência, ou seja, Exu demonstra um dinamismo que não se encontra tão facilmente nas outras entidades. Por isso, Exu não é demônio, nem demônio é Exu, mas que se utilizam deste medo construído para formar suas próprias simbologias no mundo umbandista, pois sem Exu não se faz nada.
A musicalidade no Candomblé Ketu
Autoria: Erick Cauann Marques Alencar (UFRN - Universidade Federal do Rio Grande do Norte)
Autoria: O presente artigo nasce como fruto da disciplina de Antropologia Afro-Brasileira do professor Luiz Assunção e se propõe a estudar a musicalidade dentro da doutrina religiosa do candomblé de Nação Ketu, focado especifica no Ilê Axé Afinka, vulgo “Terreiro da Prata”, localizado em localizado na Rua do Girassóis, Macaíba-RN. Cep: 59280-000, liderado pelo Babalorixá Jorge Freire. Pretende-se com este tema, aprofundar-se sobre: o que são os atabaques, história, uso e importância; A figura do Ogan dentro do culto; A tradição oralizada como modo de aprendizado; A língua Yoruba e suas implicações; A relação integrativa das pessoas com a musicalidade; E a relação pessoa – santo (orixá) a partir do toque. Para tanto, debruça-se metodologicamente sobre os escritos de Raul Lody e Leonardo Sá com a obra: “Atabaque no Candomblé Baiano” lançado em 1989. Bem com o estudo da obra clássica “A mitologia dos Orixás” (2000), de Reginaldo Preandi. Diante da cosmogonia africana oralizada, tornou-se coerente que este artigo se baseei muito fortemente na pesquisa oral, por fontes orais. Sobre a fala do Pai de Santo, bem como do Elemaxo, agente fundamental da construção sonora deste espaço. Dentre outros cargos da instituição, que fomentam a tradição diante da prática diária, mantendo e remontando.