GT 52. Igualdade Jurídica e Igualdade de tratamento: etnografias de narrativas, produção de provas e processos decisórios e de construção de verdade jurídica em sensibilidades jurídicas diversas

Coordenador(es):
Regina Lúcia Teixeira Mendes da Fonseca (Ineac/UFF)
Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer (USP - Universidade de São Paulo)

Tendo em vista que pesquisas empíricas têm identificado ausência de critérios compartilhados na avaliação de provas e na definição dos procedimentos jurídicos vigentes em nossos tribunais e que o confronto entre diferentes concepções de igualdade acontece sem que parâmetros uniformes sejam observados e que o agravamento da tensão entre as duas concepções tem acentuado a percepção de arbitrariedade nos desfechos das causas, entre nós, este GT pretende criar um espaço de discussão acerca da igualdade de tratamento no nosso sistema jurídico, partindo de dados de observação do conjunto de elementos e dinâmicas que se encontram no centro de processos decisórios do sistema de justiça brasileiro e nos de outros países. Tal sistema, especialmente o Poder Judiciário, são centrais na consolidação de regimes democráticos, pois pretendem entregar à sociedade, como produto final de suas activitys, um conjunto de decisões que são impostas a toda sociedade: cidadãos, empresas e diversas agências estatais. O GT acolherá, em especial, trabalhos de inspiração etnográfica que se voltem para a compreensão : da produção de provas judiciárias; da construção narrativa de fatos e seu registro em peças judiciais; da formação da convicção de juízes(as) e demais profissionais do sistema de justiça; das disputas argumentativas, atribuição de sentidos e juízos morais envolvidos na construção de decisões judiciais, assim como para as práticas observadas nos sistemas de justiça estudados

Palavras chave: igualdade jurídica; igualdade de tratamento; processo judicial
Resumos submetidos
A FIXAÇÃO DA NARRATIVA POR LANGDON E O TRIBUNAL DO JÚRI: a fase de plenário e a supremacia do conselho de sentença.
Autoria: Kelda Sofia da Costa Santos Caires Rocha (OAB), Orientador Prof.º Dr. Greilson José Lima
Autoria: O texto “A fixação da narrativa: do mito para a poética de literatura oral” de autoria da pesquisadora Ester Jean Langdon da Universidade Federal de Santa Catarina apresenta alguns pontos sobre a discussão da dificuldade de converter-se a narrativa oral em texto escrito bem como as mais diversas problemáticas que perpassam o work de tradução dos textos que não exprimem todo o sentimento que comporta a forma de transmissão original. Apesar de ser uma pesquisa voltada para a área da antropologia e muito afeta ao âmbito dos estudiosos da linguagem percebe-se que a noção de performance adotada por Langdon serve para perceber a lógica da fase do plenário do Tribunal do Júri que exige mais capacidade interpretativa dos agentes que ali atuam do que necessariamente a relação técnica entre a sentença e as provas apresentadas. A presente pesquisa visa trabalhar essa relação entre aspecto performático do Tribunal do Júri, a influência dos fatores externos ao processo e o procedimento proposto pelo Código de Processo Penal sem deixar de perceber que os tribunais superiores possuem a intenção de coibir a prolação de sentenças sem vínculo com as provas apresentadas. Partindo de estudo realizado na seara da antropologia simbólica, visa-se com essa pesquisa ressaltar que todo o procedimento do Tribunal do Júri visa coibir o impacto da mídia nas decisões dos jurados, o que pode ser considerado um verdadeiro work de Sísifo, pois não importa a prova apresentada, o talento do advogado ou do promotor e a diligência do magistrado se a irracionalidade suplantar o bom senso entre todos os agentes envolvidos, principalmente no que tange ao conselho de sentença.
A reorganização da estrutura familiar a partir dos movimentos da Justiça Itinerante
Autoria: Danilo Barbosa Neves (UFPI - Universidade Federal do Piauí)
Autoria: O estudo que se apresenta procura compreender a influência das atividades da justiça itinerante piauiense junto aos indivíduos que buscam os seus serviços especializados. Em meio aos works de natureza judicial, inerentes às entidades do poder judiciário, existem outros que causam impactos sociais de notável envergadura. Em especial, dois eventos convergem a atenção: aqueles voltados para a construção e desconstrução dos laços matrimoniais. Além disso, as eventuais modificações na estrutura familiar dos indivíduos que buscam a participação nos casamentos comunitários, e naqueles que decidem pelo divórcio consensual, ambos organizados e oferecidos pela itinerante. O recorte está restrito à cidade de Teresina – PI, nos eventos ocorridos no ano de 2019. Nesse contexto, pontos centrais são caros à pesquisa e merecem discussão: interesse do estado em patrocinar tais eventos coletivos; sentimento de inclusão social por parte dos indivíduos e a dinâmica nas relações de parentesco, influenciadas pelo poder estatal.
Criminalização do aborto: as provas controversas no caso das dez mil
Autoria: Emilia Juliana Ferreira (PUCPR - Pontifícia Universidade Católica do Paraná)
Autoria: A criminalização do aborto no Brasil incide sobre uma pequena parcela dos casos, o que significa que poucos são os reportados e julgados no Sistema de Justiça. O que se constata com isso é que o Estado tem um poder falho ou seletivo para a punição de tal prática, pois não há aparato legal suficiente para tal fim. Isto não quer dizer, porém, que não há interesse na sua criminalização. O que existe é um interesse na criminalização de alguns casos específicos, que acabam servindo como forma de demonstração da efetividade da lei e reforço ao caráter criminoso da ação. No ano de 2007 essa atenção em torno da criminalização do aborto tomou enormes proporções no estado de Mato Grosso do Sul. Na ocasião, a partir de uma denúncia através de uma reportagem investigativa de uma rede nacional de televisão, a polícia fechou e passou a investigar uma clínica médica, acusada de praticar abortos ilegais. Um imenso processo criminal resultou dessa investigação e muitos documentos e materiais foram apreendidos como objetos de prova na clínica. Os mais contundentes e mais controvertidos foram os prontuários médicos, aproximadamente 10.000 (número que dá nome ao caso), pois foram eles que embasaram a persecução penal das quase 1200 mulheres processadas por terem comparecido a essa clínica. Este processo que acusou a médica e as funcionárias da clínica dá o “tom” de todas as investigações posteriores, que acabam se tornando seriadas. É a culpabilização da Clínica que continua a culpabilizar as mulheres em sequência e, segundo a interpretação do Ministério Público, é a pretensa culpabilização dos procedimentos realizados nesta Clínica que evidencia as provas relativas às mulheres. Muitas Clínicas suspeitas de praticarem abortamentos já foram fechadas em todo país, mas nunca antes se havia indiciado as mulheres que por ela tivessem passado, através da investigação de seus prontuários. É justamente nessa “prova” que incide o elemento principal de discussão deste caso, pois prontuários médicos são considerados itens de confidencialidade entre médico e paciente e, portanto, esse objeto de escrutínio penal torna-se contestável. No entanto, sem ela não seria possível criminalizar as mulheres e é na insistência da legalidade dessa “prova” que os atores do judiciário baseiam seu work, porém, não sem serem confrontados pelo movimento de mulheres. A repercussão desta discussão é tamanha que transborda o campo jurídico, e o campo político é também acionado para dar legitimidade a essa prova. Neste artigo pretende-se analisar o conjunto de provas deste caso e entender como mesmo uma “prova” tão controversa é defendida pelos atores do judiciário e torna-se admissível por conta de um contexto político local propício a criminalização do aborto.
Da Aldeia ao Fórum: Julgamento de um Xavante por um Tribunal do Júri em Barra do Garças-MT
Autoria: Andressa dos Santos Alves (Funai)
Autoria: O presente work trata-se de uma etnografia em andamento de um julgamento de uma pessoa indígena Xavante (autodenominado A’uwẽ), perante o Tribunal do Júri no Fórum da Comarca de Barra do Garças, Mato Grosso, em 09 de agosto de 2018, onde foi acusado de homicídio qualificado, nos termos do artigo 121, § 2º, IV do Código Penal. O Processo Penal envolveu pessoas indígenas dentro do território indígena: o réu foi acusado pela morte de seu sobrinho durante uma caçada no interior da Terra Indígena São Marcos, município de Barra do Garças. Neste processo não houve testemunha ocular, e tampouco exame necroscópico para apurar a causa da morte, além de apresentar diferentes versões do fato-crime conforme a posição social ocupada pelo narrador, e, mesmo assim, o veredicto popular reconheceu a modalidade dolosa do crime de homicídio qualificado, o que nos leva à questão: como foi construída a verdade jurídica que levou à condenação do réu? A pesquisa está estruturada em uma metodologia qualitativa e etnográfica, em pesquisas bibliográficas e na análise dos autos processuais, para compreender o tratamento dispensado pela justiça em julgamentos de indígenas. Neste sentido, trata-se de um duelo de duas sociedades distintas, do réu indígena de um lado, e dos jurados, promotores e juízes de outro. São representantes de uma sociedade não indígena com o poder de julgar um réu de uma outra sociedade, étnica e culturalmente diferenciada. Assim, busquei voltar meu olhar para as relações de poder em jogo, mais especificamente o poder de julgar, da prática do Estado de não reconhecer a autodeterminação dos povos indígenas em resolver seus próprios conflitos internamente.
Discursos e práticas jurídicas em autos processuais de crimes sexuais
Autoria: Laís Ambiel Marachini (UNICAMP - Universidade Estadual de Campinas)
Autoria: Neste work analiso os discursos e as práticas jurídicas presentes em um processo penal que versa sobre um caso de estupro de vulnerável. Com vista a oferecer elementos que contribuam para a construção de uma ponte entre estudos antropológicos e estudos de direito penal, aponto associações e contradições mobilizadas nas argumentações trazidas pela defesa e acusação. Trata-se de entender a construção narrativa de fatos e seu registro em peças judiciais, principalmente nas peças das alegações finais e a sentença do juiz. Este work é baseado em minha pesquisa de mestrado que tem por objetivo entender como os profissionais do direito (particularmente juízes, promotores, advogados) constroem seus discursos sobre vítima e réu, articulando gênero, classe social, faixa etária, raça, gênero e etnia. O work de campo etnográfico está sendo realizado em uma Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e tenho realizado etnografias de audiências e julgamento de casos de estupro em que o acusado é membro da família da vítima, além de acompanhar os processos judiciais de cada caso assistido em audiência. Para entender os discursos e as práticas jurídicas mobilizadas, analiso, a partir do olhar antropológico, um dos casos observados em campo com a finalidade de discutir percepções de violência, justiça, juízos morais, sexualidade e infância suscitadas pelos profissionais do direito.
Enfrentando dicotomias: discussões teóricas a partir de uma etnografia de varas criminais federais.
Autoria: Pedro Roney Dias Ribeiro (MPF)
Autoria: Durante os anos de 2018 e 2019, realizei uma pesquisa etnográfica sobre o processamento de crimes federais em Fortaleza/CE, com observação de audiências, entrevistas com atores do sistema de justiça e leitura de peças jurídicas. Para compreender melhor o ambiente pesquisado, suas dinâmicas de interação e os julgamentos que dele emanam, trabalhei na dissertação de mestrado com as noções de bolha (em oposição à de fractal), de discricionariedade (em oposição à de arbitrariedade) e de juiz Antígona (em oposição à de juiz Hércules). Afirmei que o sistema de justiça criminal de Fortaleza/CE é uma bolha, na medida em que possui características distintivas em relação a outros sistemas de justiça, tais como os tipos de crimes que são julgados, a estrutura privilegiada e as marcas pessoais dos juízes na condução dos processos. Propus que os magistrados são Antígonas, pois aplicam as normas com criatividade e sensibilidade amparadas em um sentimento de justiça, como construtores de decisões personalizadas para cada caso, sem uma aplicação automática e irrefletida da lei e das decisões dos tribunais. Fiz esforços para reafirmar a categoria “discricionariedade” porque ela se relaciona com a ideia de limites, nem sempre tão claros na noção de “arbitrariedade”. Neste artigo, pretendo buscar soluções que harmonizem as dicotomias bolha/fractal, discricionariedade/arbitrariedade e Antígona/Hércules, sem esquecer os dados etnográficos colhidos na pesquisa de mestrado. Estou inspirado pelo estado “vivomorto” do experimento mental do Gato de Schrödinger e pela ideia de “parcialidade mitigada” trazida por um juiz interlocutor, que tenta solucionar a dicotomia entre parcial e imparcial. Proponho que alguns desses termos dicotômicos encontram-se superpostos no sistema de justiça criminal federal, que é, a um só tempo, bolha e fractal, com juízes que encarnam simultaneamente Hércules e Antígona. Além disso, enxergo que a discricionariedade e a arbitrariedade do sistema também se encontram superpostas, em um modo de decisão que denomino de “bom direito”. No entanto, apesar do adjetivo “bom”, esse modo de decisão carrega subjetividades morais de cada julgador, que não podem ser classificadas como “boas” ou “más”, segundo um paradigma de neutralidade axiológica. Por fim, inicio uma reflexão sobre a existência de um “mau direito”, que pauta decisões que contrariam o próprio senso de justiça do julgador ou, pelo menos, contrariam um núcleo ético básico da magistratura, a ser definido em termos menos romantizados do que os previstos no Código de Ética da Magistratura Nacional.
Estratégias narrativas em crimes de feminicídio: um estudo a partir do crime da Lagoa dos Barros (Porto Alegre/Osório, RS, 1940).
Autoria: Janaina de Souza Bujes (UFRGS - Universidade Federal do Rio Grande do Sul)
Autoria: Em agosto de 1940, uma mulher foi morta em Porto Alegre e seu corpo foi encontrado submerso na Lagoa dos Barros, na cidade de Osório. Sua existência permanece viva e é constantemente evocada, seja nas lendas da Lagoa dos Barros, seja entre os “casos históricos” do Poder Judiciário. Independente da versão sobre os fatos, sua história converge com a sua lenda quando se fala sobre os motivos de sua morte. Ela fora vítima de feminicídio, em uma época que tal categoria sequer existia. Nesta pesquisa, busco fazer um exercício reflexivo de “ida e volta”, a partir das narrativas jurídicas ligadas aos crimes de morte contra as mulheres. Tomando o “crime da Lagoa dos Barros” como ponto de partida, proponho uma discussão sobre a constituição das representações sociais de gênero e das estratégias narrativas acionadas quando envolvem casos de feminicídio. Considerando a incorporação desta história no imaginário social, tenho por objetivo compreender como este caso foi tratado juridicamente, quais os marcadores sociais de diferença são mobilizados e quais elementos deste crime e do julgamento do caso contribuíram para o reforço desta “lenda” entre a população local, transformando-se em um tipo de narrativa fantástica que permanece na memória coletiva. Embora ocorrido no século passado, argumento que este caso permite problematizar cenários jurídicos contemporâneos, por tratar-se de um crime ainda recorrente na atualidade. Partindo de uma pesquisa qualitativa, com a perspectiva da etnografia de documentos, o estudo toma como base analítica os documentos que compõem o processo judicial, além de elementos coletados em diferentes reportagens sobre o caso, produzidas por jornais da época. Como suporte teórico, utilizo os autores da Antropologia do Direito e pesquisas que analisam narrativas jurídicas sobre julgamentos do Tribunal do Júri, estabeleço um marco comparativo a partir de recortes espaço-temporais diversos. O estudo sugere que os papéis de gênero atribuídos, não são homogêneos e fixos, mas constantemente negociados. Todavia, mesmo em contextos sociais semelhantes, elementos ligados à temporalidade ou outros marcadores sociais de diferença podem implicar em narrativas e efeitos sociais diversos. Há um atravessamento de classe e raça, uma diferenciação na abordagem do caso que, por envolver uma mulher branca e da elite urbana, contribuiu para torná-lo excepcional e emblemático, quando este tipo de violência era considerado restrito às camadas populares. Isto reforça a complexidade destes casos, sendo fundamental tensionar generalizações e enfocar os casos específicos, ao tratarmos de processos judiciais e práticas estatais. Esta estratégia parece bastante potente e pode contribuir para os estudos do campo jurídico e das análises da Antropologia do Direito.
Justiça mais perto de quem? A reorganização espacial do judiciário e os diferentes matizes do acesso à justiça
Autoria: Eric Rola Almeida (Tjap), Marcus Cardoso (PPGEF/UNIFAP)
Autoria: A presente proposta compreende uma análise acerca de elementos que partem da discussão sobre a importância da proximidade do Judiciário para com os jurisdicionados ou com os órgãos da administração dos conflitos judiciais (Ministério Público, Advocacia pública e Defensoria Pública) quando ambas se mostrarem mutuamente impossíveis. Em seguida, reflete sobre como esta relação de proximidade/afastamento afeta uma característica que entendo importante para os jurisdicionados, qual seja, a possibilidade de estar presencialmente diante de um Juiz, e, por fim, como isto se relaciona com a possibilidade que as partes têm de se manifestar no processo, conflitando a perspectiva formal-doutrinária e a forma como isto é acionado pelos interlocutores. Esta reflexão tem como base um estudo etnográfico realizado na Subseção Judiciária de Laranjal do Jari (SSJLJI), Amapá, ao longo de 2018, estendendo-se até junho de 2019, tendo como vetor circunstancial a discussão acerca da transferência daquela unidade jurisdicional para outra cidade (Macapá-AP ou Brasília-DF). A partir das observações, anotações do campo, análise de processos, e entrevistas realizadas com servidores, trabalhadores terceirizados e com o juiz da SSJLJI, propomos interpretar e refletir sobre as práticas e sentidos atribuídos pelos interlocutores da pesquisa diante do debate local acerca da possibilidade de transferência da referida Subseção Judiciária. Tendo como base o material etnográfico, sugerimos a existência de um senso de “dispensabilidade” do Judiciário em relação à proximidade com o jurisdicionado, enquanto se valoriza uma maior proximidade com os demais órgãos da administração da justiça, propondo que isto se relaciona à autoridade que se tem para figurar no campo jurídico, característica que falta aos jurisdicionados (que precisam ter seus anseios traduzidos para o linguajar jurídico a fim de efetivamente impulsionar o Judiciário). Sugerimos ainda que os processos de afastamento/filtragem linguística tornam menos palatáveis os litígios judiciais aos cidadãos, uma vez que a possibilidade de estar diante de um magistrado abre margem para uma comunicação mais efetiva e menos filtrada. Por fim, notamos que a forma como o direito de manifestação em um processo se dissocia do real anseio comunicativo dos litigantes, que desejam se expressar livremente em seu próprio linguajar, pois somente nestes termos se tem a real dimensão dos fatos subjacentes ao conflito, o que escapa na tradução para o dialeto jurídico, tornando a solução judicial alheia aos reais anseios de dignidade e reconhecimento dos cidadãos.
Laudos antropológicos, Povos e comunidades tracionais e judiciário: práticas e sentidos de justiça em conflitos pela terra
Autoria: João Vitor Martins Lemes (UFT - Fundação Universidade Federal do Tocantins)
Autoria: As identidades e territorialidades dos povos e comunidades tradicionais são garantias recentes no Brasil. Somente com a Constituição democrática 1988 iniciam-se movimentos substantivos para reparação dos processos de subjugação/exclusão/marginalização aos quais foram submetidos esses sujeitos. Outrossim, apesar de claramente garantidas no ordenamento jurídico pós-88, no plano material essas identidades e territorialidades não são efetivamente asseguradas, em razão da dificuldade do Estado em compreender e internalizar as categorias sob as quais assentam as vidas desses grupos, sobretudo no contexto dos conflitos socioambientais que os processos de desenvolvimento impõem, cotidianamente, e que impactam diretamente nos modos de fazer, viver e criar desses grupos. Levando em consideração o descompasso gerado pela não compreensão das diversidades culturais nos processos políticos e jurídicos estatais e partindo do pressuposto que as contribuições das perícias antropológicas nos processos judiciais apontam novas possibilidades no sentido de superação dos obstáculos impostos pelo direito moderno à garantia dos direitos fundamentados nas diversidades, a presente proposta propõe-se refletir de que forma os laudos periciais antropológicos contribuem para a legitimação dos direitos desses sujeitos a partir da inserção de subsídios para que decisões jurídicas sobre as vidas desses grupos humanos respeitem ao máximo suas dinâmicas socioculturais.
O desejo e a intenção sob exigências comprobatórias: o afeto na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça
Autoria: Sara Regina Munhoz (UFSCAR - Universidade Federal de São Carlos)
Autoria: Proponho apresentar os resultados parciais de minha pesquisa de doutorado a respeito da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em especial a dedicada à definição de família desde a promulgação do Novo Código Civil (2002). Na construção das narrativas jurisprudenciais, o parentesco tem requisitado duas linhas de direitos fundamentais que não podem ser negados aos indivíduos que os reclamam. De um lado, os relacionados aos princípios constitucionais que garantem o conhecimento da ascendência e das origens genéticas, imbricados à ideia de personalidade. Por outro, os vinculados à dignidade humana, à solidariedade e aos laços de afeto. A identidade genética e a identidade de filiação têm sido, portanto, dois tipos de informação que podem ser invocadas simultaneamente, com ênfases variadas, ou, ainda, alternativamente. No caso das instâncias superiores, tão complexas quanto a definição das relações que podem ou não ser enunciadas como família são as possibilidades de averiguação das conexões que a articulam. O STJ tem considerado que pode haver famílias mesmo onde os cartórios não a comprovem, mesmo onde os exames genéticos não as reconheçam. Mas é preciso que o afeto seja, de alguma maneira, averiguável. O problema é que afeto é escorregadio nessa instância do sistema de justiça brasileiro. Porque a relação socioafetiva, como a doutrina e a jurisprudência constatam, não exige registro público, mas “ocorrência no mundo da vida”. Não exige coabitação, tampouco duração mínima de convivência para que se confirme. Sua apreensão espaço-temporal é fugidia. Mas ela precisa ser comprovada pela intenção ou pelo desejo de constituição de uma unidade familiar. O STJ tem insistido em conceitualizar a família a partir desses critérios intangíveis – o afeto, a intenção, o desejo – ainda que não possa constatar as relações que poderão ser classificadas como familiares por nada além do que registros sintéticos, documentos produzidos a partir de ainda outros documentos. O principal material de que dispõe para fazer famílias são as narrativas extraídas das sentenças originais, já que dentre as incumbências delegadas ao STJ se exclui explicitamente a possibilidade de reexame das provas. O posicionamento do STJ refere-se a teses jurídicas que ministras e ministros extraem das petições recursais e das sentenças originais que lhe chegam. É de meu interesse descrever e analisar os que têm sido considerados elementos indispensáveis para a composição dos acórdãos e os modos como as teses jurídicas constroem-se requisitando as capacidades de síntese e de suficiente abstração. Tratarei dos modos como o afeto se transforma em elemento comprovável, palpável, capaz de sustentar a existência de laços que escapem a quaisquer outros registros.
O Estado contra a família quilombola: uma etnografia sobre o racismo, conservadorismo, elitismo da justiça brasileira.
Autoria: Thiago da Silva Santana (UFSC - Universidade Federal de Santa Catarina)
Autoria: Este artigo visa analisar as medidas judiciais que vêm ocorrendo no Estado de Santa Catarina, no intitulado “Caso Gracinha”, mulher negra e mãe quilombola que perdeu a guarda das suas filhas em um processo que viola o bom entendimento do que deve ser o Estado Democrático de Direito ao proceder com medidas que atravessam as leis e tratados internacionais que protegem comunidades tradicionais, as ignorando completamente. Os atos do Poder Judiciário do Estado se baseiam na construção de verdade dos servidores vinculados ao sistema judicial – assistentes sociais, médicos, psicólogos, promotores e juízes –, os quais são dotados de fé pública, ao mobilizarem noções equivocadas a cerca da constituição familiar dos povos tradicionais, ancoradas no racismo institucional, na discriminação por classe e na misoginia. Para dar conta de tal empreitada foram analisados os autos disponíveis do processo no intuito de entender quais noções e padrões de moralidade foram mobilizados na construção narrativa que dá sustentação à biografia da ré, justificando erroneamente a decisão da magistrada responsável pelo caso. O work foi projetado com a ajuda da metodologia e das ferramentas técnicas de pesquisa que se desenvolvem no bojo dos estudos da Antropologia do Direito e dos debates internacionais sobre a questão racial, tendo como técnica principal a etnografia, proveniente, não somente dos autos processuais, mas também das percepções de conjuntura dos atores sociais envolvidos na trama. Com essa metodologia foi possível refletir sobre a relação multidimensional que existe entre etnografia e biografia, narrativa e escrita objetiva, percepção da vida e realidade. Para tanto, este work se encontra na linha tênue que busca balancear esses conflitos, levando em conta o respeito à vida, às diferenças, e à valorização da justiça social.
Práticas cotidianas do estado dentro do caso Rafael Braga Vieira
Autoria: Caroline Laya de Menezes (USP - Universidade de São Paulo)
Autoria: O artigo extraído do work final de graduação defendido na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, chamado "Um estudo sobre as dinâmicas do estado a partir do caso Rafael Braga Vieira", é uma análise do documento de estado que sentenciou Rafael Braga Vieira em sua segunda apreensão, partindo do princípio de que a partir do que podemos chamar de uma etnografia desse instrumento burocrático do estado que está na esfera jurídica, como o documento de sentença de um acusado, podemos ver refletido nele lógicas de poder.  Neste artigo, busco destacar trechos que compreendo que evidenciam arbitrariedade da justiça na condenação estudada. Os trechos serão analisados de acordo com a ordem que aparecem no documento. Rafael Braga Vieira, homem negro, coletor de materiais recicláveis e oriundo de comunidade periférica do Rio de Janeiro, ficou conhecido no contexto das manifestações de junho de 2013, após ser apreendido com produtos de limpeza e condenado em seguida, com a acusação de porte de material explosivo. Seu caso veio à tona nos meios midiáticos, principalmente por ser um retrato da seletividade penal do sistema judiciário. Mesmo após o destaque do seu caso em movimentos sociais e o engajamento de advogados e nomes do meio artístico, volta a ser vítima do sistema, estando em regime aberto sendo monitorado pela tornozeleira eletrônica, foi apreendido novamente na favela de Vila Cruzeiro, localizada no bairro da Penha na zona norte da cidade carioca, com a alegação de associação ao tráfico de drogas.  O motivo de ter escolhido o documento de sentença da segunda condenação de Rafael se deu tanto pelo acesso, como pela questão de que seria possível extrair julgamentos morais mais atrelado ao que eu chamaria de racismo estrutural. Essa hipótese surgiu pelo fato de crer que nessa condenação estaria lidando com um cenário comum dentro desse mundo de condenações e com os estereótipos relacionados à construção das favelas e da imagem do criminoso. Como estou analisando com práticas do estado, e sabendo que elas são direcionadas deliberadamente para certas categorias da população, avaliei que seria mais enriquecedor para o artigo a escolha do documento da segunda sentença.
Procurando suspeitos e produzindo culpados: argumentos morais nas narrativas de acusações de “corrupção” em processos judiciais brasileiros.
Autoria: Glaucia Maria Pontes Mouzinho (UFF - Universidade Federal Fluminense)
Autoria: Nos últimos anos se tornaram cada vez frequentes denúncias de “corrupção” na mídia brasileira,” tendo como alvo políticos, empresários e altos funcionários públicos. O argumento de que é preciso punir os poderosos e limpar o país da corrupção não é novo, mas tomou força em especial após a Operação Lava-Jato. Central para o entendimento dos resultados dos processos, cujo sucesso se mede pelas condenações obtidas, as narrativas de acusadores e acusados (em especial dos primeiros) expostas na imprensa, revelam as moralidades presentes na seletividade dos casos, na produção e admissão das “provas” judiciais, na admissão da culpa, assim como nas sentenças proferidas. O propósito do texto é “por sob descrição” tais narrativas, identificando quais os principais argumentos que, a despeito de sua legalidade, são considerados legítimos para produzir um processo gradativo da culpabilidade dos acusados, assim quais os contrastes possíveis com os apresentados em crimes “comuns”.
Provar que se planta, provar que se colhe: os rituais judiciários e a produção de provas em processos de aposentadoria por idade rural
Autoria: Jordi Othon Mourão Martins Correa Angelo (UNB - Universidade de Brasília)
Autoria: Em minha pesquisa de mestrado em Direito, realizada nos Juizados Especiais Federais (JEFs), em Sobral, Ceará, desenvolvo uma análise etnográfica da produção de provas em processos de aposentadoria por idade rural. Como parte integrante deste estudo, esta comunicação tem o objetivo de analisar como as provas são produzidas através das interações entre juízes, advogados, “autores/as” (trabalhadores/as rurais) e testemunhas durante as audiências dos JEFs. Para tanto, lancei mão das seguintes estratégias metodológicas: a) leitura de literatura especializada; b) realização de entrevistas semiestruturadas com 6 (seis) advogados/as de agricultores, com 3 (três) juízes – dos 4 (quatro) que lá atuam – e com 1 (um/a) advogado/a que representa o INSS; e c) observação de audiências previdenciárias nas duas Varas dos JEFs, em Sobral. A Justiça Federal em Sobral tem 3 (três) Varas, sendo 2 (duas) de Juizados Especiais. Sua jurisdição abrange 41 (quarenta e um) municípios da região noroeste do Ceará, e os conflitos administrados nos JEFs são, em sua quase totalidade, de natureza previdenciária. Entre julho de 2019 e fevereiro de 2020, acompanhei 140 audiências previdenciárias, das quais 66 eram de aposentadoria por idade rural, correspondendo, assim, a 47,14% de todas as audiências a que assisti. Com isso, constatei que quase todas as audiências realizadas nos JEFs se referiam a “processos rurais”; ou seja, eram demandas de agricultores ou de pessoas que viviam na zona rural. Como resultado das observações das audiências, identifiquei três formas de produção de provas que se destacavam nos JEFs, formando o que chamei de tripé probatório, que é composto por estas hastes: a) análise de prova documental; b) inquirição dos agricultores e das testemunhas; e c) inspeção judicial. Por meio desse tripé, que é bastante flexível, juízes e advogados tentam elaborar uma biografia judicial dos agricultores, no intuito de determinar a quem deve ser reconhecido – ou não – o direito à aposentadoria por idade rural. Em razão disso, os sentidos atribuídos a cada uma das hastes do tripé mudam, fazendo com que as audiências tenham configurações e lógicas distintas, moldando-se às idiossincrasias e aos “estilos” de juízes e de advogados, o que, consequentemente, acarreta diferentes formas de tratar as pessoas e de produzir e validar as provas, em um processo marcado por símbolos e significados mobilizados na interação entre os agentes envolvidos nos rituais judiciários etnografados.
Quanto pesa o gênero para a justiça? Notas sobre a vida de uma mulher condenada.
Autoria: Heloisa Lemes Silva (UFSC - Universidade Federal de Santa Catarina)
Autoria: Um processo penal conta uma história, que de certa forma coloca em embate duas versões de realidades muito distintas, e do lado mais forte da corda está o poder judiciário representado geralmente por pessoas que ocupam um lugar racial, de gênero e de classe privilegiado, evidenciando uma relação de poder entre quem julga e quem é julgado. A proposta deste artigo visa discutir tal perspectiva na vida de uma das mulheres que conheci quando etnografei em Foz do Iguaçu uma cadeia pública feminina. Esta mulher, depois de perder a mãe muito cedo e ficar pipocando entre uma casa e outra, foi morar com uma tia onde, aos 15 anos, foi surpreendida com a tentativa de abuso pelo marido da tia. O estupro não se concretizou, mas a tentativa foi suficiente para levá-la a fugir. Vivendo sozinha, conheceu o rapaz por quem se apaixonou, ele que já era foragido acusado de tráfico. Ela nunca se envolveu diretamente com seus negócios, mas passaram a viver juntos. Quando ele caiu, ela caiu também. Aos 20 anos tinha uma filha que não via desde os primeiros dias de nascida e carregava uma condenação de 18 anos. Havia dado à luz a filha do casal 22 dias antes de ser presa. Pensando o “gênero como uma forma primária de todas as relações de poder”, é possível pensar que existe uma necessidade de manutenção de papéis sociais que foram construídos e naturalizados ao longo da história para condicionar mulheres e selecionar as que têm direitos reconhecidos, o que faz, na maioria das vezes, com que mulheres condenadas passem por diferentes julgamentos antes da sentença propriamente dita: mulher-criminosa; mulher-criminosa-mãe; mulher-criminosa-mãe-solteira; mulher-negra; mulher-criminosa-negra. As possibilidades são múltiplas pois essas mulheres não apenas foram contra a lógica de disciplinamento do Estado, como subverteram a construção social ligada ao papel do gênero feminino, dissociando-se de um comportamento em que deveriam ser sujeitos passivos, submissos e disciplinados. Para Chernicharo e Boiteux (2014), o julgamento não se faz apenas pelo crime cometido, mas pelo fato de ter sido cometido por uma mulher. Assim, a sentença da mulher-companheira de traficante foragido-mãe, e então mulher-criminosa-mãe que aqui apresento, será pensada através da instrumentalização dos marcadores sociais da diferença na criminalização dela a partir da ideia de Stolcke (1983) de que o objetivo dos julgamentos é o desdobrar dos processos que deixam claro que o que está em questão é a defesa de um sistema de normas visto tanto como universal, quanto como absoluto, o que Corrêa (1983) entende como o momento em que os atos se transformam em autos, o concreto perde importância e o debate se dá entre os atores jurídicos, cada um usando a parte do real que melhor reforce o seu ponto de vista.
Reflexões em torno do papel preponderante que ocupam as crianças em casos de judicialização da violência contra a mulher
Autoria: Matilde Quiroga Castellano (UFSC - Universidade Federal de Santa Catarina)
Autoria: Numa conjuntura de constante incremento da denominada “judicialização das relações sociais”, o presente work pretende refletir no que diz respeito ao lugar preferencial que ocupam as crianças em contextos de judicialização da violência contra a mulher. Esta preocupação prioritária e vinculada ao bem-estar das crianças nos contextos mencionados, reflete uma tendência a uma primacia da proteção da vida familiar e da instituição família deixando num segundo plano as incumbencias em relação ao bem-estar ou às demandas da mulher vítima no processo. Este tratamento desigual, em que parecem existir vítimas de primeira e segunda mão (segundo a prioridade atribuída), faz parte de uma concepção “familarista” que permeia as moralidades dos denominados operadoras e operadores do direito. Com o fim de fortalecer as reflexões aqui propostas serão apresentados dois relatos de campo, que são resultado do work de pesquisa etnográfica realizada durante a execução do Projeto "Estudos da judicialização da ‘violência de gênero’ e difusão de práticas alternativas numa perspectiva comparada entre Brasil e Argentina" (aprovado na Chamada CNPq nº 22/2016). O citado work de pesquisa consistiu em acompanhar durante o ano de 2019 mais de cem audiências de processos que envolveram as leis conhecidas popularmente como Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06) e Lei de Feminicídio (Lei 13.104/15), num Fórum de uma cidade do estado de Santa Catarina. Através da etnografia destes espaços foi possível identificar situações em que a preocupação principal durante a audiência num caso de violência contra a mulher que envolve crianças, como foi explicado, meninas e meninos são o alvo prioritário a ser atendido e seu bem-estar orienta as medidas judiciais a serem proferidas. O descrito nos encoraja a refletir em relação a quais são os dispositivos morais que se encontram por trás dessas práticas, entendendo que as moralidades se materializam no espaço pelo que circulam através de diversos olhares e construções de mundo, e que, segundo os resultados das controvérsias que estejam em jogo, produzem diferentes efeitos nos julgamentos em casos de violência contra a mulher e nas políticas públicas vinculadas à problemática. Por último, cabe destacar que este work encontra-se sustentado principalmente por referências teóricas das áreas de antropologia do direito ou antropologia jurídica, antropologia das violências e dos conflitos, antropologia da moral e antropologia feminista, por considerar que são essas as teorias que propiciam a análise de categorias veladas que parecem circular pelo espaço jurídico como neutras e accessíveis a todos os sujeitos que participam dele mas que na prática esses sentidos são persistentemente disputados e reconfigurados.
Vestígios, materialidade, indiciamento: Distinção entre crime e violência em um serviço do Estado no nordeste brasileiro
Autoria: Maynara Costa de Oliveira Silva (Centro Universitário Estácio São Luís)
Autoria: As mulheres que sofrem violência sexual são invisíveis, ou invisibilisada, portanto para ter seu direito reconhecido devem ser “localizadas”, “encontradas” ou virar visível ao Estado. O Brasil registra 180 casos de estupro por dia (IPEA, 2019). O Nordeste é uma das regiões do país que lidera esse ranking. Na contramão dessa realidade, o Maranhão é um dos estados com os menores índices desse tipo de violência. Em São Luís/MA existe a Casa da Mulher Brasileira. A Casa é a única do Nordeste em atividade, trata-se de um espaço público que concentra tanto serviços do poder judiciário, quanto serviços de atendimento psicossocial e inclusão ao mercado de work. Este artigo, portanto, busca tencionar as categorias: Estado, Violência e Gênero, com o objetivo de pensar, a partir de uma perspectiva etnográfica, na capilaridade do serviço e na plasticidade dos seus administradores no uso das novas leis e novas formas de servir, além de pensar como as redes são construídas, como a instituição interpreta, gera e classifica a realidade da violência, além de moldar sujeitos aos seus processos, a partir da verificação do vestígio, construção da materialidade e indiciamento. Sendo movido pelas perguntas: Quem pode desejar o Estado? Como se formam as novas tecnologias de governo? E quais abusos podem ser compreendidos enquanto crime? A pesquisa estar ancorada nos diálogos da Antropologia da Política, Antropologia do Estado, Antropologia Jurídica e Antropologia do Corpo, Gênero e Sexualidade.
“O réu tentou violentá-la e é inverídica a versão por ele apresentada”: As disputas narrativas nos estupros julgados pelo Tribunal de Justiça do Estado do Pará
Autoria: Mailô de Menezes Vieira Andrade (autonoma)
Autoria: Este work surge a partir das reflexões realizadas durante e após a minha pesquisa de mestrado em direitos humanos na Universidade Federal do Pará (UFPA) – na qual investiguei como a cultura do estupro se imiscui, nas fendas da linguagem, em casos penais, notadamente, aqueles envolvendo o delito de estupro e julgados pelo Tribunal de Justiça do Estado do Pará (TJPA). Agora, pretendo promover uma releitura das narrativas que atravessaram os julgamentos dos casos estudados, desde um novo olhar: o de que o estupro está em constante disputa – e a decisão judicial é fundamental para a construção das percepções sobre ele. Neste cenário, o sistema penal se torna palco de um recontro de significações, na medida que a construção e a legitimação de narrativas sobre (o que é um) estupro se dão, em especial, na maneira como os agentes estatais compreendem os casos desde as experiências de violação narradas – o que transcende a esfera da intervenção penal para impor um imaginário coletivo sobre o crime, a partir da linguagem de autoridade produzida pelo Estado. De inspiração etnográfica, proponho um diálogo entre Direito e Antropologia como principal instrumento metodológico, aportando-me nas lições de Clifford Geertz, para quem a etnografia é uma “descrição densa”, além de sua percepção do direito como um saber local e como tal, atravessado pelos significados que permeiam uma vida social na qual a cultura do estupro é transversal. Iniciarei com a pesquisa bibliográfica para o suporte teórico necessário ao campo e retornarei aos acórdãos do TJPA, através de leitura documental e análise de narrativa, instrumento útil na medida em que torna possível elaborar articulações que questionam de que maneira os estereótipos são aceitos ou rejeitados pelos protagonistas dos processos, como identidades são localmente instituídas e se relacionam com discursos especializados ou de senso comum que circulam. Desta forma, meu intuito é compreender como as relações de poder se entrelaçam com as relações de sentido para construir “o” estupro, “a” vítima e/ou “o” estuprador no curso do procedimento penal e, especificamente, como isto se dá no Estado do Pará. Acredito que os sentidos e significados hegemônicos sobre o estupro são reafirmados e mantidos pelo sistema de justiça criminal, mas são, sobretudo, tensionados e desestabilizados, por meio de contra narrativas elaboradas por distintos movimentos (e movimentações) de resistência das mulheres sobreviventes de violações que, ao instarem o sistema de justiça criminal, rompem com um silenciamento colonial histórico e subvertem o interdito em torno do crime.