GT 51. Historiografia das antropologias: práticas, teorias, métodos, histórias

Coordenador(es):
Peter Schröder (UFPE - Universidade Federal de Pernambuco)
Christiano Key Tambascia (UNICAMP - Universidade Estadual de Campinas)

A antropologia vem experimentando nas últimas décadas uma renovação do interesse pela sua história. No âmbito dessa retomada, livros, artigos e painéis em congressos vêm discutindo essa disciplina do Renascimento em diante, se confrontando com questões como a formação e instituição da etnografia e da antropologia, as bases filosóficas de suas epistemologias, a constituição de tradições nacionais e genealogias alternativas às narrativas mainstream, bem como com práticas de campo, métodos e teorias, além da relação entre o fazer etnográfico e as relações de poder. Unem-se, à historiografia da antropologia praticada por pensadores bem estabelecidos em universidades, aquelas acerca de profissionais com vínculos institucionais frágeis, intermitentes ou inexistentes, naturalistas, missionários e etnógrafos amadores. Museus e sociedades científicas vêm tendo sua atuação repensadas; além de interpretações e pesquisas bibliográficas, arquivos e memórias são sujeitos a novas análises. O GT busca contribuir para a historiografia das antropologias praticadas no Brasil e em outros contextos nacionais e transnacionais. O painel se situa num campo interdisciplinar, entre história, antropologia e historiografia das ciências, e está aberto a contribuições que enfocam estudos de caso ou das tradições nacionais e transnacionais, estudos biográficos ou arquivísticos, análises de teorias e métodos e ainda reflexões sobre métodos em historiografia das antropologias.

Palavras chave: história da antropologia; teoria antropológica; historiografia
Resumos submetidos
Antropologia em Pernambuco e os estudos das religiões indo-afro-pernambucanas
Autoria: Pedro Henrique de Oliveira Germano de Lima (Colégio Cognição), Roberta Bivar Carneiro Campos
Autoria: A antropologia em Pernambuco emerge com contornos similares aqueles presentes na Bahia, onde médicos e depois cientistas sociais, incluindo antropólogos, formavam uma santa aliança com as lideranças religiosas do candomblé. Nina Rodrigues, Arthur Ramos e Edison Carneiro, pioneiros baianos na pesquisa social com as comunidades afro-religiosas, formaram uma espécie de protetorado teórico, constituindo uma relação de simbiose entre o universo religioso dos terreiros e o campo acadêmico da emergente antropologia. Assim como na Bahia, em Pernambuco a antropologia emerge das pesquisas efetuadas em terreiros de candomblé, fomentando uma outra relação de aliança, onde os pesquisadores – médicos e depois antropólogos – do antigo Serviço de Higiene Mental, Ulysses Pernambucano, Albino Gonçalves Fernandes, Waldemar Valente e René Ribeiro resguardavam os terreiros das invasões policiais garantido a manutenção do funcionamento religioso, mas também assegurando a manutenção o campo empírico e a garantia de entrada nos terreiros para que fossem efetuadas suas pesquisas. Essa outra relação sugere uma análise sobre o tipo afinidade estabelecida entre os antropólogos e lideranças religiosas afropernambucanas, dessa afinidade, surge um tipo de pesquisa preocupada com problemas empíricos e conceitos analíticos distintos daqueles presentes na tríade baiana. Nossa proposta investe na ideia de que a antropologia pernambucana dedicada aos estudos das comunidades afro-religiosas se constitui numa relação, de modo peculiar e diferente do caso baiano, estabelecendo não uma santa aliança, mas sim como um intercâmbio de ideias científicas e religiosas. Esse intercâmbio de conteúdos acadêmicos e religiosos tem sido pensado criticamente por alguns cognoscentes das ciências sociais brasileiras em diversos momentos de seu desenvolvimento do século XX (Beatriz Dantas, 1988; Stefania Capone, 2004, Roberto Motta 1976 e 1988; Yvonne Maggie, 1977; Ordep Serra, 1995, dentre outros). A proposta de nossa comunicação é perseguir essa relação analisando os momentos de critica da relação estabelecida bem como mapeando as formas de novas formas de normatização do campo religioso pelas ideias acadêmicas, lançando uma critica com base nos estudos já consolidados deste campo. Destacamos as componenciais analíticas de cada exame crítico revisionista e analisamos o modo pelo qual elas foram estruturadas, destacando o caso pernambucano como exemplo paradigmático dessa relação terreiros-antropólogos/antropologia.
Antropologia, ciência e engajamento: José Loureiro Fernandes e os sentidos da atividade intelectual
Autoria: Paulo Renato Guérios (UFPR - Universidade Federal do Paraná)
Autoria: Esta comunicação trata das concepções de ciência e de Antropologia de José Loureiro Fernandes (1903-1977), fundador da cátedra de Antropologia e Etnografia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras do Paraná em 1938. Médico de formação, Loureiro foi um dos principais nomes do processo de institucionalização das ciências humanas no Paraná. Ator pouco conhecido do processo inicial de configuração das Ciências Sociais no Brasil, criou e dirigiu diversos espaços intelectuais e acadêmicos em Curitiba e, na década de 1950, tornou-se um dos membros fundadores e um dos primeiros presidentes da Associação Brasileira de Antropologia. Neste work, serão destacadas especificamente suas visões acerca da Antropologia como ciência e dos motivos pelos quais ele a considerava relevante para a sociedade paranaense de sua época. Seus projetos intelectuais e suas reflexões são marcados por um forte envolvimento com o mundo extra-acadêmico e por um comprometimento orgânico de sua produção científica com a sociedade englobante, em um registro, no entanto, bastante diverso daquele da Antropologia contemporânea. Iniciando suas atividades profissionais no começo do período Vargas, Loureiro fez parte de um momento histórico em que os intelectuais brasileiros se arrogavam o papel de construtores da nação, através do esclarecimento científico de seu funcionamento e de suas origens. Sua Antropologia foi marcada assim pela busca de um traçado dos princípios que regeriam o desenvolvimento das sucessivas formas históricas assumidas pela sociedade paranaense, especificamente através de um estudo evolutivo daquilo a que se referia como “as técnicas e a indústria”. Para abordar este assunto, será utilizada como fonte principal não sua produção propriamente técnica, mas uma parte de sua produção intelectual em que ele se dedicou a traçar várias resenhas biográficas de personagens da história paranaense cujas trajetórias tangenciavam seus interesses: missionários que tiveram contato com indígenas, etnógrafos locais e estrangeiros, médicos cujas carreiras profissionais e cujo envolvimento com questões sociais ele considerava exemplares. Ao descrever suas vidas e argumentar sobre o caráter modelar de suas existências, Loureiro nos permite entrever os valores que lhe eram caros e que ele perseguia em sua própria trajetória. O estudo da maneira pela qual ele articulava seu olhar científico com o mundo que o rodeava – suas respostas, enquanto intelectual de seu tempo, às questões que ele considerava então essenciais – nos permite, a partir da diferença que lhe é própria, refletir acerca dos diferentes sentidos que podemos atribuir hoje ao fazer antropológico.
Etnografia da obra "Os Tapajó" de Curt Nimuendaju
Autoria: Gabriela Galvão Braga Furtado (MPEG - Museu Paraense Emílio Goeldi)
Autoria: A base da construção da Antropologia, especificamente produzida no Brasil, enquanto campo científico, perpassava desde sempre a noção de contato cultural no qual norteava o desenvolvimento das pesquisas de sociedade consideradas como exóticas. Neste sentido, é necessário salientar que Antropologia e antropólogos estavam inseridos em um mundo marcadamente tido como civilizado, científico e técnico; o fazer antropológico, nessa medida, era o de submeter e colocar em submissão o outro e seu mundo, tendo por meta a civilização e a humanidade. Toda via, ao decorrer do tempo, é visível uma mudança na atuação da Antropologia, voltada mais para aplicabilidade e o engajamento com o seu ‘objeto’ de pesquisa. Essa mudança, é visível e muito presente no campo da etnologia indígena. Assim, esse work se propõe a discutir sobre a etnia Tapajó a partir das impressões atribuídas pelo etnólogo Curt Nimuendaju a este povo por meio da etnografia documental da obra Os Tapajó, publicada em 1949 no boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Nimuendaju, fez uma etnografia tendo como base a análise documental e arqueológica na região. Inicia o work a partir de uma linha histórica de como procedeu a colonização da região, baseado em cronistas. E Apesar do etnólogo acreditar que não teve contato com essa etnia, ele descreve em sua obra com clareza as principais características dos Tapajó. Assim pretendo da visibilidade a esta obra e ao fazer etnográfico de Nimuendaju.
Franz Boas e os Zoológicos Humanos: A Exibição de Indígenas Bella-Coola em Berlim 1885-1886
Autoria: Marina Cavalcante Vieira (UERJ - Universidade do Estado do Rio de Janeiro)
Autoria: Os zoológicos humanos desenvolveram-se ao longo do século XIX em um processo simbiótico com a formação dos museus etnográficos e com a disciplina antropológica. Formatos de entretenimentos populares que exibiam pessoas tidas como exóticas, os zoológicos humanos produziam cenografia e recriação de habitat nativo para que as pessoas exibidas performassem e encenassem a sua própria cultura e modo de vida diante do público europeu. Geralmente ambientados em parques, museus, feiras e zoológicos de animais, estas formas de exibição representam ao mesmo tempo a face mais popular da antropologia do século XIX (Griffiths, 2002) e a “radicalização mais perversa” da formação dos museus etnográficos (Oliveira e Santos, 2019). Os estudos antropométricos beneficiaram-se sobremaneira dessas formas de entretenimento popular, tendo aí vastos campos de pesquisa transportados para a Europa. As relações entre zoológicos humanos e a antropologia física estão mais que demonstradas em diversas pesquisas (Thode-Arora, 1989; Lange, 2006; Vieira, 2019). O que nos interessa neste work é investigar as relações e influências dos zoológicos humanos [Völkerschauen] sobre Franz Boas, considerado pai da antropologia cultural. Ao retornar de seu primeiro work de campo no Ártico ainda como físico e geógrafo, Franz Boas passa a trabalhar no Museu Etnográfico de Berlim, em 1885, sob a supervisão de Adolf Bastian e em contato com Rudolf Virchow. É no período entre 1885 e 1887 que, segundo Stocking (1968), acontece a conversão de Franz Boas “de físico à etnólogo”. Durante o período que trabalha no museu etnográfico, Boas entra em contato com a cultura de indígenas da costa noroeste americana, primeiramente por meio de objetos da coleção etnográfica, e em seguida, ainda no ano de 1885, através de uma trupe de indígenas Bella-Coola, que apresentou espetáculos de zoológicos humanos em Berlim e diversas outras cidades européias. Durante a estadia da trupe em Berlim, Boas worku intensamente com o grupo ao longo de duas semanas. Como resultado deste primeiro contato, Boas publicou um pequeno artigo em um jornal de notícias local. Esta pesquisa reconstitui as exibições do zoológico humano de Bella-Coola em Berlim, traçando as relações entre instituições científicas berlinenses e seus pesquisadores com este espetáculo, dando ênfase à participação de Franz Boas. Certo é que após este primeiro contato com os Bella-Coola, Franz Boas parte alguns meses depois para o seu primeiro work de campo in loco com os indígenas Kwakiutl da costa Noroeste americana. Douglas Cole (1982) chega a afirmar que o primeiro work de Boas com indígenas da costa noroeste teria sido desenvolvido ainda em Berlim, no local de exibições dos Bella-Coola.
Hermann von Ihering (1850-1930): colecionador.
Autoria: Erik Petschelies (USP - Universidade de São Paulo)
Autoria: Entre 1893 e 1916, o cientista natural alemão Hermann von Ihering (1850-1930) foi diretor do Museu Paulista, na época uma das mais relevantes instituições científicas brasileiras. Durante sua gestão, o Museu Paulista, em consonância com seus pares estrangeiros, tinha características enciclopédicas, estimuladas pelos múltiplos interesses científicos de seu diretor, de ornitologia e ciências agrárias a antropologia física e etnografia. Sua sólida carreira científica permitiu-lhe angariar credibilidade suficiente para se expor como intelectual público. Suas atividades profissionais não foram marcadas apenas pela sua posição de destaque no cenário científico-político brasileiro, mas também pelo escândalo oriundo de suas declarações ao jornal o Estado de São Paulo, em 1907, de que frente à resistência dos índios Kaingang ao avanço da dita civilização, não restava alternativa ao Estado brasileiro a não ser guerras de extermínio. Sustentada por fontes primárias salvaguardadas no Arquivo do Museu Paulista e no Espólio de Theodor Koch-Grünberg (Philipps-Universität Marburg, Alemanha), esta apresentação visa discorrer sobre uma faceta subjacente às de cientista e de intelectual público: a de colecionador. Por colecionar compreende-se, exatamente, a aquisição de coleções museológicas, especificamente etnológicas, através de compras, permutas ou dádivas. A análise das aquisições de cultura material para o Museu Paulista não revela apenas a origem étnica e geográfica das coleções, ou de peças singulares, mas também o complexo de relações sociais que nutre a ida de objetos ao museu. A rede intelectual criada por von Ihering revela mais do que os princípios das ciências naturais e da formação de coleções no Brasil, como, por exemplo, uma dinâmica científica internacional e microrelações de poder e interesse entre doadores e o Museu. Em que medida as aquisições de peças etnográficas por von Ihering são capazes de revelar as relações que as sustentam e qual é a sua natureza são as questões mais relevante que a apresentação intenciona fazer.
História da Antropologia no Brasil: Contribuições de Gonçalves Dias para a etnografia na Amazônia
Autoria: Elieyd Sousa de Menezes (UFMA - Universidade Federal do Maranhão)
Autoria: Este artigo propõe uma reflexão sobre as contribuições de Gonçalves Dias para a etnografia na Amazônia, sobretudo a partir do material produzido no âmbito da Expedição da comissão científica de exploração do Império organizada pelo IHGB, da qual foi coordenador da seção etnográfica e responsável pelas narrativas da viagem na expedição. Entre 1861 e 1862, o autor conhecido como poeta do indianismo, tendência do Romantismo, realizou uma viagem para proceder ao relatório sobre a situação escolar e econômica no rio Solimões e navegou o Rio Negro até São Gabriel da Cachoeira, com o intuito de descrever sobre os povos indígenas e catalogar sua cultura material, que seriam enviadas à Corte para serem exibidos em exposições públicas, como a Exposição Universal de 1862 em Londres e a Exposição Nacional ocorrida em 1861 no Rio de Janeiro. As descrições etnográficas de Gonçalves Dias publicadas em seus relatórios de viagens e cartas pessoais, além de relatórios de presidente de província e jornais locais da época demonstram certo acuro no que tange à observação e descrição da diversidade linguística dos povos do alto rio Negro, à economia e cultura material, como vestimentas, instrumentos musicais, remos, ornamentos rituais, dentre outros. Assim sendo, no âmbito de uma história da Antropologia no Brasil é oportuno discutir os interesses e relações de poder envolvidos na referida expedição e perceber as descrições etnográficas de Gonçalves Dias como contribuição para formação de coleções que ajudaram a pensar a antropologia como ciência, praticadas inicialmente a partir dos museus.
João Henrique Elliott e a guaraniologia contemporânea
Autoria: Pablo Antunha Barbosa (ufsb)
Autoria: O mito apapocúva-guarani da “Terra sem Mal” surgiu na literatura americanista das mãos de Curt Unkel Nimuendajú em 1914. No seu livro que marcou profundamente os estudos contemporâneos sobre os Guarani, Nimuendajú sugeria que as “migrações” dos grupos guarani no século XIX desde o Mato Grosso em direção ao leste se explicavam em função da busca de um paraíso que seria a “Terra sem Mal”. Em seguida, ele sugeria também que o mesmo motivo poderia ser aplicado para entender as “migrações” de inúmeros outros grupos tupi-guarani da época colonial e até mesmo pré-colonial. A sugestão foi tomada ao pé da letra por Alfred Métraux e depois dele por inúmeros outros antropólogos. E assim a “Terra sem Mal” se transformou em um pilar da religiosidade guarani e em um tema obrigatório dos works antropológicos. Só recentemente, nas duas últimas décadas, algumas críticas começaram a aparecer, particularmente àquelas feitas por Cristina Pompa, Francisco Noelli ou ainda Catherine Julien, insurgindo-se contra o uso julgado abusivo de um mito particular para interpretar religiões diferentes ou “migrações” distantes umas das outras por vários séculos. No entanto, essas críticas deixaram intactas as bases da hipótese de Nimuendajú e não retomaram o dossiê das “migrações” do século XIX. Essa apresentação busca justamente retomar este dossiê fundador dos estudos guarani. Ao invés de tomar partido neste debate, trata-se de restituir o mito e as migrações guarani nos seus distintos contextos históricos. Por um lado, reconstruir as “migrações” do século XIX, tomando em consideração as políticas indigenistas da época e por outro, reconstruir o método e as circunstâncias que permitiram que Nimuendajú, sessenta anos depois, emitisse sua hipótese. Esse work permite não somente uma releitura da “Terra sem Mal” como ele também coloca algumas questões para se fazer uma nova leitura da religiosidade guarani e sobre o lugar que ela ocupou nos estudos antropológicos e históricos.
Maria Ignez Cruz Mello e suas coleções etnográficas: biografias entrelaçadas
Autoria: Francieli Lisboa de Almeida (IFPR - Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Paraná)
Autoria: Há duas coleções etnográficas em museus universitários brasileiros que levam o nome da musicista e antropóloga Maria Ignez Cruz Mello. Apesar disso, ela não se dedicou em sua carreira às questões relacionadas a cultural material indígena, como pode-se pensar a princípio. Os processos de colecionamento que culminaram com a formação dessas coleções aconteceram mais ou menos ao acaso ao longo de sua carreira acadêmica. A primeira coleção foi formada por ela e por Aristóteles Barcelos Neto para o Museu de Arqueologia e Etnologia da UFBA em 1998, projeto financiado pela Fabesp, agência de fomento baiana, que possibilitou que os pesquisadores realizassem suas pesquisas de campo de mestrado em antropologia (UFSC) na aldeia Piyulaga, do povo Wauja no Alto Xingu (MT). A segunda coleção foi formada por Maria Ignez e seu companheiro, Acácio Tadeu Piedade, quando estiveram em campo em 2001 e 2002 durante a realização de seus doutorados em antropologia (UFSC), em que pesquisaram o complexo ritual Iamurikumã-Kawoká, sendo que Maria Ignez se ateve ao primeiro, que é o canto das mulheres, enquanto Acácio ao segundo, que é o som instrumental das flautas masculinas, recobertas por restrições visuais às mulheres. Essa coleção artefatual foi formada ao acaso, visto que os artefatos foram provenientes de trocas estabelecidas em campo, sem qualquer intencionalidade prévia de constituição, característica essa que já marca diferenças consideráveis entre as duas coleções universitárias. A segunda coleção foi doada após o falecimento de Maria Ignez ao MAE-UFPR, sendo que ao lado das quase duas centenas de artefatos também figuram todo o seu material de campo: diários, fotografias, registros sonoros, desenhos, correspondências, rascunhos, dentre outros. Procuro aqui reconstituir as biografias das coleções juntamente com a biografia da pesquisadora, focando em sua carreira acadêmica, tragicamente interrompida com o seu precoce falecimento. As biografias das coleções mostram convergências de interesses, instituições, experiências e pessoas. É isso que pretendo apresentar como parte da minha investigação de doutorado em andamento. A partir de interlocução com a bibliografia especializada, entendo que as coleções etnográficas refletem e dialogam com concepções teóricas e ideológicas de determinados períodos e instituições, bem como dos próprios coletores-pesquisadores.
Narrativas míticas Tembé por Curt Nimuendajú: percorrendo os caminhos de uma etnografia
Autoria: Glaucia Silva dos Santos (UFPA - Universidade Federal do Pará)
Autoria: O periódico berlinense Zeitschrift für Ethnologie publicou em 1915 o texto Sagen der Tembé-Indianer (Pará und Maranhão), work escrito por Curt Nimuendajú Unckel – um alemão que morava no Brasil desde 1903 e que conhecia bem os debates e ações de políticas públicas de proteção das populações ameríndias. A publicação de Nimuendajú é uma etnografia que apresenta dez versões de narrativas míticas coletadas entre os Tembé, resultado do work que cumpriu nas áreas étnicas da região do rio Gurupi (entre os estados do Pará e Maranhão) – expedição vinculada ao Serviço de Proteção aos Índios (SPI) entre os anos de 1914-15. Esta publicação de Nimuendajú é o sujeito da investigação deste artigo que, por sua vez, é parte integrante da pesquisa discente no PPGSA-UFPA sob o título Reconstrução Antropológica das Narrativas Míticas Tembé coletadas por Curt Nimuendajú (1915). O objetivo é apresentar um percurso da investigação que avança a partir de uma etnografia (BRAUDEL, 1969) de documentos e de uma antropologia biográfica (DOSSE, 2009). Aqui se articula uma compreensão relacional entre o artigo Sagen der Tembé-Indianer com o que se pode reconstruir do fazer etnográfico de Curt Nimuendajú – considerando sempre as relações acadêmicas que possibilitaram a publicação no Zeitschrift für Ethnologie, como também as suas atribuições como indigenista. Para otimizar a coleta dos dados, a metodologia utilizada é de caráter bibliográfico, sobretudo, a que se alinha à etnografia de documento – uma proposta que visa entender o fazer etnográfico a partir de vários documentos, considerando tanto a diversidade das espécies quanto dos seus gêneros, tipos literários (BRAUDEL, 1969; JANEQUINE, 2011; DULLEY, 2011). Assim, pode-se apresentar a hipótese de que o tipo de etnografia distinguida em Nimuendajú é o da Moderne Ethnologie, sobretudo aquela que ajustava o work etnográfico à função de salvaguarda política e museológica das expressões culturais de grupos étnicos (WELPER, 2002; 2019). Esta é a proposta de categorização de um dos modos antropológicos de Curt Nimuendajú, principalmente aquele que se manifesta no seu work sobre algumas narrativas integrantes da cosmologia dos Tembé. Considerando que Nimuendajú não pertencia aos círculos acadêmicos, a publicação no Zeitschrift für Ethnologie é possível tanto graças às articulações que o antropólogo teuto-brasileiro desenvolveu com a ornitóloga Emília Snethlage e o antropólogo Koch-Grünberg (SANJAD, 2019), como também, claro, à sua competente redação, audição inter-linguística e observação de campo – algo que possivelmente sensibilizou o corpo editorial de uma revista acadêmica tão restrita.
Roberto Cardoso de Oliveira e a história da antropologia do Brasil: trajetória e institucionalização da disciplina
Autoria: Amanda Gonçalves Serafim (UNICAMP - Universidade Estadual de Campinas)
Autoria: Roberto Cardoso de Oliveira (1928-2006) foi um importante antropólogo brasileiro, suas principais contribuições foram através das pesquisas sobre as relações interétnicas e sobre o fazer antropológico no Brasil e em outros países periféricos. Cardoso de Oliveira foi também dos principais responsáveis pelo processo de institucionalização da disciplina no Brasil, participando da criação de programas de mestrado e doutorado no Museu Nacional, na Universidade de Brasília (UnB) e na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e participou de comissões de avaliação da pós-graduação nacional da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Além de sua contribuição para a disciplina desenvolvida no Brasil, o antropólogo estabeleceu fortes relações com a Universidade de Harvard, com a Fundação Ford – no Brasil e nos EUA –, assim como com o México e com a América Latina; dessa maneira sua reflexão sobre a produção e formação da disciplina ultrapassaram também as fronteiras nacionais. Cardoso de Oliveira reuniu milhares de documentos vislumbrando a importância que esse material poderia contribuir para essa história, assim organizou e doou esse material, ainda em vida, ao Arquivo Edgard Leuenroth (AEL). Esse material possibilita a compreensão da indissociabilidade entre a análise do projeto intelectual e institucional da antropologia no Brasil e uma reflexão sobre uma rede de relações interpessoais de seus praticantes, o que marcou e ajudou a consolidar a disciplina no país. A partir disso, propõe-se uma reflexão sobre a trajetória de Cardoso de Oliveira e o processo de institucionalização da antropologia no país através de uma análise junto a sua documentação pessoal e a depoimentos – recolhidos no âmbito desta investigação –, de antropólogos que tiveram uma relação pessoal e institucional próxima a Cardoso de Oliveira. Viso dessa forma refletir sobre a historiografia produzida sobre a disciplina no país, especialmente em sua fase de profissionalização na segunda metade do século passado, através de uma trajetória específica deste processo e com um olhar sobre a questão a partir de novos materiais.
Surdez e work de campo na trajetória intelectual de Ruth Benedict (1887-1948)
Autoria: Anahi Guedes de Mello (NED/UFSC)
Autoria: Durante a leitura de um artigo internacional sobre as contribuições de pessoas surdas para o campo da Entomologia, fui surpreendida pela descoberta da surdez da antropóloga estadunidense Ruth Benedict (1887-1948). Por eu também ser uma antropóloga surda, essa surpreendente revelação fez com que eu fosse afetada por esse elemento biográfico de sua trajetória, uma vez que a divulgação da surdez de Benedict pode mudar a forma como antropólogos(as) concebem o método etnográfico, a partir do 'olhar' e do 'ouvir' como formas privilegiadas de produção etnográfica. Isso porque como antropológos(as) privilegiamos a oralidade em detrimento de outros modos perceptivos de estabelecermos relações com os(as) interlocutores(as). Diogo Corrêa (2017), apoiando-se na perspectiva das fenomenologias e antropologias da cognição e dos sentidos e em autores que partem de abordagens sobre o nível sensório-motor, afirma que no domínio do corpo o afeto pode ser descrito como impressão ou sensação, no sentido de pensarmos a dimensão sensória e visceral do corpo vivido a partir do ponto de vista do lado afetado, isto é, da perspectiva do corpo enquanto organismo. Assim, deixar-me afetar pela surdez de Benedict não significa um mero exercício imaginativo sobre o que ela vivenciou enquanto antropóloga surda, mas reconhecer o caráter encarnado de um conhecimento antropológico que se dá experimentando as intensidades do work de campo a partir do próprio corpo surdo da antropóloga. Neste sentido, o objetivo deste work é refletir sobre a influência da surdez no fazer antropológico, tomando como foco da análise a trajetória intelectual de Ruth Benedict. Sem desconsiderar também a dimensão da minha subjetividade nesse debate, a questão norteadora não é a pergunta “é possível uma pessoa surda ser antropóloga?”, mas sim “quais antropologias mediadas pela surdez uma antropóloga surda pode fazer?”.
Uma história da intrincada relação entre Antropologia e Teatro
Autoria: Bernardo Fonseca Machado (UNICAMP - Universidade Estadual de Campinas)
Autoria: A antropologia, ao longo da sua história, estabeleceu um complexo jogo de referências entre os saberes etnográficos e o universo teatral. Dentro da tradição disciplinar, noções importantes como “ritual”, “drama” e “teatro metafísico” foram inspiradas em referenciais cênicos, conforme atestam as análises de Michael Taussig e John Dawsey. Dessa forma, parte do repertório analítico antropológico esteve lastreado em paradigmas dramáticos específicos que revelavam mais a respeito de convenções estéticas ocidentais e menos das experiências nativas cerimoniais. Profissionais dos palcos também produziram aproximações entre teatro e antropologia. Richard Schechner é um exemplo de artista que recolheu exemplos de experiências sociais “exóticas” e as empregou tanto para produzir espetáculos com formatos “inovadores”, quanto para cunhar novos treinamentos corporais para intérpretes. Nesta apresentação, me deterei especificamente na análise da obra de dois autores: Victor Turner e Richard Schechner. Conforme conta Dawsey (2011) os dois desenvolveram uma relação de proximidade intelectual e ao longo de cinco anos, entre 1977 até 1982, trabalharam intensamente até Turner falecer. A troca intelectual levou a publicação de dois livros exemplares: Between Theatre and Anthropology (1985) de autoria de Schechner e The anthropology of Peformance (1987) com textos póstumos de Turner editados pelo diretor. Inspirado na proposta de James Clifford – que esmiuçou a relação entre o surrealismo e a etnografia preocupado em compreender seus rebatimentos e inspirações –, este work se propõe a: 1) apresentar o contexto no qual as trocas intelectuais entre Turner e Schechner ocorreram, 2) realizar uma discussão teórico-metodológica a respeito da relação entre teatro e antropologia estabelecida por esses autores; 3) tratar dos efeitos das análises formuladas por ambos para a teoria antropológica. Pesquisas anteriores já exploraram a relação entre esses pensadores – como os works de John Dawsey, Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti e Rubens Alves da Silva. Procurarei retomar ao assunto a partir de uma leitura crítica, salientando alguns aspectos problemáticos das análises: por exemplo, certas noções – como “teatro” ou “ritual” – são pré-definidas pelos autores e não pelas pessoas em suas experiências levando a um problema epistemológico. Dessa forma o work visa responder as seguintes perguntas: Como, ao longo da história dos saberes, as categorias teatrais se tornaram antropológicas e como referenciais etnográficos passaram a agir em ambientes cênicos? Qual a rentabilidade e os limites analíticos das categorias mobilizadas por Turner e Schechner? Como o diálogo entre tais autores impactou uma certa produção antropológica a partir da categoria “performance”?
Uma outra história da Antropologia Visual no Brasil: Vilma Chiara, Harald Schultz e povos indígenas
Autoria: Maria Julia Fernandes Vicentin (USP - Universidade de São Paulo)
Autoria: Esse pôster propõe pensar como etnografar etnografias visuais, ou ainda, como etnografar arquivos e imagens, agentes e pessoas, sob um contexto de produção de conhecimento antropológico que privilegia múltiplas grafias enquanto material de pesquisa. Tal reflexão está ancorada no work de Vilma Chiara e Harald Schultz, etnólogos atuantes na metade do século XX, e cuja produção, ainda pouco estudada pela antropologia, se encontra salvaguardada pelo Museu de Arqueologia e Etnologia da USP. Para o desenvolvimento dessa reflexão, ao contornar algumas passagens da trajetória desses etnólogos, seja a partir de documentos institucionais ou dos próprios depoimentos de Vilma Chiara, começaremos a visualizar uma outra história da etnologia no Brasil. Segundo olhares que apostam na potencia da imagem enquanto aliada dos objetos e textos etnográficos, apontaremos para alguns desafios práticos, teóricos e metodológicos da trajetória de Chiara e Schultz enquanto etnólogos precursores do que viria a ser intitulada, posteriormente, “antropologia visual”.
Antropologia, fotografia e autoria: o caso de Berta Gleizer
Autoria: Fernanda Zepka da Costa Moreira (UFRGS - Universidade Federal do Rio Grande do Sul)
Autoria: Tendo como pano de fundo uma pesquisa mais ampla sobre a relação entre Antropologia e Fotografia no Brasil que objetiva a sistematização histórica da produção de fotografias etnográficas entre 1840 e 1970, este work decorre da observação da ausência de referências a antropólogas e fotógrafas neste período. Muito embora seja reconhecida a presença de mulheres em campo em diferentes momentos da produção fotoetnográfica no país, constatamos um problema referente ao reconhecimento da autoria feminina, bem como uma dificuldade ao acesso às imagens produzidas pelas mulheres. Este work trata, portanto, da investigação da produção acadêmica e fotográfica da antropóloga, etnóloga e museóloga Berta Gleizer. A escolha desta pesquisadora surgiu ao constatarmos que, nos works de campo promovidos por Darcy Ribeiro, seu marido à época, a atividade fotográfica era bastante comum por parte dos dois, mas que ao buscarmos tais imagens, não encontramos quase nenhuma de autoria de Gleizer. Além disso, apesar da dificuldade de encontrarmos fotografias creditadas a ela, não é raro encontrarmos diferentes tipos de imagens de autorias diversas em seus livros, o que demonstra seu apreço pela linguagem visual. Dentre os objetivos gerais deste work, está a busca por imagens de sua autoria, a organização dessas imagens e a análise dos usos feitos delas em suas obras, a fim de contribuir para a organização histórica da produção fotográfica de caráter etnográfico no Brasil. Dentre os objetivos específicos, está discutir de que forma a condição de mulher e de esposa podem ter afetado o modo como sua produção era realizada e divulgada. Para isso fazemos um duplo movimento. Procuramos por fotografias creditadas a Berta Gleizer em diferentes acervos, como o Museu do Índio e a Fundação Darcy Ribeiro. Buscamos também por imagens presentes em alguns de seus livros disponíveis nas bibliotecas universitárias da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Em seguida, categorizamos e analisamos as imagens, a forma como essas fotografias foram capturadas e o modo como elas foram usadas em suas pesquisas.