GT 49. Gênero e sexualidade: violência, subjetividades, territorialidades e direitos

Coordenador(es):
Isadora Lins França (UNICAMP - Universidade Estadual de Campinas)
Paulo Victor Leite Lopes (UFRN - Universidade Federal do Rio Grande do Norte)

Sessão 1 - Gênero, violência e conflito
Debatedor/a: 
Heloisa Buarque de Almeida (USP - Universidade de São Paulo)

Sessão 2 - Sujeitos, sociabilidades e memória
Debatedor/a: Júlio Assis Simões (USP - Universidade de São Paulo)

Sessão 3 - Política, direitos e movimentos
Sérgio Luís Carrara (UERJ - Universidade do Estado do Rio de Janeiro)

As últimas décadas têm assistido a transformações importantes no campo de gênero e sexualidade no Brasil, em direção à emergência de novos sujeitos, categorias e direitos num terreno permeado por disputas e conflitos. A antropologia tem fornecido contribuição central para a compreensão desses processos, afirmando seu compromisso histórico com as populações cujos direitos e dignidade têm estado sob ataque por parte de diferentes atores sociais. O conhecimento produzido no âmbito dos estudos de gênero e sexualidade tem também iluminado, de modo geral, processos de produção de diferenças e de desigualdades, partindo da perspectiva de que gênero e sexualidade se articulam – e constituem-se mutuamente – com outras categorias tais como raça, classe social, geração, territorialidades, entre outras. O objetivo deste GT é reunir trabalhos que, situados na intersecção entre gênero, sexualidade e outras categorias de diferença, ofereçam uma reflexão pertinente ao contexto contemporâneo, particularmente nos seguintes termos: 1) das dinâmicas relacionadas à violência nas suas diversas modalidades, contextos sociais e formas de administração; 2) dos intrincados processos de subjetivação relacionados a gênero e a sexualidade e da produção de corpos e sujeitos; 3) da constituição de territorialidades e dos processos envolvendo circulação, trânsitos, fluxos e fronteiras de diferentes ordens; 4) das transformações, conflitos e disputas no campo dos direitos, políticas e movimentos.

Palavras chave: gênero; sexualidade; diferença
Resumos submetidos
A Vida dos "Viados de Fanfarra": Estudo de Construção de Identidades e Processos de Subjetivação de Homens Negros Performáticos na Bahia
Autoria: Vinícius Santos da Silva (UFBA - Universidade Federal da Bahia)
Autoria: Etnografia crítica e multi-situada que investiga produções de identidade e processos de subjetivação dos viados de fanfarra, homens negros periféricos componentes dos quadros coreográficos de bandas marciais e fanfarras escolares no contexto da maior celebração popular e cívica da Bahia, o Desfile de Dois de Julho em Salvador. A pesquisa almeja contribuir para o alargamento da compreensão sobre a operação social de raça e gênero/sexualidade no contexto afro-brasileiro, contribuindo para a promoção do respeito as diversidades humanas, através da investigação sobre uma experiência criativa que ilustra a resistência de grupos subalternizados através da cultura. Os viados de fanfarra carregam consigo uma autonomização social, uma vida própria, uma manipulação das regras e estereótipos racializadas e generificadas da cultura. Isso compartilhado, identificado e impulsionado com outros, formam uma unidade com códigos próprios de sobrevivência. Dessa forma, conseguem a proeza de posicionar-se em unidades dentro de uma organização ainda tradicional e, estrategicamente, se firmam como protagonistas e de agentes de resistência, anunciam e organizam um território demarcado pela fechação. A partir disso, observa-se um universo imbuído de aspectos intersecionais de raça, gênero e classe, o que torna deste fenômeno um importante objeto de análise para entender a dinâmica da agência de homens negros periféricos, com comportamento em dissidência, que vivem na cidade latino-americana mais negra fora da África e dentro do país sul-americano que mais mata LGBTs no globo. Desdobrando-se da cena apoteótica, atravessamos as noções de território, memória, performances e violências na vida dos sujeitos que são personagens deste peculiar espetáculo de rua. Em específico, mas com aspirações globais, o work é um estudo dos processos de identidade e subjetivação dos negros periféricos em dissidência no Salvador a partir dos elementos constitutivos que apresentam os viados de fanfarra e, a partir disso, entender as produções dos signos de resistência e pertencimento frente sistema representacional do estereótipo homofóbico-racial.
Corpos valentes, corpos ruins: aproximações entre gênero e violência em conflitos por terra nos faxinais de Pinhão, Paraná
Autoria: Dibe Ayoub (Museu Nacional/UFRJ)
Autoria: Conflitos por terra conjugam formas de violência que atuam sobre territórios e corpos, transformando os modos com que famílias habitam seus terrenos ou as impedindo de lá permanecer. Os assassinatos e demais violações propagados ao longo de tais disputas podem envolver e ao mesmo tempo produzir relações e performances de gênero, agenciando homens e mulheres enquanto sujeitos vinculados a famílias e terras, e enquanto corpos compostos por diferentes substâncias éticas, constitutivas das moralidades camponesas. Além disso, os modos com que as pessoas vivem e classificam essas violências muitas vezes desafiam nosso senso comum acadêmico, e incentivam questionamentos acerca das continuidades e descontinuidades, ou mesmo das confusões entre categorias como “violência política” e “violência de gênero”. No presente work, busco desenvolver tais reflexões a partir de uma etnografia com famílias em luta pela terra nos faxinais de Pinhão, Paraná. Analiso dois casos: 1) o de um pistoleiro famoso e temido, caracterizado como valente, que estupra uma mulher; 2) o de uma mulher morta entre vários conflitos, de modo que seu assassinato é problematizado como parte da luta pela terra, como resultado de uma briga de família e, ainda, como possível consequência da briga com um marido ruim.
De homossexuais a LGBTQIA+: sujeitos políticos, mudanças e enquadramentos
Autoria: Regina Facchini (UNICAMP - Universidade Estadual de Campinas)
Autoria: A partir de um contexto marcado, em âmbito internacional, pelo avanço de conservadorismos e de duros ataques aos direitos sociais, sexuais e reprodutivos e por democracias em risco na América Latina, os estudos sobre movimentos sociais se recolocam em evidência a fim de colaborar para a compreensão de processos e forças políticas atualmente em tensão. A produção de dicotomias entre "institucionalização" e "contestação" e de narrativas históricas lineares acerca de diferentes configurações dos ativismos aparecem como riscos em pesquisas sobre ativismos contemporâneos. Há, ainda, estudos que têm apontado para processos de "desinstitucionalização" ou de "descentramento da forma movimento" sem necessariamente atentar para a multiplicidade de formas de atuação e de atores articulados nos campos movimentistas. Esta apresentação parte de material etnográfico sobre o movimento LGBTI+ produzido pela autora nos últimos 23 anos, que é cotejado e complementado por reflexões produzidas a partir de outras etnografias ou estudos socioantropológicos. O foco analítico são os processos de mudança no modo de definição dos sujeitos políticos, nos repertórios e nos enquadramentos presentes no campo discursivo de ação delimitado em torno do movimento LGBTI ao longo das últimas quatro décadas. Trata-se de um olhar panorâmico, cujo foco não é descrever todos os processos e embates em detalhes. O argumento é o de que: 1) as diferentes formulações do acrônimo que nomeia o movimento têm relação com diferentes enquadramentos coexistentes ou não e que 2) tais enquadramentos estão relacionados à articulação de diferentes atores e contextos e, também, a duas diferentes lógicas que coexistem no movimento brasileiro desde sua origem: uma relacionada à experiência e outra às identidades coletivas.
Denúncias e mediações: universidades públicas e violências de gênero
Autoria: Fabiene de Moraes Vasconcelos Gama (UFRGS - Universidade Federal do Rio Grande do Sul)
Autoria: A universidade, enquanto instituição pública brasileira, apresenta características de socialidade e violência compatíveis com outros ambientes e instituições. Mas algo surpreende: apesar da alta escolaridade de seus membros, o desconhecimento sobre o que são e como combater violências de gênero é enorme. São desconhecidas não apenas as definições de violências de gênero, como o próprio significado delas. E ainda que algumas universidades produzam cartilhas de referência sobre o tema, em grande parte referindo-se a apoios que vítimas podem obter fora delas (na polícia, na justiça, em hospitais etc.), também há um desconhecimento sobre tais materiais, mesmo entre professoras associadas e titulares. Não se sabe, inclusive, o que a universidade pode ou deve fazer em relação aos casos de violência que surgem. E há uma grande confusão entre qual seria o papel da polícia, da justiça e da universidade ao lidar com estes casos. Este paper abordará diferentes violências de gênero em universidades públicas brasileiras a partir de experiências de estudantes, servidoras e professoras. O objetivo é refletir sobre as características dessas violências, vistas como estruturais e parte de um processo mais amplo, e como elas são acolhidas ou não nas universidades. Ao comparar casos e encaminhamentos de diferentes universidades, a proposta é apontar para o papel das universidades não apenas no debate, mas também no combate a essas violências.
Forjando arquivos LGBT através da música popular
Autoria: Nicolas Wasser (UNICAMP)
Autoria: Nos últimos anos a música popular tornou-se um canal cada vez mais denso de enunciações do universo LGBT brasileiro, integrando artistas de considerável alcance comercial como Liniker, As Bahias e Cozinha Mineira, Linn da Quebrada ou Pabllo Vittar. Apesar de atuarem em gêneros musicais heterogêneos, argumento que tais artistas estão formando um movimento que vem ocupando não apenas um mercado de música, mas também um terreno social e político de contestação “interseccional“. Para os fins deste paper analiso, em primeiro lugar, como as cantoras e intérpretes deste movimento musical LGBT estão reformulando arquivos de trauma relacionados à trans/homofobia e ao racismo. Como também sugerem atuais estudos sobre subjetividades LGBT negras, cultura e ativismo, o surgimento de recentes identidades na música popular remete para uma crescente inquietação social para com a violência e a opressão histórica dessas vozes. Neste sentido, pergunto até que ponto essas atuações culturais podem reescrever a memória LGBT a partir de outros enquadramentos, por exemplo, ao desenquadrarem certas identidades travestis e negras de sua sobrecodificação de violência e/ou marginalidade. Entender a música, finalmente, além do seu aspecto estético, como algo essencialmente do campo social pode ilustrar não apenas os agenciamentos de artistas, mas também como a antropologia de gênero e sexualidades participa na criação dos arquivos de sentimento.
Reparação moral, sentidos e reflexões sobre práticas alternativas de justiça em Natal/RN
Autoria: Rozeli Maria Porto (UFRN - Universidade Federal do Rio Grande do Norte)
Autoria: A justiça restaurativa traz uma concepção de justiça não punitiva que objetiva reparar os danos causados aos indivíduos e à sociedade em situações de violência, afastando-se da lógica punitiva do sistema penal tradicional. Pouco depois do advento da lei nº 11.340/06 - Lei Maria da Penha – observa-se que tais práticas alternativas de justiça no campo da violência de gênero passam a fazer parte da dinâmica de alguns juizados e varas de violência doméstica e familiar no país. A temática da violência de gênero ocupa lugar inquestionável tanto no debate acadêmico quanto na agenda política, protagonizando uma série de embates legislativos e no campo dos movimentos sociais. Contudo, o cenário atual caracteriza-se pelo avanço de uma onda neoconservadora em escala global que impacta diretamente o debate em torno da equidade de gênero, deslegitimando discursos em prol dos direitos humanos e feministas e reificando assimetrias e lugares tradicionais atribuídos a homens e mulheres, ao mesmo tempo em que recrudesce a lógica punitivista. O objetivo dessa apresentação, será discutir algumas dessas práticas de justiça alternativa na cidade de natal/RN, analisando os sentidos, reflexões e moralidades a partir dos discursos de nossxs interlocutores referentes a dois momentos: 1) as audiências que tratam principalmente sobre a “suspensão condicional de processos”; 2) o work realizado pela equipe multidisciplinar com homens autores de violência a partir de grupos reflexivos. Esta investigação está sendo realizada no 3º Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a mulher e faz parte da pesquisa intitulada “Estudos da judicialização da “violência de gênero” e difusão de práticas alternativas numa perspectiva comparada entre Brasil e Argentina”.
Sociabilidade, memória e homossexualidade: um estudo com homens homossexuais mais velhos na cidade de Salvador
Autoria: Thiago Barcelos Soliva (UFRB - Universidade Federal do Recôncavo da Bahia), Marcus Vinicius Silva Santiago Silva Marcus Vinicius Nery Damasceno
Autoria: Este work se ocupa da relação entre sociabilidade, memória e homossexualidade. O foco analítico recairá nas estratégias cotidianas de resistência e agenciamentos que homens homossexuais de gerações anteriores ao surgimento do Movimento Homossexual Brasileiro acionaram e o modo como eles burlaram convenções relacionadas à heteronormatividade a partir da ocupação de espaços e a construção de redes de afeto na cidade de Salvador, Bahia. Esta pesquisa fará uso de entrevistas tipo história de vida com homens homossexuais com mais de 60 anos e residentes na cidade de Salvador. As redes sociais, os espaços e locais de entretenimento percorridos por esses homens na cidade de Salvador, capital baiana, entre as décadas de 1970 e 1990 constitui o espaço etnográfico dessa pesquisa. Privilegiarei conhecer as relações de sociabilidade entre esses participantes, seus derives, deslizes, fixações e, principalmente, as “comunidades imaginadas” construídas a partir dessas interações.
Trânsitos precários: efeitos generificados da deterioração em tempo lento de uma estrada na Amazônia brasileira
Autoria: Telma de Sousa Bemerguy (UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro)
Autoria: A partir dos resultados de pesquisa realizada sobre e ao longo da rodovia Santarém-Cuiabá na Amazônia brasileira, nesse work proponho discutir os efeitos provocados pela vivência cotidiana e de longo-prazo com o deterioramento de uma estrada, abordando as formas como essa precarização compartilhada - também delimitada por configurações de raça, gênero, sexualidade e idade – tem afetado distintas possibilidades (e necessidades) de transitar pela região. Concebida no bojo do Plano de Integração Nacional (PIN) conduzido no contexto da Ditadura Civil Militar, a rodovia Santarém-Cuiabá foi oficialmente inaugurada em 1973, inacabada e sem asfaltamento. Apesar das inúmeras obras de recuperação e manutenção realizadas desde sua inauguração, em 2019, a rodovia ainda possuía diversos trechos sem pavimentação dentro do Estado do Pará, o que, muitas vezes, a tornava intrafegável devido a formação de imensas crateras e atoleiros. A estrada possui 1767 km de extensão, atravessa 71 municípios e possui uma área de influência de 1.231,8 milhão de km2 (Torres 2005). Partindo de etnografia realizada ao longo de viagens de ônibus e terminais rodoviários, entre Santarém, no Pará, e Sinop, no Mato Grosso, proponho uma análise sobre a dimensão ordinária e cotidiana dos deslocamentos realizados entre as cidades da região, interessada em refletir sobre os efeitos da vivência da temporalidade lenta de esfacelamento de um projeto de estrada de fundo colonial na conformação de subjetividades e territorialidades generificadas e racializadas; bem como na delimitação de sentimentos de abandono, de projetos de futuro e de sonhos com a “mudança” e a chegada do “progresso”. Em uma descrição atenta às particularidades do processo de ocupação da região e às transformações recentes decorrentes da vitória de Bolsonaro, buscarei demonstrar como uma descrição histórico-etnográfica dos trânsitos cotidianos pelas estradas da Amazônia brasileira, podem ser um caminho para compreender como valores neocoloniais/neoliberais, atualmente incorporados nos projetos do atual governo para a região, têm se fortalecido entre moradores locais.
Velhice e diversidade sexual e de gênero: analisando a atuação da ONG EternamenteSOU no processo de constituição dos “idosos LGBT”.
Autoria: Angelo Guimarães Della Croce (UFG - Universidade Federal de Goiás), Prof. Dr. Carlos Eduardo Henning
Autoria: Considerando o notório aumento do envelhecimento da população mundial, a antropologia tem se interessado e desenvolvido análises instigantes sobre o caráter plástico e variável do curso da vida, de seus distintos períodos e sobretudo do que diz respeito à velhice. Este “envelhecimento” global vem demandando cada dia mais atenção, ações efetivas, políticas públicas, além de novas pesquisas nas mais variadas áreas do conhecimento, focados nessa nova população, surgindo, assim, na antropologia, um novo campo: a antropologia da velhice ou antropologia do curso da vida. Um elemento particularmente produtivo que tem sido explorado na antropologia brasileira tem sido a articulação do envelhecimento com as relações de gênero e sexualidade. Até bem pouco tempo, o erotismo e sexualidade tendiam a não ser tematizados em conjunto com estudos do que se materializaria no que vem sendo chamado de “mito da velhice assexual”. Ademais, quando se tematizada a sexualidade na velhice, ela se restringia em termos gerais a pressupostos heterossexuais e cisgêneros. Esse aspecto, contudo, vem se alterando, e estudos sobre diversidade sexual e de gênero na velhice tem se adensado no Brasil nas últimas décadas. Todavia, com a crescente visibilidade e projeção alcançadas pelos movimentos LGBTI (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Transgêneros e Intersexuais), pesquisadores de várias áreas vêm percebendo e afirmando que os dados e informações disponíveis para o entendimento da velhice de pessoas heterossexuais se mostram insuficientes ou inadequados para se estudar e compreender a velhice de pessoas LGBT, dando origem a um novo campo: a Gerontologia LGBT. Neste sentido, este paper analisa, a partir de duas pesquisas etnográficas, a atuação da ONG (Organização Não-Governamental) EternamenteSOU, fundada e atuante na cidade de São Paulo desde fins de 2017. Tal ONG tem sido determinante no processo de desenvolvimento do campo da Gerontologia LGBT no Brasil. Através de duas pesquisas etnográficas envolvendo observação participante, entrevistas semiestruturadas com os voluntários e as pessoas atendidas pela referida ONG, pretendemos analisar, por um lado, o desenvolvimento de um conjunto de discursos que contribuem para a constituição biopolítica de novas populações envelhecidas. Por outro lado, também pretendemos analisar os programas e ações que vêm sendo desenvolvidos pela EternamenteSOU, os modos como estes são concebidos tanto por seus voluntários quanto pelos velhos e velhas por eles atendidos, e, por fim, de quais maneiras tais práticas e discursos podem, eventualmente, estar produzindo concepções particulares e prescritivas de uma “boa velhice LGBT”.
Vida cotidiana, nomeações e vulnerabilidades: reflexões sobre modos possíveis de compreender violências sexuais em favelas
Autoria: Carolina Parreiras Silva (USP - Universidade de São Paulo)
Autoria: O objetivo desta apresentação é refletir sobre algumas questões que desenvolvi em minha pesquisa de pós-doutorado. O eixo central desta pesquisa foi a ocorrência de diferentes formas de violência sexual contra adolescentes em favelas do Rio de Janeiro. A partir de pesquisa etnográfica, que envolveu o acompanhamento da vida cotidiana de adolescentes e suas mães, busquei compreender como os casos de violência sexual foram nomeados e classificados dentro das categorias locais. Em termos metodológicos, minha aposta é no cotidiano, na vida ordinária, na medida em que esse se mostrou o modo mais adequado para encontrar estratégias de escuta que pudessem captar as categorias de classificação, as convenções e as narrativas. É importante ressaltar que utilizo o nome violência sexual como termo guarda-chuva para uma série de atos que não necessariamente ganham esta classificação entre os/as sujeitos de pesquisa. Além disso, foi um desafio deste estudo lidar com o caráter invisível, íntimo e silencioso destas violências, visto que apenas em situações extraordinárias eles ganham o espaço público da comunidade. Na medida em que se trata de territórios militarizados, localizados nas margens do Estado (Das e Poole, 2008) e marcados pela ocorrência cotidiana de diferentes tipos de violências (da polícia, do exército, da facção que controla o território) parecem ser estas as violências facilmente detectáveis e assim nomeadas. É, portanto, na relação entre formas públicas e privadas de violência que se tornou possível compreender como localmente se dá a nomeação destes atos. Minha argumentação se baseia em dois casos etnográficos exemplares que quebram o padrão de silêncio e invisibilidade: a ocorrência de um feminicídio e de um estupro. Utilizo então as narrativas de adolescentes e de suas mães comentários que circularam na comunidade sobre estes casos, buscando compreender como eles, ainda que pareçam extraordinários em um primeiro momento, são reveladores do caráter ordinário das violências e especificamente das violências sexuais e de gênero. O conceito de vulnerabilidade – tomado como relacional – é fundamental, na medida em que permite entender como há a sobreposição de tipos de violência e também os modos intrincados pelos quais se cruzam marcadores sociais da diferença, como gênero, sexualidade, raça, classe social e geração.
Vidas positivas e temporalidades entrelaçadas: políticas de HIV-aids e debate público sobre pessoas vivendo com HIV-aids no Brasil atual
Autoria: Júlio Assis Simões (USP - Universidade de São Paulo)
Autoria: Uma inflexão nas políticas de gestão da epidemia de HIV-aids, acompanhando orientações globais, verificou-se no Brasil ao longo da década de 2010, no sentido de promover a adesão a determinados esquemas terapêuticos, com ênfase na responsabilidade individual do consumidor de novas tecnologias de cuidado e prevenção. De outra parte, a tendência de “normalização” da epidemia, estimulada pela crescente biomedicalização e pelo correlato reenquadramento do HIV-aids no imaginário político e social – não mais como “sentença de morte”, mas como “doença crônica tratável” – transcorreu num contexto de ascensão de uma direita religiosa e miliciana que pretende interditar quaisquer esforços de informação, educação e prevenção sobre sexualidade e práticas sexuais, além de chamar a atenção para o “custo” que as pessoas que vivem com HIV-aids representam para a sociedade. Assim, a antecipação de uma “saúde global futura” e os ideais de “vida positiva” confrontam-se com a persistência do medo, a discriminação e o preconceito que evocam a “aids do passado”. Esta comunicação propõe-se discutir os modos como o tempo das “novas tecnologias” e o tempo dos “velhos temores” se entrelaçam e perturbam as ordenações e ideologias de temporalidade que circulam em meio às intervenções de saúde global voltadas à epidemia de HIV-aids, considerando o debate público no Brasil atual.
“Cala a boca, abortista!” Hate speech e discursos anti-direitos em mídias sociais
Autoria: Horacio Federico Sívori (UERJ - Universidade do Estado do Rio de Janeiro)
Autoria: As eleições gerais de 2018 no Brasil tornaram-se uma inevitável referência do protagonismo das chamadas “mídias sociais” na versão contemporânea do clássico poder dos pânicos morais para instilar raiva e medo contra determinadas categorias sociais. O aumento atual da inclusão digital através de dispositivos móveis veio acompanhado do monopólio dos usos cotidianos de tecnologias de informação e comunicação por parte de plataformas de mídia social como Facebook, WhatsApp, YouTube e Instagram. O assim chamado “modelo de negócio” destas plataformas baseia-se primordialmente na busca de maior “conectividade”, de modo que os algoritmos que regem seu funcionamento são desenhados para intensificar determinadas conexões, as que mais engajamento produzem, relegando outras possíveis. Criam desse modo “bolhas” de afinidade entre usuários, que isolam as comunidades que elas mesmas contribuíram para criar. Ao desestimular a pluralidade que definiria uma esfera pública democrática, além de aglutinar e polarizar posturas, esta dinâmica tem facilitado a radicalização de discursos e a legitimação, dentro de âmbitos artificialmente criados, de atos de ódio não apenas contra feministas e LGBTs, mas que por regra condensam também disposições racistas, xenófobas e contra as classes populares. Para abordar o engajamento com discursos e atos de rechaço ao feminismo e à diversidade sexual em mídias sociais, sua configuração interseccional e as condições para sua codificação como agressões, neste work refiro à analítica dos atos de fala, tal como concebidos pioneiramente por Austin & Searle, e de hate speech, discutidos por Judith Butler, entre outrxs autorxs. Parto da hipótese de que, no contexto brasileiro atual, as violências produzidas em meios digitais baseadas em gênero, orientação sexual e outros marcadores de diferença estão intimamente vinculadas e enredadas com discursos anti-direitos e devem ser abordados como um aspecto constitutivo destes últimos, e vice-versa. Assim, exploro o rendimento dessas categorias com relação a modos específicos de engajamento digital em casos emblemáticos de postagens anti-feministas e anti-LGBT, na forma de composições textuais, imagéticas e audiovisuais compartilhadas extensamente em grupos de WhatsApp e outras plataformas durante o período eleitoral de 2018. Combinando a observação etnográfica em mídias sociais com recursos metodológicos desenhados para a abordagem qualitativa de objetos “nativamente digitais”, busco desenvolver chaves analíticas para compreender a expressividade, modos de gestação e efeitos performativos da violência contra categorias sociais subalternas em meios digitais.
“Impróprio para menores”: desafios, controvérsias e resistências envolvendo diversidade sexual e de gênero na adolescência e juventude
Autoria: Vanessa Jorge Leite (UNIFESP - Universidade Federal de São Paulo)
Autoria: O Brasil tem sido palco nos últimos anos de diferentes controvérsias públicas envolvendo gênero e sexualidade, que se articulam em um cenário de fortalecimento de “conservadorismos” e têm como pontos de interseção o confronto de moralidades em relação ao gênero e à sexualidade e a mobilização do discurso de defesa das crianças, adolescentes e jovens. Assistimos, na arena pública brasileira, ao fortalecimento de discursos religiosos "conservadores”, como parte de uma agenda transnacional antidireitos. Os atores que protagonizam essa ofensiva têm ocupado lugares de poder nas estruturas do Estado e acionado temáticas ligadas a gênero e sexualidade como artefatos políticos na deflagração de pânicos morais. Contudo, o plano das disputas políticas é diferente do plano do cotidiano, pois lida com um jovem abstrato. Esse work pretende refletir, a partir do desenvolvimento de pesquisas e diálogos com profissionais que atuam junto a adolescentes e jovens, como esses debates se materializam nas instituições, especialmente a família e a escola, e na vida dos jovens. Um ponto preocupante é a enorme força de normas e convenções sociais que, desde a primeira infância, excluem e discriminam aqueles que não “cumprem” com o que é esperado para o gênero que lhes foi atribuído ao nascer. A educação na família, e que depois se mantém na escola, é ainda, hegemonicamente, pela afirmação de uma concepção em relação ao gênero que mantém desigualdades e hierarquias. E quando se chega à adolescência, com a vivência da sexualidade, a hierarquização se fortalece. Aqueles que rompem com as convenções sociais de gênero e sexualidade estão particularmente expostos às mais variadas formas de violência e discriminação em diferentes espaços sociais e instituições. O lugar da família, da escola e os valores religiosos parecem estar fortemente relacionados com a possibilidade (ou não) de afirmação dos direitos dos adolescentes ao exercício da sexualidade e trânsitos de gênero e interferir em processos de subjetivação e construção de identidades. Os “adolescentes e jovens LGBTI” têm sido o foco de muitas disputas, sejam políticas, discursivas ou ideológicas. Com sua presença desafiadora e perturbadora nos espaços e instituições a que estão ligados/as, esses jovens têm forçado familiares, educadores e instituições a se repensarem, têm impelido à construção de novas institucionalidades que deem conta de suas necessidades, exigências e problemáticas. A diversidade sexual e de gênero é uma realidade na vida de um sem número de jovens. E eles vêm confrontando uma série de valores morais e convenções no cotidiano de suas vidas e fazendo negociações várias para garantir uma existência possível, mesmo que tal existência seja considerada “imprópria para menores”.
Violência Obstétrica e mulheres indígenas: reflexões transdisciplinares sobre o sentido, o sentir e resistir.
Autoria: Danielle Ichikura Oliveira (Faculdade de saude publica USP), Danielle Ichikura Oliveira José Miguel Nieto Olivar
Autoria: O objetivo deste work é nos aproximar a uma reflexão sobre a categoria “violência obstétrica” e formas de lidar de mulheres indígenas, em especial as mulheres Yanomami no Alto Rio Negro. Trata-se de um esforço transdisciplinar entre a saúde pública, a antropologia e os estudos de gênero e violência. Nele, colocamos em articulação os relatos de mulheres Yanomami com uma bibliografia biomédica crítica e de matriz feminista sobre “violência obstétrica”. Por meio de um diálogo maior com a antropologia indígena e de gênero, buscamos analisar as formas como essas mulheres compreendem e lidam com esta categoria. Esse work faz parte de um esforço colaborativo entre o Departamento de Mulheres Indígenas da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (DMIRN/FOIRN), o Instituto Socioambiental (ISA), o Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami (DSEI-YA) e a Faculdade de Saúde Pública da USP, para a compreensão de conhecimentos e práticas de cuidado de mulheres indígenas perante formas sistemáticas de violência. Nesse marco foi realizado um exercício de pesquisa de campo de cunho etnográfico,em caráter de Iniciação Científica realizado por uma graduanda em Saúde Pública da USP. No período de 01 de fevereiro a 04 de março de 2020 foram construídos diálogos com mulheres indígenas de diversas etnias. Dentre as atividades em campo foi realizado uma roda de conversa com mulheres Yanomami onde foi possível ouvir seus relatos de trajetórias de parto e embasar esta proposta de reflexão. Baseado nessas narrativas dadas pelo encontro da pesquisadora com as mulheres buscamos contrastar as percepções das mulheres indígenas sobre práticas, experiências e relações de violência no contexto de institucionalização do parto, com as definições oficialmente estabelecidas de "violência obstétrica", no intuito de enriquecer os debates técnico-políticos sobre esta forma de violência.