GT 44. Etnografias da música: dilemas e soluções empíricas e metodológicas

Coordenador(es):
Carla Delgado de Souza (UEL)
Marina Bay Frydberg (UFF - Universidade Federal Fluminense)

Para a antropologia da música, o trabalho de campo e, consequentemente, a escrita etnográfica não devem se ater a uma noção simplista da música como sendo exclusivamente som. Desde os anos 1980, crescem as etnografias que utilizam uma concepção ampliada de música, o que faz com que a ênfase dos estudos recaia sobre os fazeres musicais. Com isso, ganham sentido as etnografias que relacionam música com aspectos rituais, étnicos e culturais de grupos sociais distintos. Na busca por uma semântica musical que leve em conta os aspectos poéticos e sociais da música, também tem sido cada vez mais frequente a realização de etnografias da que revelem como os fazeres musicais são perpassados por marcadores sociais como os de raça, gênero e classe social. Entendendo que a antropologia da música está afinada com as proposições e discussões mais amplas presentes nas teorias antropológicas contemporâneas, pretendemos discutir, nesse GT, os dilemas enfrentados pelos antropólogos durante a realização de seus trabalhos de campo, que muitas vezes inspiram a experimentação de novas técnicas de pesquisa para a construção dos dados etnográficos, bem como para a posterior análise destes. O processo de escrita etnográfica tampouco é imune aos dilemas vivenciados pelo pesquisador. Nesse sentido, reflexões sobre as potências e os limites da escrita etnográfica sobre os fazeres musicais são bem vindas.

Palavras chave: antropologia; fazer musical; métodos de pesquisa, escrita etnográfica
Resumos submetidos
A musicalidade romeira na Festa do Povo: uma análise das experiências musicais para além da penitência nos eventos de romarias em juazeiro do norte, ceará.
Autoria: Amanda Priscila Souza e Silva (UFRN - Universidade Federal do Rio Grande do Norte), Maria Lúcia Bastos Alves
Autoria: Neste texto buscou-se pautar um estudo voltado para a investigação das festas musicais existentes nas romarias – oficiais e não oficiais – que ocorrem em Juazeiro do Norte, cidade interiorana do Ceará. Estes eventos são dotados de uma complexa efervescência cultural e espiritual que fazem deste cenário um campo vasto de inquietações. Pessoas de todo o Brasil, das mais variadas gerações, gêneros e classes socioeconômicas se encontram para agradecer às bênçãos do Padre Cícero. Esta diversidade enriquece ontologicamente o campo e também o complexifica. Ao considerar as prenoções sobre as práticas romeiras, constata-se que elas transcendem os prejulgamentos. Há uma tendência em associar os eventos romeiros ao sacrifício, à penitência, mas dando pouca ênfase ao outro aspecto que é a dimensão da festa, sobretudo em sua dimensão musical. Assim sendo, esta análise visa a interpretar o conteúdo presente nestas romarias quanto à dimensão da festa, suas formas musicais, suas interações sociais e as múltiplas percepções do que é fazer romaria para os seus atores sociais que estão intimamente ligados à dimensão musical. Realizar um minucioso work etnográfico permite observar as dissonâncias e as convergências entre o que é dito e o que é praticado pelos interlocutores. Ainda assim são inúmeras as dificuldades da investigação e da escrita etnográfica quando realizada num evento tão musical e dinâmico, em que várias atividades e gêneros musicais distintos são reproduzidos concomitantemente. Com um estudo de registros visuais, sonoros e das práticas romeiras observadas, propõe-se ilustrar o cenário do campo, elucidando os elementos que aparecem nos discursos dos atores sociais em seus consensos, dissensos, negociações e significações. Do mesmo modo, aborda os desafios de se pesquisar música no panorama apresentado e o amadurecimento da realização do work de campo a partir de dados obtidos entre o primeiro contato com o objeto, no ano de 2010, até o presente momento. Fundada na articulação das temáticas musicais e religiosas, esta pesquisa realiza um diálogo com autoras e autores clássicos e contemporâneos significantes das Ciências Sociais para uma escrita analítica por meio da etnografia.
Entre cordas de violão e baquetas em punho: oficinas de música no Complexo Cultural Teatro do Boi em Teresina (PI)
Autoria: Nayra Joseane e Silva Sousa (UFPI - Universidade Federal do Piauí), Tayná Egas Costa
Autoria: Inúmeras instituições no país proporcionam o acesso a práticas culturais a jovens e adultos no intuito de aproximar determinadas linguagens artísticas e a formação de públicos (MANTECÓN, 2017), assim, também é no Complexo Cultural Teatro do Boi, em Teresina (PI), mais conhecido como “Teatro do Boi”. Desde sua inauguração, a instituição é reconhecida por atender predominantemente população de baixa renda que mora no seu entorno, embora essa realidade tenha tomado outros contornos a partir da reforma que proporcionou uma nova estrutura ao prédio, por meio da implementação do Programa Lagoas do Norte (PLN), que desde então, suscita vários conflitos entre o poder público municipal e os moradores da região. Para além dessa necessária contextualização, proponho nesse artigo, um retorno a pesquisa desenvolvida (2015-2017) no Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal do Piauí, no qual lanço uma discussão sobre os desafios de pesquisar um centro cultural adentrando ao universo da música. Ou seja, apesar das inúmeras práticas culturais ofertada pela instituição, concentro-me aqui nas oficinas de música: de violão e percussão. A etnografia da música (SEEGER, 2008) possibilita abordagem a partir de diversas lentes afim de registrar a maneira como as pessoas fazem música. Para tanto, retorno aos cadernos de campo na tentativa de evidenciar o que ignorei ou ocultei e os limites éticos do fazer etnográfico no campo da música.
Entre-lugares: Som e Movimento enquanto Promoção da Saúde
Autoria: Márcio Luiz Braga Corrêa de Mello (Fiocruz - Fundação Oswaldo Cruz), Júlia Fleury - UFRJ Adrielle Fernandes - Fiocruz Celso Almeida - UERJ Victor Strattner - Fiocruz
Autoria: O que separa a ciência e a arte? Em um mundo líquido as barreiras entre essas duas formas de conhecimento estão cada vez mais frágeis. Abre-se espaço, assim, para visualizar-se o que está na fronteira: a pesquisa e produção artística com base e fins artísticos-científicos. Dessa forma, a partir da pergunta base: “o que é saúde?” este work busca unir arte, cultura e saúde sugerindo, simultaneamente, a ação e pesquisa. Promove-se saúde e práticas sonora e corporal, assim como pesquisa antropológica em som, corpo, movimento e saúde, tendo como embasamento empírico práticas coletivas em forma de oficinas dialógicas de linguagem sonora e corporal. Unifica-se, então, ciência e arte a fim de potencializar o ser humano, além de colocar o conceito de saúde como central, em uma sociedade permeada pela doença. Pesquisa-se, portanto, quando e como é produzida saúde, logo, vida, com som e movimento. A música e os sons melodiosos aparecem como mecanismo de cura milenar, utilizados por diversas culturas ao longo da história como “meio de promover a saúde do corpo e do espírito”. Dessa forma, realizar um estudo sobre a ‘música’ ultrapassa o som tocado, incluindo tempo, espaço, atores/músicos, estrutura socioeconômica e costumes, dentre tantos outros fatores. Além disto, outro fator receberá enfoque especial neste work: a promoção da saúde. O campo da promoção da saúde, como uma iniciativa positiva, leva a uma percepção ampliada, complexa e inter-setorial: vincula ambiente, educação, pessoas, estilo e qualidade de vida. Conversa diretamente com a música e, mais especificamente, com o fazer musical, intrinsicamente relacionado com a dança; afinal, a divisão entre música e dança, som e corpo, ocorre quase que exclusivamente, na sociedade ocidental. Localizam-se, assim, as práticas musical e corporal como manifestações performáticas e artísticas, agentes culturais, os quais, dentro do conceito ampliado de saúde, promovem o fazer terapêutico. Ambas capazes de agir positivamente na relação indivíduo-sociedade, afirmantes de identidade cultural, e instigantes de criatividade, da consciência e do estado de presença, promotoras de solidariedade, resistência, coletividade, integração e união. Neste work, mistura-se pesquisa antropológica com ações positivas em saúde, apresentando-se um modo não convencional de uma etnografia da performance musical. A investigação deu-se em Oficinas Dialógicas de Linguagens Sonora e Corporal (ODLSC), facilitadas por grupo de pesquisa do LITEB/IOC - FIOCRUZ, do qual fazem parte os autores. Foram realizadas com dois grupos: o primeiro, uma turma de pós graduação em Arte e Cultura na Saúde, do IOC/FIOCRUZ; o segundo formado por alunos do Centro de Ações Solidárias da Maré.
Estratégias metodológicas para uma etnografia de uma bateria de escola de samba
Autoria: Felipe do Santos Lima de Barros (IFRJ - Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro)
Autoria: A comunicação apresentará questões e caminhos metodológicos encontradas no decorrer de minha pesquisa de doutorado desenvolvida junto aos integrantes da bateria da escola de samba Acadêmicos do Salgueiro, na cidade do Rio de Janeiro, entre os anos de 2010 a 2014 e defendida em 2016, no PPGSA/UFRJ. Na performance carnavalesca das escolas de samba, as chamadas “baterias” têm um papel fundamental. Trata-se de um conjunto composto por cerca de 250 integrantes que participam do desfile, tocando (ou batendo) exclusivamente instrumentos de percussão. No desfile, a bateria é a responsável pelo acompanhamento rítmico percussivo que “anima”, “sustenta” o canto dos participantes do desfile e “dá o ritmo do samba” que conduz os passos de dança. A pesquisa abordou as diferentes formas de sociabilidade, práticas sociais e performáticas engendradas pelos agentes sociais envolvidos com a bateria da escola de samba Salgueiro, dando ênfase à etnografia de um debate que ocupava as falas de meus interlocutores: as transformações e mudanças experimentadas na composição social e na sonoridade da bateria a partir da década de 90 até 2014. Na tese, a partir das concepções de integrantes e ex-integrantes da bateia do Salgueiro, foi discutida então a relação entre processos de mudança social e estética, enfatizando como processos criativos, conflitos, sonoridades e dramas sociais são produzidos, simbolizados e metaforizados em situação de performance ritual, no caso, a disputa festiva das escolas de samba cariocas e seu ciclo preparatório. Tal contexto e, consequentemente, os discursos dos interlocutores apresentam uma complexa teia de relações entre sistemas de classificação sociais e sonoro/musicais que se expressam por meio de palavras, ritmos, língua, silabações, técnicas corporais, sons, performances, marcadores temporais, etc. Trata-se de um repertório de difícil apreensão. Se pesquisa de campo é um modo de acessar tal repertório e compreendê-lo, os modelos de escrita etnográfica, consolidados pela antropologia moderna e baseados na textualização, parecem ser insuficientes para dar conta de sua tradução. A comunicação irá demonstrar dificuldades e estratégias vivenciadas, ao longo da pesquisa de campo e, principalmente, na elaboração da tese, momento que, para referenciar o texto, se tornou necessário a adoção de estratégias colaborativas de escrita, de uso de material arquivístico e produção de registro fonográfico e visual. Dessa forma, as fronteiras do contexto de pesquisa de campo foram rompidas e as interações e situações de interlocução transferidas para estúdios de gravação e ilhas de edição. Por essa discussão, pretende-se discutir os limites da escrita acadêmica e a possibilidade de traduzir a criatividade das formas expressivas e discursivas dos ritmistas.
Etnografando as mulheres do samba: possibilidades do estudo de trajetórias
Autoria: Julia Ricciardi Lima (UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro)
Autoria: O presente artigo deriva de uma pesquisa etnográfica em curso realizada junto a dois grupos de samba inteiramente formados por mulheres que atuam hoje no Rio de Janeiro: Samba Que Elas Querem e Moça Prosa. Este recorte reflete sobre as possibilidades do uso dos estudos de trajetória como prática de pesquisa na construção de uma etnografia da música. Partindo de um entendimento da música como campo ampliado, onde estão em jogo não apenas a questão sonora, mas também o tema das práticas sociais, a opção pelo enfoque das trajetórias de vida pode auxiliar a elucidar a importância da afirmação de grupos de mulheres no cenário do samba, a importância de uma prática musical perpassada por marcadores como gênero e geração, a compreensão de processos de formação de identidades e as tensões entre a tradição e suas novas práticas (HOBSBAUM, 2007). As trajetórias de vida são entendidas aqui como mais do que apenas um conjunto de técnicas de pesquisa ou um conceito, mas como uma perspectiva colocada frente à construção do conhecimento social, conforme assinala MARINHO (2017). A operacionalização do tema das trajetórias na pesquisa etnográfica em música também será pensada a partir da perspectiva Bourdiana e da ideia de microssociologia ou sociologia do indivíduo conforme descrito por MARTUCCELLI (2007). O artigo pretende explorar as potências e limites implicados na escolha dos sujeitos de pesquisa, na decisão pela metodologia de tomada e análise de depoimentos biográficos (pensados a partir de BOURDIEU, 1986), no posicionamento da pesquisadora em campo e na construção narrativa etnográfica a partir das trajetórias de vida das mulheres musicistas. É possível que o estudo de trajetórias ao passo em que revele entre as próprias musicistas perspectivas em comum, revele também experiências heterogêneas com os fazeres musicais (como trajetórias de aprendizado de música que vão desde o contato formal com a música clássica ainda na infância até o aprendizado empírico na idade adulta), ampliando ainda mais as possibilidades de um campo da etnografia da música. Neste cenário, as traduções de sentido sobre o fazer musical operadas pela escrita etnográfica de uma pesquisadora não musicista são também experimentadas nas interações no interior do próprio grupo pesquisado. O recorte que a pesquisa de trajetórias de vida realiza na experiência mais vasta dos sujeitos pesquisados também se desvela como uma experiência compartilhada com a pesquisadora que diante de uma gama de experiências de várias ordens, que ultrapassam a científica, opera o recorte em sua própria trajetória de pesquisa na construção da narrativa etnográfica.
Nos rastros dos sons: uma (quase) arqueologia sonora
Autoria: Giovanni Cirino (UEL - Universidade Estadual de Londrina)
Autoria: Pretendemos expor algumas questões sobre os elementos expressivos presentes na Festa de São Benedito de Ilhabela. Menos do que proporcionar uma interpretação totalizante sobre os materiais expressivos, nosso objetivo está mais ligado com a busca pelo entendimento dos processos de produção de convenções a partir da indexação de determinados elementos. Nesse sentido, nos parece premente tanto uma reflexão sobre os processos do fazer musical quanto sobre o fazer antropológico. Pretende-se enfocar alguns materiais referentes ao universo sonoro da Festa (e aos instrumentos, principalmente a marimba), procurando neles os rastros dos elementos estéticos e morfológicos indexados. A partir de materiais coletados em diversas ocasiões ao longo dos últimos 15 anos (em especial 2005, 2009, 2010, 2016 e 2019) intenta-se entender como se constroem as leituras dos elementos expressivos da congada e como estes estariam ligados a determinados arcabouços estéticos e culturais. Através do enfoque a tais elementos imagina-se uma aproximação com alguns dos sentidos da promessa e devoção a São Benedito.
O caminho para o imprevisível: as descobertas iniciais de um músico-antropólogo na improvisação livre
Autoria: Guilherme Furtado Bartz (UFRGS - Universidade Federal do Rio Grande do Sul)
Autoria: A improvisação livre vem se apresentando, nas últimas décadas, como uma proposta bastante inovadora em termos de performance musical. Ela pode ser vista como uma espécie de antissistema ou anti-idioma musical, na qual o objetivo é fugir dos territórios gramaticalizados encontrados nas práticas improvisatórias tradicionais. Ao contrário dos modelos que se movem dentro de fronteiras fortemente demarcadas – jazz, blues, música hindu etc. –, a proposta da improvisação livre é alargar ao máximo qualquer tipo de fronteira idiomática. O objetivo seria menos o de negar a existência ou influência de certos modelos estabelecidos, mas pensar a “improvisação” a partir da acepção mais vasta desse termo, ou seja, como algo liberto de qualquer amarra ou constrangimento sonoro e estilístico. O presente work é resultado das reflexões iniciais do autor a respeito de seu primeiro envolvimento com essa prática musical, uma experiência etnográfica e etnomusicológica que corresponde a uma parte importante de sua pesquisa de doutorado em Antropologia, atualmente em andamento. O texto apresenta reflexões teóricas e descrições etnográficas derivadas da participação do autor no Núcleo de Música Improvisada da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), espaço no qual ele vem coletando boa parte dos dados etnográficos que farão parte de sua tese. Nessa experiência, o autor – que também é músico e pianista – deparou-se com um universo musical que lhe era completamente desconhecido até então. O que aqui se expõe, portanto, resulta também das razões para esse estranhamento, relacionado com a própria biografia musical do autor – músico formado na tradição da música erudita, contexto no qual se observa, de forma muito significativa, o forte vínculo entre as partituras e as performances musicais. Na improvisação livre, ao contrário, sequer há partituras que norteiam as performances, o que de certa forma desorienta o músico acostumado com uma abordagem musical dita mais “tradicional”. Na improvisação livre, diferentemente do que também se observa na música erudita, o objetivo não é interpretar obras acabadas ou mesmo criá-las de forma “espontânea”, mas gerar um produto sonoro que é fruto do momento mesmo em que os sons são produzidos. Nesse contexto, ocorrem interações inesperadas em livres fluxos e transformações de materiais sonoros, num jogo praticamente sem regras. Podendo ser feita individualmente ou em grupo, a improvisação livre caracteriza-se por apresentar possibilidades múltiplas e caminhos que nunca estão dados de antemão, já que resultam de processos imprevisíveis em sua essência. O presente work procura refletir antropologicamente sobre estas e outras questões.
O músico e o etnógrafo: o campo e o "campo"
Autoria: Humberto Junqueira (UFMG - Universidade Federal de Minas Gerais)
Autoria: Método, teoria e técnica são palavras amplamente difundidas e enunciadas no âmbito científico, assim como no contexto musical (escolástico ou não). No entanto, na maioria das vezes, os mesmos termos expressam significados completamente diferentes conforme a variação do contexto, como, aliás, não poderia deixar de ser. Nesse work buscarei propor alguns critérios para a diferenciação desses conceitos, especialmente em relação ao entendimento do que seja o método e a etnografia no âmbito de um estudo que tem a música como foco da análise. “É uma questão interessante saber quando é que uma determinada investigação tem realmente início” (BECKER, 2008, p. 10). Esse é um trecho retirado do livro Mundos da Arte de Howard Becker. Nessa passagem o autor explica como e quando iniciou seu percurso, suas reflexões, observações, aquilo que resultaria justamente na pesquisa que deu origem ao livro. Dentro dessa perspectiva, não seria exagero dizer que minha investigação no campo da música se iniciou lá pelos meus 13, 14 anos, quando comecei a tocar guitarra elétrica, arrastado pela moda grunge trazida pelas bandas de Seattle (como Nirvana, Alice in Chains e Pearl Jam) ao Brasil no início dos anos 1990. Tive diversas bandas de garagem, migrei para outros estilos musicais, aprendi a tocar outros instrumentos, realizei apresentações e gravações que me deram grande satisfação. Mas isso que chamei de “campo da música” pode ser entendido como um campo etnografável? De volta à ideia trazida por Becker, é possível se instituir o momento preciso para o início de uma etnografia? O work que aqui se apresenta constitui uma reflexão a respeito dos aspectos metodológicos de minha pesquisa de doutorado que aborda o contexto do choro em Belo Horizonte a partir das práticas do músico Mozart Secundino de Oliveira.
Ocupação musical do espaço público: estudo etnográfico sobre a atual movimentação de músicos de rua no Rio de Janeiro
Autoria: Renan do Nascimento Santos (Não informado)
Autoria: Proponho para esta comunicação um debate sobre a ocupação musical dos espaços públicos do Rio de Janeiro. A movimentação de músicos nas ruas e transportes na cidade é bastante heterogênea, em termos de sujeitos, gêneros musicais, formações, repertórios, espacialidades apropriadas, dinâmicas das apresentações, etc. Por certo, esta comunicação não tem por objetivo analisar toda esta diversidade, mas sim estabelecer alguns pontos de referência para a análise, partindo principalmente da interlocução com alguns músicos inseridos neste universo. Conformam-se como objetivos deste artigo, apresentar uma descrição dos tipos ocupação musical dos espaços públicos considerados, bem como dos procedimentos metodológicos operados para realização deste estudo etnográfico e pôr em evidência o contexto de acirradas disputas e tensões entre músicos e diversos setores da sociedade pelos usos e contrausos dos espaços públicos da cidade. As análises apresentadas neste artigo são resultados de pesquisa realizada no mestrado e estão pautadas numa interface central que considera a um só tempo a cidade – e as territorialidades produzidas por este tipo de ocupação –, a possibilidade de reinvindicar independência musical num circuito tradicional de apresentações e as condições, processos e relações de work postas para este tipo de work informal. Em diálogo com uma bibliografia previamente revisada sobre o tema das diferentes formas de ocupação artística do espaço público, discuto neste artigo a emergência de um circuito alternativo de circulação musical na cidade do Rio de Janeiro através da ocupação das ruas e dos transportes públicos com apresentações musicais ao vivo. A partir da interlocução com músicos inseridos e atuantes nesta movimentação, analiso as reivindicações expressas neste procedimento de ocupação musical do espaço público. Tal ocupação por parte de músicos independentes seria apenas uma questão de reivindicação de independência musical na etapa da circulação? Ou, perguntando de outra maneira: tal ocupação estaria se dando apenas em função de um circuito restrito de palcos de pequeno e médio porte na cidade ou haveria também a necessidade de produzir outros valores de uso para os espaços públicos da cidade? Que consequências a transposição das apresentações dos palcos para o espaço público traria para as condições de work vivenciadas por estes sujeitos no cotidiano da sua atividade e para as próprias apresentações em si?
Puxando a fumaça e soltando pro ar: consagração e silêncio em Pixinguinha e Dorival Caymmi
Autoria: Rafael do Nascimento Cesar (UNICAMP - Universidade Estadual de Campinas), Vítor Queiroz
Autoria: Este artigo trata das correlações entre raça, envelhecimento e silêncio presentes nas trajetórias de dois artistas negros da música popular brasileira – Alfredo da Rocha Vianna Filho, ou Pixinguinha, e Dorival Caymmi. Recuperando alguns momentos decisivos de seus processos de consagração perante a crítica especializada, a historiografia da música popular e o público em geral, o artigo procura evidenciar como o silêncio acerca de determinadas marcas sociais dos dois artistas, notadamente a cor, figurou como um operador simbólico crucial tanto de suas experiências raciais quanto do sucesso que tiveram. Se nas biografias e entrevistas existentes, Pixinguinha e Dorival Caymmi não são identificados como negros, salvo raríssimas exçeções, abundam menções à genialidade de ambos, volta e meia referenciada a disposições inatas (sensibilidade, talento e predestinação). Assim, evitando repisar narrativas de invisibilização nas quais as possibilidades de agência de sujeitos subalternizados assumem, no melhor dos casos, sentidos de "resistência" aos sistemas que os oprimem, queremos sugerir que o silêncio acerca da negritude de ambos - observado no contexto específico das trajetórias de Pixinguinha e Caymmi como instrumentistas e compositores populares - foi mobilizado também pelos próprios artistas, podendo ser entendido como estratégia para tentar contornar alguns dos constrangimentos decorrentes do racismo flagrante na sociedade brasileira.
Registro gráfico musical e etnografia: alcances e limites da transcrição musical ocidental no contexto religioso afro-brasileiro, a partir do exemplo do Candomblé Ketu
Autoria: Rafael Souza Palmeira (UNICAMP - Universidade Estadual de Campinas)
Autoria: Não há dúvida que o estudo de determinada música demanda investigações que extrapolem o limite da pesquisa pura e simplesmente sonora. A relação contextual, os trânsitos e diálogos entre os sons e seus entornos, são essenciais para uma compreensão assertiva de um fato musical. Porém, torna-se necessário atentar para a importância de uma análise sonoro-musical específica, contribuindo para um entendimento mais amplo de determinadas conjunturas musicais. Neste sentido, este work tem o intuito de discutir as potencialidades da transcrição musical ocidental no âmbito investigativo da música do Candomblé Ketu. Inicialmente, a relevância da música em todo o contexto afro-religioso brasileiro será pontuada, através de seu protagonismo indicado por diversas obras etnográficas que têm se dedicado ao tema desde o início do séc XX. Seguindo, um panorama sobre o lugar da música no Candomblé será compartilhado: suas funções e relevância enquanto elemento central do referido contexto. Assim, serão destacados aspectos instrumentais, a saber: atividades rítmicas características do quarteto instrumental (atabaques rum, lé e rumpi, acompanhados pelo gã - instrumento metálico idiofone). Aqui, a estreita relação entre variações rítmicas do rum (tambor mais grave, solista) e elementos extra sonoros serão enfatizadas. O intenso ambiente dialógico composto por tais variações juntamente às letras das cantigas entonadas e os movimentos coreográficos dos Orixás, ratifica e importância da música, em especial a música instrumental, neste domínio. Outro item a ser destacado, será a conjuntura rítmica e sua organização: o repertório rítmico do quarteto pode ser agrupado a partir dos diferentes ritmos, conhecidos por toques. Cada toque compreende um determinado espectro rítmico, composto de repertório específico, dedicado a determinado(s) Orixá(s). Desse modo, o papel do rum corrobora sua relevância: as atividades deste instrumento compreendem uns dos principais fatores de identificação e diferenciação de cada toque. Portanto, interpretar tais atividades é essencial para o entendimento da música do Candomblé; sendo a música um elemento central do referido contexto religioso, a investigação dos aspectos sonoros aqui mencionados, combinados a outros artifícios etnográficos, é essencial para a pesquisa do referido fato musical. Para finalizar, diante do exposto, serão apresentados alguns exemplos os quais constituem contribuições da transcrição musical ocidental como recurso analítico e interpretativo, para o desenvolvimento da antropologia musical neste âmbito. Tais exemplos e suas contribuições, serão comparados a outros empreendimentos vinculados ao campo em questão, os quais a transcrição musical forneceu interessantes contribuições para o fazer etnográfico.
Rodas de Mulheres: A nova geografia feminina de presença e fazeres musicais em rodas de choro e samba.
Autoria: Julia Santos Cossermelli de Andrade (UERJ - Universidade do Estado do Rio de Janeiro)
Autoria: O papel da mulher no choro e no samba é um assunto delicado. Se por um lado o samba carioca nasceu com as Tias Baianas - como a Tia Ciata - a presença feminina é muitas vezes restrita ao papel de “musa inspiradora”. Se foram fartamente cantadas em versos e prosas, poucas vezes essas mulheres ocuparam as cadeiras de instrumentistas, de compositoras ou mesmo de interpretes nas rodas. Elas existiram, sabemos, desde o final do século XIX com nomes como o de Chiquinha Gonzaga, Tia Amélia, Ludovina Villas-Boas, Lina Pesce e mais recentemente de Luciana Rabello. No samba também podemos lembrar de Dona Ivone Lara, Clementina de Jesus, Cristina Buarque e ou Tereza Cristina. Porém essa presença, além de inferior numericamente, foi sempre a custa de muito preconceito e constrangimentos, como todas relatam fartamente. Contudo a presença feminina nas rodas de choro e de samba vem aumentando nos últimos anos. Estamos presenciando, inclusive, grupos exclusivamente composto por mulheres que ganham espaço em várias partes do país como o Regional de Brasília chamado Segura Elas, o Abre a roda, Mulheres no Choro de Belo Horizonte, o Samba Delas daqui do Rio ao lado do já antigo grupo Choronas que atua desde a década de 1990 entre muitos outros. Nossa pesquisa visa apresentar esse circuito feminino presente em rodas que vem ganhando espaço pelo Brasil. Ao ponto de em 2019 o II Encontro Nacional de mulheres na Roda de Samba ter sido transmitido 23 localidades simultaneamente. Uma das suas organizadoras, Camille Siston, busca fazer do que chamou de “desinvisibilidade” pois, declara: “Eu nem chamo de preconceito, existe discriminação, distanciamento. Foi dada uma definição de lugar para o homem, e alí eles se acham os donos da bola. Só eles são bons. Só o homem pode tocar bem pandeiro, cavaco, violão”. Ou seja, esse movimento feminista, mais do que uma festa é entendido, pelas próprias instrumentistas, como um ato político e cultural que visa ocupar esse espaço tradicionalmente dominado por homens. Mapear esse movimento através de uma etnografia deste fazer musical é o nosso desafio proposto aqui.
Etnomusicologia e a construção da música erudita na Amazônia: relatando um recital de orquestra no Theatro da Paz
Autoria: Murilo Silva de Azevedo (UFPA - Universidade Federal do Pará), Rebeca Oliveira da Silva
Autoria: No século XIX, ocorre o movimento da Belle Époque, com o berço em Paris. Esse movimento repercutiu na estética comportamental e artística em Belém. O compositor, Carlos Gomes, colaborou para adaptar a imagem indígena, tornando-o mais agradável ao público de fora. A cidade das mangueiras, com a crescente economia da borracha, necessitava de um centro de atrações para a difusão cultural francesa. Em 15 de fevereiro de 1878 é fundado o Theatro da Paz. Iniciando o século XX, o teatro sofreu algumas reformas em sua frontaria para fins decorativos e de representações das artes cênicas, e hoje é considerado um dos mais luxuosos do Brasil. O objetivo dessa breve etnografia é o de atentar-se especialmente para a relação das pessoas com a estrutura histórica do Teatro, refletindo sobre o lazer como algo além do entretenimento. Em 31 de outubro de 2019, fazendo parte do calendário do evento gratuito “XVIII Festival de Ópera no Theatro da Paz”, estivemos presentes a fim de compreender um pouco desse universo erudito. Com uma forte divulgação pela internet, o evento contou com quase 900 lugares ocupados, a capacidade máxima do lugar, incluindo pessoas de todas as idades, cores e trajados de maneira formal ou não. O teatro está localizado no centro da cidade e teve, em sua maioria, pessoas que residem em torno dessa região, provavelmente devido ao horário da noite em que o evento foi marcado. A ambientação do hall aos corredores até o salão de espetáculo é composta desde objetos importados diretamente da Europa a bustos homenageando alguns representantes do movimento indianista como José de Alencar e Gonçalves Dias, da literatura, e uma estátua de Carlos Gomes, da música. De forma perceptível, o salão de espetáculo é impactante: o teto em afresco, a ornamentação do camarote oferecido para as elites na época, os vários relevos de assentos em que se pode assistir à apresentação da orquestra, dentre outras peculiaridades. A duração total da observação levou em torno de 2h, e consistiu em um recital de orquestra, composto em sua maioria por homens, sendo o auge a performance de O Guarani. Logo, através das observações feitas, pôde-se notar que o espaço ainda permanece atraente, pós período imperialista e industrial, e levando em consideração a proposta de promover o acesso à cultura de acordo com o artigo 215 da constituição. Alan P. Merriam, etnomusicólogo e pertencente da escola americana de Franz Boas, menciona que o estudo da teoria musical nativa é a própria cultura. Assim, é possível apontar a diversidade multicultural que edificou o teatro na composição da sua história como agente que continua valorizando a relação da mestiçagem brasileira.