GT 21. Buscando a vida em paisagens incertas

Coordenador(es):
Federico Neiburg (UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro)
Thomas Jacques Cortado (Unicamp)

Sessão 1
Debatedor/a: Thomas Jacques Cortado (Unicamp)

Sessão 2
Debatedor/a: Rodrigo Charafeddine Bulamah (UNIFESP - Universidade Federal de São Paulo)

Sessão 3
Debatedor/a: Federico Neiburg (UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro)

Nos últimos anos, a antropologia tem se engajado em uma crítica etnográfica ao conceito de vida, questionando binarismos que opõem vidas biológicas e vidas biográficas, naturais e sociais, os universos da vida e da morte, das vidas humanas e mais-que-humanas. Esses questionamentos ganham urgência diante de processos contemporâneos como a dessalarização do trabalho, a precarização do emprego, a carestia, as crises ambientais, o deslocamento de populações, colocando em jogo os conceitos de sobrevivência e de vida plena, de sorte, destino e força que informam as diferentes formas de se virar na vida. Interessa-nos enriquecer essa crítica de forma comparativa, aproximando contextos globais nos quais pessoas e coletivos buscam suas vidas (se viram, hacen sus vidas, make their living, chache lavi) em quadros de agudas mudanças que embaralham dimensões políticas, econômicas e ambientais. Buscamos assim revisar o próprio conceito de incerteza, retomando questões clássicas como as relações entre estrutura e conjuntura ou entre ordinário e extraordinário. Inspirados pelo tema do congresso, pensando não só saberes, mas também práticas insubmissas, convidamos a refletir de que forma as paisagens incertas envolvem perturbações nas perspectivas temporais, enquanto estados passageiros ou permanentes, compondo espaços de experiência ou horizontes de expectativas, interagindo com as relações entre gerações, mobilizando metáforas e analogias ou produzindo novos conceitos e formas associativas.

Palavras chave: vida; incerteza; etnografia
Resumos submetidos
A busca pelo direito à saúde no avançar da crise: precariedade e incerteza na gestão de litígios de saúde no Rio de Janeiro
Autoria: Lucas de Magalhães Freire (FGV)
Autoria: Em dezembro de 2015, o Governo estadual decretou “estado de emergência” na saúde pública devido à grave crise financeira que atingia o país, em especial o estado do Rio de Janeiro. Poucos meses depois, em meados de 2016, foi decretado o estado de “calamidade pública” nas finanças estaduais. Desde então, uma série de medidas de austeridade e projetos de reorganização de serviços públicos de saúde foram propostos por gestores dos âmbitos municipal, estadual e federal como soluções para a “crise fiscal”. Dentre os diferentes planos anunciados, houve, por exemplo, a reformulação dos critérios de acesso ao programa Farmácia Popular, responsável por subsidiar o preço de determinados medicamentos para que a parcela mais pobre da população tenha acesso a tratamentos de qualidade. Em um cenário como esse, o fenômeno da “judicialização da saúde” altera-se radicalmente tanto em termos quantitativos, pois há um aumento acelerado do número de novos processos; quanto qualitativos, uma vez que há sensíveis mudanças no perfil dos demandantes, bem como das demandas apresentadas aos Tribunais de Justiça no que diz respeito ao direito à saúde. A partir das histórias de pessoas que pude acompanhar durante uma etnografia realizada em órgão público chamado Câmara de Resolução de Litígios de Saúde (CRLS) ao longo do ano de 2017, discuto de que maneira o recurso ao Judiciário e aos meios extrajudiciais de mediação institucional se configuram enquanto modos de tentar contornar os efeitos dessa “crise” e da precariedade originada por tais políticas de austeridade. Isto é, busco descrever como se dá “clamor por justiça” diante de incertezas, esperas intermináveis e precariedade material experimentados nas unidades públicas de saúde. Assim, pretendo abordar como os sujeitos recorrem ao que muitas vezes é nomeado por “Justiça” para garantir o seu “direito à saúde” em um contexto marcado por distintos tipos de escassez: de medicamentos, de profissionais, de materiais esterilizados, de equipamentos para a realização de exames, entre outros.
Casas de “tomar conta”. A produção coletiva da vida feita nas margens do Estado
Autoria: Camila Fernandes (UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro)
Autoria: As casas de “tomar conta” são espaços comuns nas favelas e bairros periféricos da cidade do Rio de Janeiro, Brasil. Trata-se de lugares nos quais mulheres moradoras da vizinhança cuidam de crianças em suas próprias residências a partir da oferta de um serviço remunerado. Em geral, essa prática é considerada como um modelo alternativo aos serviços de Estado. Entretanto, o termo “informal” evoca um sentido de imprecisão e tende a obliterar a presença contínua dessas práticas na longa duração histórica. Ao mesmo tempo, a informalidade dessas atividades faz sentido diante das tentativas de regulamentação pelo poder público em diversos momentos ao longo das últimas décadas. Nessa apresentação, analiso o work de cuidado realizado pelas donas da casa, buscando tensionar a aparente informalidade destas práticas em coexistência com o poder estatal. Discuto as diferentes modalidades de guarda de crianças, a negociação acerca dos valores econômicos e os principais dilemas morais que as mulheres vivenciam. As casas se situam nas margens do Estado, entendidas não como falência do poder público, mas como territórios de produção da vulnerabilidade. Neste percurso, procuro pensar nas dinâmicas de gênero, geração e racialização entrecruzadas a partir deste espaço de produção de mobilidades. Ao final, veremos como as casas são lugares coletivos de sustentação da vida ao longo de gerações de pessoas.
Economia, melancolia e arranjos da vida nas ruínas do açúcar (Matanzas, Cuba)
Autoria: Carlos Gomes de Castro (Nenhuma)
Autoria: Desde princípios dos anos 1990, os dados estatísticos quantificam o crescente déficit de eficiência da economia açucareira cubana. Abraçada por tal decadência, a província de Matanzas deixou de ser área de notáveis trapiches, engenhos e centrais para revelar-se como uma zona de desmantelamentos onde se experimenta uma silenciosa moenda. A apresentação olha para esse cenário de detritos do passado no presente, marcado por espaços afetivos e objetos melancólicos que falam da vida e sua difícil experiência de feitura. Os decrescimentos dos índices produtivos, quando vistos etnograficamente, dão sinais da ação do processo de corrosão que altera não só indústrias, mas também os sujeitos que temporizam a vida a partir da relação entre “safra” e “tempo morto”. Considerando isso, baseado em uma etnografia de longa-duração com moradores de bateyes (comunidades açucareiras), o objetivo do paper é descrever e analisar como o processo de reestruturação da indústria açucareira cubana foi avaliado e conformado pelas pessoas que foram e são afetadas por ele. Na esteira de estudos antropológicos e geográficos contemporâneos sobre ruínas, a análise não toma o arruinamento como algo que estanca a dinâmica da vida, como se produzisse, em função dos desgastes, vazios sociais amorfos. Tenta-se demonstrar como, nos bateyes, são engendradas maneiras de fazer do desmantelamento das usinas matérias que mantêm o movimento e reabilitam necessidades, reajustando a vida via des-construções. Observar esse espaço-tempo do açúcar possibilita compreender as ansiedades, espacialidades e temporalidades que estão em jogo nas experiências pessoais de falência das usinas e, em consequência, dos bateyes. O roteiro analítico-descritivo modula a escala entre fatos históricos e políticos mais amplos e eventos corriqueiros (e críticos) de diversas práticas da vida cotidiana: um entre que, às vezes, se transforma em mescla, isto porque, em seus relatos, as pessoas misturam, com ressignificações e reapropriações, macro e micro eventos para explicitar as cicatrizes de passados, conflitos e negociações que foram e são nelas deixadas.
ESTRATÉGIAS DO NÃO MORRER EM PAISAGENS INCERTAS: práticas para viver em garimpos ilegais de ouro ou para pesquisar garimpeiros diante do risco da malária na região transfronteiriça guyano-amapaense
Autoria: Rejane Valvano Corrêa da Silva (UFMA - Universidade Federal do Maranhão)
Autoria: A região em torno da fronteira Amapá-Guiana Francesa tem fluxo de pessoas, remédios, doenças, animais, dinheiros. Alguns são moradores mais estáveis da região, outros chegam já pensando em sair. A exploração de ouro acontece de maneira (in)formal e um dos desafios à vida encontrados pelos humanos é a malária, doença infecciosa, causada por protozoários parasitários, transmitida pela picada do mosquito Anopheles, que pode levar à morte. A procriação dos Anopheles é ideal numa região com muitos rios e com o desmatamento, é favorecida. Do ponto de vista biomédico, para o tratamento da malária ser eficaz é preciso tomar a medicação por vários dias. Na prática, muitos maláricos não levam o tratamento até o fim. Além disso, é possível demorar até 6 meses para apresentar os sintomas da doença. Vários agentes sociais que se deslocam para essa fronteira a fim de trabalharem nesses garimpos, vêm do Maranhão. Como circulam bastante, acontece de apresentarem a doença quando retornam àquele Estado. Penso essa região transfronteiriça como um “não lugar” (M. Augé), posto que a mineração em campos ilegais não pode durar muito tempo a fim de fugirem dos fiscais sendo assim um “lugar de passagem”. Os mineradores buscam ganhar a vida arriscando-se e desafiando as incertezas, normalizando “quase eventos” e tendo energia para reverter infortúnios (V. Das), passam a fazer parte dessa paisagem, cujo ouro surgiu ao longo de todo um processo de anos, e os mosquitos habitam e são agentes (T. Ingold). Os que saem do Maranhão com expectativas de ganhar dinheiro vendendo ouro e voltar para casa vivo, tem a “certeza” de que conseguirão algo melhor do que ficar parado em casa. A partir do que vivenciam nesses “não lugares” alguns desistem da mineração e optam por outros works. Assim, interessa-me analisar as diferentes formas de vida vividas nesses “não lugares”, focando nas escolhas. Estou dividindo os agentes sociais estudados nesta pesquisa em dois perfis: a) os mineradores ilegais, geralmente muito precarizados, que vivem na ilegalidade e na insubmissão aos outros; b) os pesquisadores universitários que exercem seu work legalmente, em melhores condições, e escolhem pesquisar em (não) lugares onde a malária é uma das incertezas. Ambos interagem nesta paisagem, assim como o ouro e os mosquitos. Para realizar a pesquisa, que ainda está em andamento, foram feitas conversas informais através de entrevistas semi-estruturadas com pesquisadores locais realizadas por mim em março de 2019 e análise da dados produzidos por terceiros. Para obtenção dos dados destes, foram analisados textos acadêmicos publicados entre 2000 e 2019 na área de ciências biológicas e sociais com works de campo realizados em postos de saúde ou em cidades nessa região transfronteiriça.
Genealogia e contracolonialidade: estudos sobre biopolítica e as políticas fundiárias voltadas para comunidades tradicionais no sudeste do Piauí.
Autoria: Bernardo Curvelano Freire (UNIVASF - Fundação Universidade Federal do Vale do São Francisco)
Autoria: A caatinga carrega consigo as marcas da incerteza. Nunca se sabe se o inverno trará chuva, se a chuva será suficiente, se ela cairá no momento certo e mesmo se choverá nas cidades ou se a graça escolherá o interior, povoado por roças. As mudanças nos regimes de estiagem, que atingiram marcas inéditas entre os anos de 2006 e 2016, no entanto, não são as únicas marcas da incerteza que atingem as comunidades rurais no sudeste do Piauí, sejam elas quilombolas ou não. As políticas fundiárias e prática correlatas, como as políticas de acesso a crédito rural, de transporte coletivo e do ensino público, que mudam profundamente a cada nova gestão municipal, ao sabor da disputa entre grupos políticos, vem produzindo novas fissuras na relação com o futuro na medida em que grandes empreendimentos de mineração e de energia eólica/solar consolidam sua atuação na região, alterando a correlação de forças na elaboração de políticas públicas para o interior. Ironicamente, a consolidação da atuação na região coincide com os últimos anos a pior estiagem registrada na região até o momento. Com isso em vista, a presente comunicação busca apresentar reflexões a partir de pesquisas de campo desenvolvidas em um projeto de extensão, o Fórum Permanente de Cartografia Quilombola, que registra o momento em que novas políticas de Estado - de interesse estratégico do atual governo piauiense -, começam a se fazer presentes na região, produzindo novas formas de incerteza ambiental, jurídica e econômica, criando uma cadeia de impactos e formalizando novas formas de urgência e desespero com relação à terra e à vida. Com base em works de cartografia do conflito realizados principalmente no território do Quilombo Lagoas (119 comunidades em mais de 62 ha), mas refletindo uma rede constituinte de territórios tradicionais do sudeste do Piauí (semiárido piauiense), a presente comunicação busca amparo em alguns procedimentos genealógicos para reconstituir as linhas de força preponderantes da produção de políticas fundiárias no Piauí e a busca de fazer da atual lei fundiária do estado em uma forma de planificação da vida produzida a partir de um centro irradiador de poder. Ao mesmo tempo, tendo como base as reflexões de Antonio Bispo dos Santos (2019), nosso vizinho de São João do Piauí, busco compreender como o debate sobre a contracolonialiade, uma proposição criada no seio das tensões locais, oferece uma perspectiva fértil de compreender as políticas da vida a partir de práticas coletivas de biointeração, uma forma de compreender o território como uma prática de hospitalidade ao invés de uma peça no planejamento econômico. Desta forma, se faz possível apresentar uma espécie de introdução às políticas da vida no semiárido piauiense a partir dos conflitos imanentes à sua condição local.
Na beira da Ribanceira: a vida entre gentes e águas no Vale do Alto-Médio São Francisco
Autoria: Luiz Felipe Rocha Benites (UFRRJ - Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro)
Autoria: Este paper visa refletir sobre a imbricação recíproca entre pessoas e águas, nos seus fluxos pluviais e fluviais, em um contexto de mudanças climáticas e degradação ambiental crescente. Tal reflexão possui um caráter preliminar, pois deriva de uma pesquisa etnográfica em andamento em uma comunidade negra rural e ribeirinha chamada Ribanceira. Esta comunidade se situa no município de São Romão, na porção norte-mineira do Vale do Rio São Francisco. Nesta comunicação busco compreender alguns modos de análise nativos das relações socioambientais, tendo como foco o lugar que a água ocupa na socialidade ribeirinha. Diante do exposto, tento estabelecer algumas conexões de sentido entre as ideias nativas acerca dos movimentos do Rio São Francisco, tais como "encher", "vazar", "ter corrida", ou estar "parado", e os movimentos da vida dos próprios ribeirinhos. De um passado narrado pela abundância para um presente permeado por incertezas que se objetificam em um rio sem "corrida" e sem peixe, os habitantes da Ribanceira vão tecendo os fios que compõem o significado da vida nas margens do São Francisco.
Na iminência da catástrofe: o possível rompimento de barragem e a “lama invisível” de Barão de Cocais (MG)
Autoria: Bianca van Steen Mello Laurino (PPGAS/USP)
Autoria: Este work tem como objetivo compartilhar algumas reflexões acerca da situação em que se encontra a população de Barão de Cocais (MG), contribuindo para a compreensão de como os moradores deste município têm lidado com a probabilidade de rompimento de uma barragem de rejeitos de mineração, a Sul Superior, controlada pela multinacional Vale S/A. Apesar de a catástrofe ainda não ter se efetivado, sua possibilidade, por si só, já afeta a região em diferentes dimensões, principalmente em relação a aspectos econômicos, espaciais e temporais, bem como a maneira pela qual são percebidos. Estas alterações não só impõem que o cotidiano local se reorganize, na passagem de uma realidade estável para outra instável, como também exige a criação de novas estratégias para viver – e sobreviver. A tentativa de entender como a vida local tem sido atingida será pensada a partir do contexto trágico de “desastres” no qual se insere o Brasil, marcado pela recorrência de rompimentos de barragens. Como se não bastasse o episódio de Mariana (MG), em novembro de 2015, o rompimento de Brumadinho (MG), no início de 2019, destacou o Brasil, mais uma vez, como epicentro de crises socioambientais. Evidências demonstram tratar-se de tragédias prenunciadas, uma vez que se sabia dos riscos de rompimento. Embora parte das consequências provocadas por estes eventos tenha expressão imediata, muitos danos ainda estão sendo sentidos e registrados, material ou imaterialmente. A partir deste quadro, o debate público tomou conhecimento de que diversas outras barragens encontram-se em situação de risco. Por isso, a Vale passou a criar planos de desativação de barragens, principalmente daquelas construídas pelo método de alteamento a montante. Entre elas, encontra-se a barragem da Mina Gongo Soco, localizada em Barão de Cocais. Desde março de 2019, a população deste município vive diante do perigo de possível rompimento. Por conta de movimentações muito acima do esperado em sua estrutura, a Agência Nacional de Mineração interditou a barragem e declarou estado de alerta máximo de risco de acidentes. Há mais de um ano, então, moradores de Barão vivem com a presença do fantasma do rompimento, à espera da tragédia. Com o provável caminho da lama calculado, centenas de pessoas foram compulsoriamente retiradas de suas casas. Nas palavras de uma dessas moradoras, a região já foi atingida pela “lama invisível”. No interior desta paisagem incerta, percepções sobre medo, espera e a própria noção de incerteza se alteram à medida que o tempo passa. Se por um lado muitas vidas, humanas e não humanas, foram colocadas em suspensão; por outro, a espera de algo que pode nunca vir a acontecer, mas que de certa forma também já aconteceu, embaralha a maneira pela qual passado, presente e futuro são percebidos.
Não ser monstro. Viver e sobreviver para mulheres atacadas com agentes químicos
Autoria: María Elvira Díaz Benítez (PPGAS Museu Nacional)
Autoria: Em 2012 as notícias de jornal diziam que a Colômbia era o país com a maior incidência de ataques com ácido no mundo. As vítimas, majoritariamente mulheres. A identidade dos algozes oscilava entre o companheiro sentimental, o ex-companheiro, um pretendente que fracassou em sua tentativa de conquista, um homem apaixonado e obcecado com uma mulher à qual nunca se aproximou, ou um desconhecido. Os desconhecidos abriam a suspeita de serem pessoas contratadas para realizar o ataque por um ex-companheiro ou por um homem obcecado. Em 2016 foi assinada a Lei Natalia Ponce de León que daria um enquadramento legal específico e penas de 15 a 50 anos para quem cometesse aquilo que a partir desse momento seria um crime. Análises realizadas pelo Ministério de Saúde em Bogotá e pela Secretaria Especial da Mulher, parecem indicar que devido a essa Lei, um forte work midiático, a configuração de um protocolo de atendimento jurídico e médico para pessoas recém atacadas, entre outras políticas públicas, houve uma diminuição palpável desses eventos no país ao ponto de abandonar a cabeceira das estadísticas no mundo. Mais ainda, levaram a que mulheres que tinham sofrido o ataque anos atrás, pudessem começar a rotina médica de reconstrução de seus rostos e de outras partes do corpo atingidos pelo agente químico. Este work apresenta as primeiras impressões de uma pesquisa iniciada em 2019 junto a mulheres que sofreram esse ataque, junto a cirurgiões, psicólogos e terapeutas que as atendem e junto a alguns agentes do Estado. Logo de entrada no meu work de campo, fui advertida por uma delas: “nós não somos vítimas, somos sobreviventes”. Outra mulher me disse: “mais do que sobrevivente, eu gosto de me chamar de resiliente”. Focarei, assim, nos atos que tem levado à reconfiguração de seus cotidianos em um mundo no qual o ácido tem a capacidade de “fazer monstros”. O que é fazer a vida para quem não deseja enxergar seu próprio rosto? Sobrevivência e resiliência nos informarão sobre esses modos e atos de habitar o mundo.
Uma exploração etnográfica do conceito de lavi no Haiti
Autoria: Felipe Evangelista Andrade Silva (ibram)
Autoria: No Haiti, “buscar a vida” [chache lavi] é uma expressão à qual se recorre com frequência, assim como é recorrente sua evocação em textos acadêmicos e jornalísticos estrangeiros, onde a tradução de “lavi” por “vida” sugere uma operação fácil, automática. Tratada como um dado e não como um conceito, a “vida” aparece como uma ideia autoevidente, como se significasse apenas o intervalo entre o nascimento e a morte. Argumento que a ideia de vida está suficientemente sujeita a modulações específicas para merecer uma descrição etnográfica mais cuidadosa. Com base em uma pesquisa de longa duração na região central do Haiti, descreverei um entendimento da “vida” que reconhece gradações, diferenças de intensidade, que assume que os vivos experimentam situações em que gozam de “mais vida” ou “menos vida”, bem como há situações em que, embora ninguém tenha morrido, “não tem vida”. Como objeto declarado de uma busca incessante, a “vida” condensa uma série de atributos através dos quais as pessoas formulam e negociam horizontes de expectativas e plataformas de desejos, que abrangem desde as condições econômicas e os estados físicos do corpo humano até a qualidade das relações interpessoais e as relações entre seres humanos e seres/forças transcendentes.
Vivendo com um “estuprador”: sentimentos conflitantes, experiências ambivalentes.
Autoria: Everton Rangel Amorim (aluno)
Autoria: Nesta apresentação, descreverei a normatividade das relações de gênero, descendo as normas a um plano ordinário (DAS, 2007), buscando enxergar o que acontece ali onde um criminoso sexual – em regime condicional ou "já" em liberdade – é também um filho em quem se confia, que tanto se ama e tanto irrita. Foi olhando para as mulheres que me vi obrigado a refletir sobre o que é ter um estuprador na família, isto é, sobre o que é conviver com alguém que a Justiça afirma ter praticado algum crime sexual. Em After Kinship, Carsten (2004) argumenta que uma resposta para a pergunta “o que é ser parente?” depende de uma ênfase nas emoções, nas práticas morais e no gênero, muito negligenciada pelos estudos clássicos. Até certo ponto, tal como a autora, invisto em uma análise do parentesco/relatedness a partir das experiências cotidianas e sem divorciá-las dos processos políticos, isto é, sem deixar de lado a análise da presença do Estado nas famílias ou, de maneira ampla, nas relações de proximidade. Posso dizer que a minha preocupação com o Estado é uma preocupação com a condenação, mais detidamente com o efeito da verdade jurídica no interior do que chamarei de tecidos relacionais. Utilizando a pergunta de Carsten como parâmetro, a minha seria: o que implica levar a vida com “estupradores” para as mulheres que com eles compartem laços afetivos, partilham os dias e trabalham para tornar essa vida viável? O meu objetivo é o de refletir sobre a “vida ordinária”, preocupando-me com as experiências ambivalentes dos meus interlocutores: tentativas de perdão que provocam o reviver do estupro, amores que dilaceravam, práticas de cuidado que irritavam, regozijos provocados pela prática da humilhação, sentimentos de confiança pesados demais para manterem-se integralmente firmes, ideais de masculinidade perseguidos e frustrados, etc. Deslocando a preocupação de Mahmood com ética da virtude, diria que me interesso pelas condutas que, mesmo quando falham em serem virtuosas, alcançam algum sucesso – mais limitado que o pretendido e, por isso mesmo, produtor de frustração. A minha aposta é a de que as ambivalências que caracterizam as experiências, as relações e, de modo mais amplo a vida ordinária, se bem descritas, podem nos auxiliar a não encapsular a sinuosidade do cotidiano em modelos analíticos sistêmicos e, por isso, previsíveis demais no que se refere à análise do comportamento, do hábito ou dos atos. Aposto, sobretudo, na possibilidade das ambivalências nos fazerem enxergar a normatividade dos nossos projetos emancipatórios, mais precisamente das nossas formas de imaginar vidas melhores para aqueles com os quais vivemos e/ou lidamos. No limite, interesso-me em discutir a seguinte pergunta: "pode-se levar uma vida boa em uma vida ruim?” (Butler, 2018).
“Crise” e “sufocamento” em processos de domesticação e refazimento de formas de vida
Autoria: Daniela Ramos Petti (PPGAS/UFRJ)
Autoria: Como se habita a vida após um processo de desmantelamento de suas próprias formas? Como a dimensão extraordinária da vida penetra o cotidiano intensificando a incognoscibilidade constitutiva do estar vivo? Essas são algumas das questões que emergem de minha pesquisa junto a famílias que refazem suas vidas após processos de remoção de favelas. A partir de um ponto de vista etnográfico, busco realizar uma reflexão sobre as estratégias econômicas, temporalidades, narrativas e projetos de futuro que emergem no contínuo processo de fazer a vida em um contexto marcado por camadas de incerteza decorrente da “crise” e do “sufocamento” econômicos. Enquanto categorias nativas, “crise” e “sufocamento” constituem um idioma possível para se narrar os impactos da dúvida e da incerteza sobre a vida cotidiana. Tomo os processos de remoção de favelas como processos de domesticação, em seu duplo caráter, tanto disciplinar-civilizatório, como de reconfiguração do doméstico, com o objetivo de chamar atenção para a multiplicidade de sentidos assumidos por determinadas formas de vida. Ancoradas na linguagem, as formas de vida, para Veena Das, abarcam não apenas uma dimensão de segurança em decorrência do pertencimento à determinada comunidade, como também dizem respeito aos perigos que os seres humanos oferecem uns aos outros no curso das disputas em torno do que constitui a vida. Processos de domesticação envolvem disputas em torno do que seja a vida, que se materializam no desmantelamento de suas formas e nas novas linhas de transformação (becomings) que se abrem em meio às relações entre o real e o possível - imaginação sobre uma vida futura possível. Analiso no texto as relações entre casa e work, entre “pagar as contas” e “fazer dinheiro”, entendendo-as como dimensões inseparáveis, partes de um mesmo e único processo de estar vivo. Ao se misturarem no tecer das narrativas sobre si e sobre o futuro , a sensação de “sufocamento” econômico e as percepções sobre a “crise”suscitam o desenvolvimento de inúmeras estratégias cotidianas que visam mitigar os efeitos da incerteza. Os projetos de futuro dos sujeitos, que atestam as múltiplas temporalidades que constituem o cotidiano, aparecem em expressões como “melhorar de vida”, “dar uma vida boa pros filhos”. Partindo do argumento de Das de que a vida cotidiana não pode ser tomada como dada, ou como um objeto a ser apreendido, navego entre as práticas de se ganhar a vida (trabalhar) e se manter a casa (cuidar da família) de um lado, e as formas de se imaginar uma vida possível, de outro, dimensões que compõem o contínuo processo de se fazer a vida.
“Ele comeu tudo”: a circulação de óleo de palma, dinheiro e vida na floresta do Mayombe (RDC)
Autoria: Rosa Cavalcanti Ribas Vieira (UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro)
Autoria: Baseado em material coletado em work de campo, este artigo analisa a circulação de galões de óleo de palma e dinheiro em um vilarejo na floresta do Mayombe (República Democrática do Congo) para discutir um universo moral que define maneiras mais (ou menos) aceitas de se comportar. Descrevo o ato de “comer dinheiro” [kudyá zimbóóngó], muito comum nas trocas de galão, sugerindo que ele contraria um “saber viver” [záába ziínga] com e nas pessoas. Neste contexto etnográfico, o conceito de vida é mobilizado enquanto um conhecimento referente à maneira adequada de se comportar com as pessoas de modo a preservar as relações e a continuidade das trocas. O óleo de palma é a principal fonte de renda do vilarejo. Embora o corte e a coleta dos grãos da palmeira compreendam a combinação de atividades masculinas e femininas, os homens que são encarregados de elaborar o óleo em máquinas artesanais situadas na floresta. Eles posteriormente gerem os destinos dos galões, que servem para pagar as comerciantes da cidade. Trata-se de um esquema padronizado de dívida e empréstimo. A única maneira de se obter uma quantia elevada de dinheiro no vilarejo é pegando dinheiro emprestado com comerciantes da cidade, que depois é pago em forma de galões de óleo de palma. Neste contato com a cidade, os galões se transformam em dinheiro. Mas dentro do vilarejo eles funcionam também como dinheiro, sendo usados para pagar escola, hospital, aluguel de terras. Os laços de dívidas que conectam as pessoas passam, assim, pela circulação de galões. Os conflitos surgem quando alguém “come dinheiro” do outro, prejudicando-o. A expressão “comer dinheiro” tem um sentido negativo quando é utilizada acompanhada de um gesto que remete a acabar com algo em circulação. No caso do dinheiro, trata-se de um dinheiro que não retornará mais para aquele que o emprestou. Se, por um lado, o dinheiro para esta pessoa “acaba”, por outro lado, seria possível dizer que tal ato “acaba” também com uma relação de troca. Comer dinheiro do outro fere certo “saber viver” [záába ziínga] com os outros e nos outros, que diz respeito, inversamente, à necessidade de alimentar continuamente as relações. O artigo coloca em questão a distinção vida biológica/vida social à medida que problematiza a compreensão biológica e ocidental do ato de comer, entendido como mastigação e a deglutição de uma substância por um organismo. Busco recuperar debates antropológicos sobre dádiva e pessoa para discutir como o estatuto das coisas, enquanto coisas que “acabam”, está vinculado aos efeitos que suas “ingestões” geram nas relações e na composição da pessoa.