GT 05. Antropologia da Biomedicina

Coordenador(es): 
Jaqueline Teresinha Ferreira (Instituto de Estudos em Saúde coletiva)
Ednalva Maciel Neves (PPGA/UFPB)

Sessão 1 - Biosaberes e biopolíticas
Debatedor/a:
Débora Allebrandt (UFAL - Universidade Federal de Alagoas)

Sessão 2 - Adoecimentos, sistemas e cuidados em saúde
Debatedor/a:
Cíntia Liara Engel (UnB)

Sessão 3 - Narrativas de parto, violência obstétrica e outras afetações
Debatedor/a: Jane Araújo Russo (UERJ - Universidade do Estado do Rio de Janeiro)

Este Grupo de Trabalho dá continuidade ao diálogo iniciado na III Reunião de Antropologia da Saúde, realizada em Natal/2019, desvelando uma experiência rica de pesquisadores brasileiros que apresentaram etnografias com temas instigantes calcadas em técnicas de pesquisa já consagradas e /ou inusitadas e questões reflexivas de pesquisa. Assim, a proposta é ampliar e aprofundar essa discussão a partir de trabalhos etnográficos sobre a medicina ocidental, a biomedicina, como campo de investigação, envolvendo a produção de conhecimento e tecnologias biomédicas, assim como seus efeitos na experiência coletiva e pessoal. Desta forma, o enfoque é sobre a complexa trama contemporânea do bio: mercados, tecnológicas, interpretações, apropriação de saberes e práticas, direitos e ativismos. Dentre as reflexões, pensamos em dialogar acerca: construção do saber profissional sobre o corpo, definições sobre saúde e doença, questões éticas relacionadas às biotecnologias, cuidado humanizado, comportamentos dos/das pacientes em relação à busca de diagnósticos (testes genéticos, diagnósticos por imagens) e tratamentos (tecnologias reprodutivas, cuidados paliativos) relação médico/a-paciente e diálogos com outras racionalidades terapêuticas. Igualmente contamos com os aspectos políticos, econômicos e éticos que podem animar esses debates.

Palavras chave: Biomedicina; etnografias; tecnologias científicas
Resumos submetidos
"Grávidas e bebês no fogo cruzado": sobre os usos e desusos do conceito Violência Obstétrica
Autoria: Jaqueline Teresinha Ferreira (Instituto de Estudos em Saúde coletiva)
Autoria: A expressão Violência Obstétrica é fruto dos movimentos das mulheres a partir de 2007, embora esse tema esteja desde as décadas de 1980 a 1990 no âmbito das discussões em prol da humanização do parto. Antes as agressões e intervenções desumanizadoras durante o parto se classificavam no âmbito de "violência institucional". Na literatura acadêmica também não se encontra uma definição única para a violência obstétrica. Ora ela pode ser definida como violência contra mulheres nas instituições de saúde e discutem em maior detalhe sobre quatro tipos de violência: negligência (omissão do atendimento), violência psicológica (tratamento hostil, ameaças, gritos e humilhação intencional), violência física (negar o alívio da dor quando há indicação técnica) e violência sexual (assédio sexual e estupro), ora como violência psicológica, caracterizada por ironias, ameaça e coerção, assim como a violência física, por meio da manipulação e exposição desnecessária do corpo da mulher, dificultando e tornando desagradável o momento do parto. Inclui-se igualmente condutas como mentir para a paciente quanto a sua condição de saúde para induzir cesariana eletiva ou de não informar a paciente sobre a sua situação de saúde e procedimentos necessários. Assim, as cesáreas ditas "desnecessárias" (salvo as cesáreas à pedido) estão enquadradas no contexto de violência obstétrica. Conceito polêmico e controverso pois implica em acusações em ambos os polos, gerando conflitos na relação médico-paciente, na relação com obstetras e ativistas dos movimentos sociais ilustradas na dicotomia "ideologia x evidências científicas". Desde 2013, mais da metade dos nascimentos no país foram feitos por meio de cesárea. Embora a Organização Mundial de Saúde postule que a cesárea deva ser empregada em índices entre 10 e 15% da totalidade dos nascimentos (Who, 2018). No entanto, os índices no Brasil chegam a 85%, gerando múltiplos debates sobre o tema. O excesso de cesáreas também tem sido apontado como uma das causas do elevado índice de mortalidade materna, o que é fortemente questionado pelos obstetras e pouco tem-se questionado sobre a motivação dos mesmos para tal prática. Este work propõe-se a discutir os consensos e divergências em torno da associação entre o alto índice de cesáreas no Brasil atrelado ao discurso de violência obstétrica. Trata-se de parte de uma investigação mais ampla sobre as representações dos médicos sobre o elevado número de cesáreas no Brasil. Os dados apresentados aqui referem-se à entrevistas, observações de sessões clínicas, análise de documentos e revisão bibliográfica sobre o assunto.
"Parto humanizado não é parto forçado": tensionamentos entre os movimentos contra violência obstétrica e os discursos biomédicos
Autoria: Bruna Fani Duarte Rocha (UFSM - Universidade Federal de Santa Maria), Profa. Dra. Monalisa Dias de Siqueira
Autoria: O presente work faz parte da pesquisa de mestrado em andamento que trata sobre o processo de formação de um movimento social construído por mulheres que se reconhecem vítimas de violência obstétrica – a partir de relatos nas redes sociais e grupos de mobilização - na cidade de Santa Maria, Rio Grande do Sul, tendo se expandido para outras cidades de médio porte, como Pelotas e Rio Grande. Propomos contextualizar o impacto das transformações sociais – como a expansão da medicina e dos hospitais, a relação entre o saber científico e o saber tradicional – na gravidez e no parto. A pesquisa é qualitativa, de caráter etnográfico, e ao analisar relatos de experiência de parto e falas de profissionais de saúde, visa explicitar a relação entre o processo de medicalização do parto e o surgimento de um movimento social contra a violência obstétrica, mostrando os tensionamentos discursivos e as experiências das mulheres no parto.
A espiritualidade em contextos oficiais de atenção à saúde: uma discussão inicial sobre a incorporação do cuidado espiritual na prática clínica em Cuidados Paliativos.
Autoria: Lucía Copelotti (Unicamp)
Autoria: Este work tem por objetivo elaborar algumas reflexões iniciais acerca do modo pelo qual a espiritualidade tem sido estabelecida e legitimada como uma dimensão da atenção em contextos oficiais de saúde no Brasil. Especificamente, interesso-me pela assistência à espiritualidade de pacientes em situações de fim de vida e procuro refletir sobre como se da o emprego dessa categoria no âmbito de uma prática clínica específica, concernente aos Cuidados Paliativos. O meu interesse está centrado na possibilidade de indagar acerca do papel desempenhado pelos agentes de saúde no processo de inclusão da espiritualidade no horizonte assistencial e na produção de formas particulares de conceber, de manipular e administrar o par religião-saúde na clínica. A assistência à espiritualidade da pessoa doente, função tradicionalmente desempenhada por agentes religiosos, vem sendo incorporada cada vez mais por profissionais de diferentes especialidades médicas, e pode ser observada tanto na recorrência da categoria espiritualidade, e sua distinção em relação à religião, quanto na proposição de instrumentos de diagnóstico, como escalas e questionários, utilizados para aferir, por exemplo, o nível de desconforto e sofrimento espiritual do paciente. Assim, diante desse cenário parece pertinente questionar: Como especialistas conjugam a prática biomédica com o cuidado da espiritualidade dos pacientes? Como se constituem os protocolos de atenção à dimensão espiritual da saúde nas rotinas de atendimento em contextos hospitalares? Em que termos é possível estruturar a oferta de cuidados espirituais em instituições oficiais de assistência à saúde? Dado o caráter inicial de minha pesquisa, nesta comunicação minha atenção volta-se à análise dos documentos, protocolos de atendimento, manuais, que regulam a prática clínica em cuidados paliativos e delimitam as estratégias de cuidado e acompanhamento espiritual dos pacientes. Nesse sentido, dialogo com pesquisas que apontam para as transformações na gestão da morte e do morrer decorrentes da crescente inclusão dos Cuidados Paliativos em contextos hospitalares, mas desloco o foco de análise para uma dimensão particular, concernente à promoção do cuidado do espírito como parte da prática profissional da equipe médica, uma dimensão ainda pouco explorada nos estudos de antropologia da saúde.
BioPolíticas para a população negra: anotações sobre a radical exclusão do direito à saúde das pessoas com Doença Falciforme
Autoria: Durvalina Rodrigues Lima de Paula e Silva (FUNCIONÁRIA PUBLICA), Ednalva Maciel Neves
Autoria: Este work traz uma reflexão acerca do debate no campo das políticas públicas, enquanto tecnologias de Estado, para as pessoas com Doença falciforme/DF. Reconhecida geneticamente há mais de 100 anos, a DF continua afetando pessoas em todo o país, embora centrada em alguns estados, atingindo significativamente a população negra. Estudos epidemiológicos afirmam que a DF é doença genética mais frequente no Brasil, resultando em elevados índices de mortalidade na primeira infância e na idade adulta, até 30 anos. As informações epidemiológicas são inexatas e a inclusão do diagnóstico no Teste do Pezinho tem contribuído para a identificação de doentes e pessoas com Traço Falciforme. De modo geral, a luta pelo direito em saúde dos coletivos negros e das Associações de pessoas com anemias hereditárias alcançou um avanço significativo a partir da década de 1990, quando o Ministério da Saúde/MS passa a estabelecer diretrizes e protocolos para a atenção integral a esta população. No atual contexto neoliberal, as políticas de saúde passaram por conversões que manifestam o caráter excludente das “minorias” sociais, incluindo a população negra. Numa leitura documental e histórica sobre políticas voltadas à população negra, enfatizamos as reorientações nas diretrizes/políticas adotadas pelo MS, em particular para as pessoas com DF. Das buscas e resultados, identificamos que os governos de 1990 a 2015 foram permeáveis às demandas do movimento negro e das pessoas com DF, inicialmente ampliando o debate sobre essas questões e posteriormente com a criação de políticas publicas específicas, como a instituição do Grupo de work Interministerial para Valorização da População Negra e do subgrupo Saúde, em 1995 e no ano de 2005 a Portaria GM Nº 1018 de 01/07 que criou, no âmbito do SUS, o Programa Nacional de Atenção Integral as Pessoas com DF e outras Hemoglobinopatias, além dos protocolos clínicos estabelecendo orientações de cuidado ofertado nas unidades de saúde para a pessoa com DF, sobretudo na situação de “crise”. A partir de 2016 observa-se uma alteração no curso dessas políticas, sendo perceptível a mudança no olhar sobre sua especificidade alegando-se, inclusive, o caráter “dispensável” de tais políticas com a reestruturação do próprio MS incidindo em modificações em setores, abordagens e formas de gerenciamento das políticas públicas. Por seu lado, os coletivos negros e a Associação de Pessoas Portadoras de Anemias Falciforme/PB têm reforçado sua luta e denunciado o racismo institucional e o desconhecimento dos profissionais sobre a Doença Falciforme. Num contexto de retirada dos direitos, as políticas de saúde apontam para uma passagem do “deixar viver’ para o “deixar morrer”, em termos foucaultianos, partes da tecnologia de governos neoliberais.
Cuidados na doença de Alzheimer: relações e tensões entre os saberes e suas orientações
Autoria: Renata de Morais Machado (IESC)
Autoria: A doença de Alzheimer (DA) começa a ser considerada e anunciada por especialistas como a “epidemia do século XXI”. O aumento da ocorrência desta patologia é tido como decorrência do envelhecimento da população, o que justifica o aumento do número de diagnósticos de demências. Tal enfermidade configura um cenário potencialmente impactante em relação a aspectos socioeconômicos e emocionais dos atores sociais envolvidos, devido às características sintomáticas e sociais. Por se tratar de doença crônica degenerativa, uma pessoa pode viver por muitos anos a partir deste diagnóstico, com suas funções vitais em progressivo comprometimento. Pesquisadores críticos sobre o tema, como a antropóloga Margaret Lock, afirmam que a DA não tem etiologia definida, não conta com substrato material nem tratamento determinado pela biomedicina, de modo que intervenções orientadas por profissionais de saúde apenas previnem ou retardam sintomas. Diversamente de outras enfermidades crônicas, a DA determina o desenvolvimento de incapacidades, o que não se reflete em aumento significativo da mortalidade. Os familiares acompanham uma perda (ou transformação) da identidade do doente, em meio a sintomas associados à memória e cognição, alterações comportamentais e de humor, entre outros. Segundo psiquiatras e psicólogos especialistas em luto, tal contexto é considerado como fator de risco para uma vivência de ‘luto antecipatório’. Soma-se a este panorama o fato de que, em todo o mundo, o sistema familiar constitui a base dos cuidados de idosos demenciados. Cuidado é um termo polissêmico e, na relação com pessoas com DA, essa amplitude é evidenciada. O tipo de atenção ao doente varia segundo a progressão da enfermidade. Os cuidados podem incluir desde atividades cotidianas na residência até procedimentos técnicos realizados por equipe especializada – e, às vezes, aprendidos e exercidos pelos familiares. No contexto de uma doença que não tem cura, o familiar ocupa uma posição ambígua: sob a ótica do cuidado ‘humanizado’, é tanto considerado pela equipe de saúde como um aliado quanto é objeto de intervenção, uma vez reconhecida a elevada carga emocional e física que o cuidado de um idoso diagnosticado com DA exige. Esta pesquisa para tese de doutorado aborda o tema a partir de distintas perspectivas etnográficas: observação em congressos sobre entendimento da DA e possíveis intervenções, entrevistas com profissionais e familiares, além de análise de manuais para cuidadores. Nesta apresentação objetivo identificar as orientações para familiares, elaboradas por profissionais de saúde, de modo a refletir sobre os sentidos de noção de pessoa para os distintos atores sociais envolvidos na atenção a afetados por DA.
Herança, hereditariedade e casamento entre primos no Cariri Paraibano: análise antropológica de adoecimentos por Mucopolissacaridoses
Autoria: Heytor de Queiroz Marques (UFRN - Universidade Federal do Rio Grande do Norte), Ednalva Maciel Neves
Autoria: Na genética muito se fala a respeito de “Efeito fundador”, como o surgimento de elevado número de casos de uma doença em determinada região, cidade, localidade. A este respeito, o Cariri Paraibano tem se revelado como uma região que registra casos de Mucopolissacaridoses (MPS), desde 2005, porém existem casos relatados pelos interlocutores de muito tempo antes do registrado, atribuídos ao casamento entre primos pelo discurso da biomedicina. Trata-se de uma doença de origem genética, recebida dos pais e com baixa incidência em diferentes países, assim considerada doença rara. Instigados por esse discurso, passamos a questionar quais eram as percepções das famílias com pessoas com MPS acerca da noção de herança ou hereditariedade da doença e o entendimento das relações de parentesco nos casos identificados pela genética. O work de campo foi realizado em duas expedições (duas etapas), assim chamadas porque se caracterizou por uma imersão nas cidades do Cariri Paraibano, quando percorremos 11 municípios e entrevistamos 16 famílias. Nesses dois momentos, realizamos entrevistas etnográficas e, sendo a segunda expedição o momento em que completei as genealogias de algumas famílias que participaram da primeira expedição o que me possibilitou encontrar com novos casos da doença indicados pelas famílias já entrevistas. Com as expedições realizadas, foi analisado a partir do coletado em campo que a herança das Mucopolissacaridoses para as famílias é algo que está diretamente ligada a história de vida delas, e que pode ser percebida no discurso a partir das relações que “está no sangue” que mediam de certa forma a noção de quem é família a partir dos indivíduos que possuem uma proximidade sanguínea. A herança também é acionada a partir do parentesco quando apontado a partir do heredograma, pelo geneticista, a relação entre membros da mesma família, porém essa noção é guiada a partir do entendimento dos interlocutores visando quem é primo ou não, ou de quem é primo “distante” e “próximo”. A localidade tem seu papel na representação da herança quando parte dos interlocutores descende dos mesmos lugares, sítios, possuindo assim a mesma origem. Esses sítios hoje formaram cidades baseadas nessas poucas famílias, permitindo assim a relação entre pessoas do seu cotidiano. Por fim uma interlocutora chama atenção para construção do risco genético, e como essa herança também pode ser percebida como o risco de transmissão para futuras gerações, elemento esse não percebido por grande parte do grupo. Então a herança das Mucopolissacaridoses é constituída de diferentes perspectivas baseadas no que foi vivido por suas famílias e no que ainda pode vir nas gerações futuras.
Indetectável = Intransmissível na ponta do serviço de saúde? Estudo antropológico do Tratamento como Prevenção (TcP) no Complexo Hospitalar de Doenças Infectocontagiosas Dr. Clementino Fraga em João Pessoa/PB
Autoria: Geissy dos Reis Ferreira de Oliveira (UFPB - Universidade Federal da Paraíba), Mónica Lourdes Franch Gutiérrez Luziana Marques da Fonseca Silva
Autoria: Situado no campo do HIV e da Aids, desde a Antropologia do Corpo, da Saúde e da Doença, este work etnográfico se debruça sobre o Tratamento como Prevenção (TcP); tecnologia preventiva ao HIV/Aids, que assim como a PEP e a PrEP, se inserem na resposta biomédica global de enfrentamento ao HIV/Aids. O TcP é resultado do reconhecimento, a partir de diversas pesquisas da área biomédica, de que a possibilidade de transmissão do HIV por parte de pessoas HIV+ torna-se “negligenciável” quando, a partir da adesão ao tratamento medicamentoso, a carga viral é indetectável. Com base nessas pesquisas, na 9a Conferência da IAS (Sociedade Internacional de Aids em Paris), em julho de 2017, foi tornado público um Consenso em torno do lema “Indetectável = Intransmissível”, campanha internacional, com fins de contribuir para a normalização da vida das pessoas vivendo com HIV. Partícipe da Política global de enfrentamento ao HIV/Aids, a TcP é percebida aqui desde o contexto paraibano, com campo de pesquisa no Complexo Hospitalar de Doenças Infectocontagiosas Dr. Clementino Fraga, localizado no bairro de Jaguaribe, em João Pessoa. Em interlocução com funcionários e profissionais de saúde do referido serviço, integrantes do movimento social de HIV/Aids, gestão estadual de saúde, e pessoas que vivem com HIV/Aids (PVHA), somado à observação participante no hospital, partimos para compreender a forma como o TcP se faz presente ali, no campo do HIV/Aids do estado, e no modo como se aglutina às experiências das PVHA, juntamente às experiências desvinculadas desta tecnologia, mas que dizem respeito à TARV (Terapia Antirretroviral), e ao HIV/Aids propriamente. A partir do que, percebemos que o TcP, nominalmente, não se constitui como uma política de prevenção ao HIV/aids do Complexo Hospitalar Clementino Fraga. O termo intransmissível não percorre o serviço de saúde e as narrativas das PVHA tal qual o termo indetectável, bastante caro e disseminado pelos/as profissionais de saúde, devido à ruptura que o primeiro promove com determinados paradigmas estabelecidos ao longo da história. O que organiza o repasse dessas informações, diz respeito a uma noção de risco, no sentido da gestão cotidiana das informações a partir do que os profissionais pressupõem em termos de proteção e exposição. “Filtros” são estabelecidos nesse processo, categoria nova, para um semântica bastante conhecida neste campo: a noção de “grupos de risco”.
Lógicas do cuidado: significados sobre a produção do cuidado em saúde na Atenção Básica (Estratégia Saúde da Família e Comunidade), em São Paulo-SP.
Autoria: Marcelo Pereira de Brito (USP - Universidade de São Paulo), Edemilson Antunes de Campos (EACH-USP)
Autoria: Neste work, tomamos a Atenção Básica (AB), em especial a Estratégia Saúde da Família e Comunidade (ESF), como um modelo assistencial que pode revelar-nos como se organiza as ações de atenção à saúde, tanto em seus aspectos tecnológicos e assistenciais, como em relação a produção do cuidado em saúde. A partir da etnografia em uma ESF, este work aborda a AB e as múltiplas lógicas de cuidado em saúde presentes no seu interior, a partir da inflexão proposta pela teoria ator-rede (TAR), desenvolvida por Bruno Latour e reinterpretada por Annemarie Mol, que indica a multiplicidade da realidade histórico-social e seus atores humanos e não-humanos. Isto posto, ganha relevância o caráter relacional na atenção à saúde. Assim, algumas contribuições da TAR demonstram-se pertinentes e dignas de serem aqui colocadas, a saber que esta teoria tem como um de seus pressupostos o princípio de simetria generalizada, onde conhecimento e significado já não são mais uma propriedade exclusiva dos seres humanos, mas produtos e consequências de redes heterogêneas de materialidades e socialidades. Nessa linha, a AB pode ser concebida como o lócus privilegiado para pensarmos, mediante uma inflexão da TAR trazida por Mol, tanto a lógica da “escolha”, com sua vertente mercadológica, em que as pessoas têm o direito de obter aquilo pelo que pagaram, as ofertas de saúde ocorrem de acordo com a demanda e os pacientes são denominados “clientes”, onde a atenção à saúde se pauta pela transferência de um produto, e sua vertente cidadã, na qual há o incentivo da autonomia do paciente, mediante uma concepção democrática de direito, onde o profissional tem o papel de apenas informar quais opções os pacientes podem contar para fazerem suas próprias escolhas, como a lógica do “cuidado”, na qual as variáveis da vida, sociocultural, histórica e materialmente constituídas, sugerem a existência de um processo fluido, cheio de idas e vindas, não podendo ser a atenção à saúde concebida por uma perspectiva linear. Assim, no modelo da AB, ao contrário da biomedicina, a lógica do cuidado, que rege as práticas de saúde, aponta para o compartilhamento das ações entre os diversos atores, humanos e não-humanos, configurando-se um processo em aberto vivenciado por usuários e profissionais da saúde. Com esse work, portanto, espera-se contribuir para uma melhor compreensão da produção de cuidado em saúde na AB, em particular na ESF, valorizando-se a dinâmica cultural como produtora de uma multiplicidade de significados, a fim de ampliar e aprofundar a discussão a partir de um work etnográfico, envolvendo as lógicas do cuidado em saúde e seus efeitos na experiência coletiva e pessoal.
Narrativas de perda gestacional e neonatal: sensibilidades contemporâneas
Autoria: Vanessa Miranda Santos de Paula Carneiro (UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro), Rachel Aisengart Menezes
Autoria: Este work integra pesquisa para dissertação de mestrado em Saúde Coletiva e pertence ao conjunto de estudos socioantropológicos sobre as atitudes diante da morte na contemporaneidade, especificamente a perda gestacional e neonatal. Utilizo análise documental para apreender o discurso de profissionais de saúde dedicados à assistência ao luto os valores relacionados à maternidade, infância, morte e suas demandas sociais. A análise da literatura produzida por apoiadoras do reconhecimento deste tipo de luto no Brasil permite identificar prescrições acerca da elaboração da perda, vocabulário próprio e mudanças no ideário de boa mãe deste grupo. A psicologia perinatal e os cuidados paliativos pediátricos são especializações recentes que configuram a literatura nativa e preconizam um processo de enlutamento intrapsíquico, com uma interpretação rasa de sua configuração social. A literatura crítica, perspectiva deste work, considera os fetos e bebês mortos (durante a gestação ou puerpério) novos sujeitos biopolíticos configurados pela articulação entre a ciência, clínica e estado. No Brasil, mães enlutadas que são defensoras da visibilidade do luto gestacional e neonatal frequentemente se reúnem em associações sem fins lucrativos para legitimar o seu sofrimento, as identidades de bebê-anjo/mãe de anjo e as particularidades vivenciadas a partir da morte do feto/bebê. As associações oferecem grupos de ajuda mútua para o compartilhamento da experiência do luto e validação da posição social materna com a afirmação do seu amor incondicional. A maioria dos grupos foi fundada nos últimos cinco anos, sobretudo entre 2017 e 2018. A continuidade do vínculo com o bebê morto (cuja identidade deve permanecer em desenvolvimento), a sacralização de mulher e do feto/bebê são centrais nos discursos, práticas e prescrições difundidas por mães enlutadas e terapeutas especialistas em luto (que frequentemente também participam dos grupos por terem histórico de perda gestacional). Ambas pressupõem que a morte de um bebê é considerada antinatural pelos pais e uma morte simbólica do futuro. A produção crítica sobre morte gestacional e neonatal afirma que os embriões e fetos mortos são investidos de sentido e adquirem importância social de acordo com momentos históricos e contextos específicos. O ideário da assistência ao luto gestacional e neonatal no Brasil é produzido por mulheres intelectuais, direcionado sobretudo a seus pares e produtor de (in)sensibilidades e novas demandas quanto ao processo de luto. A análise das cartilhas difundidas em grupos de ajuda mútua evidencia as tensões e contradições de um campo constituído por moralidades, processos medicalizantes e as mudanças no ideário de boa mãe diante da morte de seu bebê.
O parto planejado e o desfecho de parto: Problematizando desafios da humanização do parto no ambiente hospitalar em Maceió – AL
Autoria: Débora Allebrandt (UFAL - Universidade Federal de Alagoas)
Autoria: Parir e nascer são atos fisiológicos que recebem a influência de inúmeras concepções na nossa sociedade. A medicina baseada em evidências fundamenta os princípios de humanização do parto e do nascimento. No entanto, existe uma série de controvérsias que dificultam a aplicação desses princípios tomados como “boas práticas”. Embora o movimento de humanização do parto tenha ganhado terreno na assistência ao parto domiciliar, o cenário é distinto quando falamos do parto hospitalar, que no Brasil corresponde a 98% dos nascimentos.É justamente no ambiente hospitalar que são produzidas as alarmantes taxas de cesarianas (80% no setor privado e 35% no setor público) e altos índices de intervenção. Essa apresentação busca sistematizar as reflexões que conduziram a elaboração de um projeto mais amplo que tem como foco a divulgação científica de estudos sobre saúde da mulher e direitos reprodutivos e formação interprofissional. A partir de uma reflexão autoetnográfica, tenho como objetivo situar o cenário de atendimento ao parto em Maceió – AL. As dificuldades, anseios e expectativas no planejamento do parto e do nascimento e seu desfecho são trazidas a partir de uma vivência pessoal, que acredito possa oferecer ferramentas para se pensar alguns dos desafios da adesão às boas práticas e elaboração de uma crítica da formação (inter)profissional da assistência ao parto.
Para além do parto: outras questões de sexualidade e reprodução em uma maternidade pública humanizada
Autoria: Sara Sousa Mendonça (UFF - Universidade Federal Fluminense)
Autoria: Minha pesquisa é uma etnografia da política de humanização no Hospital Maternidade Maria Amélia Buarque de Holanda, uma maternidade pública na cidade do Rio de Janeiro, pelo viés das enfermeiras obstetras e das mulheres por elas atendidas. Os significados do termo humanização são objeto de disputa entre ativistas, usuárias, profissionais da saúde e gestores e mesmo internamente a estas categorias. A tese resultante desta pesquisa (MENDONÇA, 2018) busca construir interpretações a respeito da institucionalização deste modelo, abarcando a permanente tensão entre o ideário promovido pelo movimento pela humanização do parto, os saberes-poderes biomédicos e as estruturas da instituição médico-hospitalar. Bem como o diálogo com o grupo majoritário de usuárias da maternidade, que não necessariamente desejam um parto que “respeita a fisiologia do parto” e seja completamente sem intervenções. Porém, maternidades não são apenas lugares onde mulheres parem e bebês nascem. Uma série de outras questões que circulam a reprodutiva e sexual também passam por ali: abortos, doações de crianças, violências sexuais, laqueaduras e as mulheres que são consideradas inaptas a cuidarem de seus filhos pela Assistência Social. Essas não foram o meu enfoque principal, e tendo o Centro de Parto Normal (CPN) desta maternidade como campo de observação quase exclusivo não pude explorar como elas são abordadas em diversas instâncias da instituição, apenas observar como elas passavam por aquele setor e que tipo de comentários e interações geravam. São dados que por vezes invadiram o CPN, sendo comentados por todas; por vezes apareceram em minhas entrevistas e me deram uma nova compreensão do que eu havia observado em sala de parto; outras tantas vezes nem eram assunto e eu só os captava ouvindo curtas conversas ou indagando sobre. No cotidiano do CPN as histórias individuais dessas mulheres emergem, desafiando a assistência a lidar com questões morais que não são consensos nem na sociedade nem, ao contrário do que se poderia supor, entre os próprios profissionais de saúde.
Recomendações da OMS para os cuidados pré-natais: reflexões preliminares sobre as noções de risco na gestão das gravidezes e nascimentos
Autoria: Fernanda Loureiro Silva (IM)
Autoria: Nas últimas décadas, o movimento de “humanização do parto” no Brasil vem propondo mudanças na assistência que buscam desestimular o “parto medicalizado” e incentivar o uso de práticas “humanizadas”. Essas práticas, baseadas nas “melhores evidências científicas”, privilegiam o uso de tecnologias consideradas “apropriadas” em detrimento daquelas consideradas "danosas”. Tais mudanças - não apenas na forma de dar à luz, mas também nos modos de gestar e maternar - seguem aquilo que vem sendo proposto pela Organização Mundial da Saúde (OMS) desde 1985. Para este work, tomo como ponto de partida o papel preponderante que as evidências científicas vêm ocupando no movimento de humanização, e os deslizamentos discursivos em torno das noções de risco que acompanham os debates relacionados à gestão das gravidezes e, principalmente, acerca das formas de fazer nascer: parto natural e cesariana. Nas sociedades em que a gravidez e o nascimento foram medicalizados, os discursos de risco se intensificaram e o risco se tornou um conceito-chave para a mensuração, gestão e prevenção de desfechos negativos ou indesejáveis. Os cuidados pré-natais de rotina e as práticas de assistência ao parto são orientados para o monitoramento e controle de riscos, e incluem uma série de intervenções com o objetivo de identificar e corrigir disfunções e anormalidades. Apesar da centralidade do risco biomédico, estudos socioculturais sobre o risco apontam que as construções associadas a esse conceito são mais complexas, podendo variar não só entre os diferentes atores envolvidos, mas também de acordo com crenças, valores e visões de mundo que são moldados por contextos históricos, culturais e sociais específicos. Este work tem como objetivo investigar as recomendações da OMS sobre cuidados pré-natais publicadas em 2016 no contexto da implementação da “Agenda 2030” para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Mais especificamente, irei descrever e analisar as noções de risco relacionadas a algumas intervenções médicas e não médicas realizadas rotineiramente durante a assistência ao pré-natal. Com base nessa análise, buscarei apresentar reflexões preliminares sobre como essas intervenções podem moldar a construção de significados sobre “corpo grávidos” e representações acerca de uma “maternidade positiva”, lançando luz sobre políticas de saúde da mulher no século XXI.
Saberes biomédicos e interações neurodiversas na coprodução diagnóstica do autismo em mulheres: interseccionalidades entre deficiência, gênero e classe social
Autoria: Valeria Aydos (UFRGS - Universidade Federal do Rio Grande do Sul)
Autoria: No cenário de uma crescente propagação midiática sobre o autismo e da promulgação da Lei Berenice Pianna (N. 12764/2012) que o reconhece como “deficiência para todos fins legais”, a flexibilidade e a complexidade da sua produção como um "diagnóstico clínico" e situado em um espectro altamente diversificado, soma-se aos debates sobre esta condição ser uma deficiência e/ou uma neurodiversidade. Nesse contexto, marcado por uma virada fisicalista (ou neurocientífica) de explicação cerebralista da condição do autismo (como biologicamente marcada no cérebro das pessoas ditas "atípicas"), sabe-se da existência de uma maior prevalência de diagnósticos em homens (5 para 1). Tal fato tem sido debatido e contestado a partir da hipótese de um “subdiagnóstico feminino”, tanto por movimentos de mães e pais de autistas, quanto por ativistas mulheres que se identificam no espectro. Neste debate, ficam evidentes também as especificidades da obtenção deste diagnóstico entre os chamados “autistas de alta funcionalidade” (ou Aspergers) e a invisibilidade das pessoas de baixa renda neste grupo. A partir de uma etnografia com experts em autismo da área da saúde e com uma rede de mulheres se identificam com esta condição, esta pesquisa propõe-se a analisar como as questões de gênero e classe social se fazem presentes na produção do diagnóstico do autismo. Mais especificamente, pretende entender como os saberes biomédicos e práticas da saúde, assim como as diferentes formas das mulheres autistas “habitarem" e agenciarem esta condição, contribuem para este possível “subdiagnóstico”, atentando para os efeitos desta realidade nas trajetórias destas mulheres em busca pelo reconhecimento de sua condição e por espaços de atendimento à saúde e às políticas de inclusão. A proposta de um estudo etnográfico e microscópico sobre esta realidade visa contribuir para compreensão de como, na prática, os diversos atores envolvidos nas disputas em torno da obtenção deste diagnóstico e da construção do status nosológico do autismo coproduzem novos sujeitos, relações e sensibilidades sociais no Brasil.
Significados sobre a Covid-19 e práticas de cuidado em saúde de idosos em tempos de pandemia.
Autoria: Ana Paula Ferreira Fidélix (USP - Universidade de São Paulo), Edemilson Antunes de Campos
Autoria: A doença COVID-19 caracterizada como uma pandemia no ano de 2020, tem como uma de suas características a alta letalidade em pessoas idosas. Esta realidade destaca os desafios e necessidades que os idosos estão enfrentando durante esta crise de saúde e que poderão ter efeitos duradouros. Discursos em torno da COVID-19 retratando-a como sendo uma doença de idosos e afirmando que não deve haver alarde na população, pois a mortalidade se implica principalmente às pessoas idosas, são fatores que podem agravar o isolamento social, chegando até à violação do direito à saúde e à vida. Tais discursos levam a um aumento do estigma social sobre a velhice e agravam os efeitos negativos dos estereótipos existentes sobre as pessoas idosas. O estigma social em um contexto de pandemia pode levar estas pessoas a serem tratadas de forma diferente dos demais, pois serão rotuladas, estereotipadas e discriminadas. Dessa maneira, o marcador social da diferença, geração, revela-se uma chave importante para a compreensão dos significados sobre a doença bem como sobre as práticas de cuidado em saúde para as pessoas idosas. Nos contextos epidêmicos, os costumes e as regras sociais influenciam na elaboração das respostas às doenças, assim como na experiência do adoecimento. No caso da COVID-19, o discurso biomédico enfatizando a representação da doença como fatal para este grupo da população, direciona ações da população e dos profissionais. Mas, como as representações e os significados da doença orientam as práticas de cuidado em saúde na pandemia? Os cuidados em saúde envolvem uma complexa rede de interações, que abarca diferentes formas de conhecimento, valores, crenças e significados que moldam as práticas de saúde dentro de um contexto sociocultural. Seguindo a linha aberta por Kleimann (1980), as práticas de cuidado em saúde podem ser entendidas como respostas socialmente organizadas frente às desordens. Elas refletem o complexo interativo entre grupos sociais, instituições, padrões de relacionamento e um corpo específico de conhecimento. Com efeito, esse work busca refletir como, nos tempos da pandemia da COVID 19, as práticas de cuidado em saúde são vivenciadas dentro de um sistema de cuidado no qual as representações e os significados sobre a doença, dos grupos de risco e os direcionamentos possíveis a serem adotados são fundamentais para se compreender o modo como os idosos cuidam de sua saúde durante a pandemia e como cuidarão após ela, ao mesmo tempo em que podem ocasionar, por exemplo, a marginalização dos idosos nos serviços de saúde.
Tornar-se médico obstetra, corpo e mulher: Fragmentos etnográficos sobre a formação em obstetrícia em Salvador – Bahia
Autoria: Naiara Maria Santana dos Santos Neves (UFBA - Universidade Federal da Bahia)
Autoria: Partindo de memórias de pele e de uma pesquisa etnográfica que combina observação participante, entrevistas e análises de produções científicas e pedagógicas e de ementas do curso de medicina, este artigo apresenta uma discussão antropológica sobre obstetrícia, corpo e gênero. É um exercício narrativo-etnográfico situado que caminha entre a antropologia da ciência e do corpo a partir de pressupostos da antropologia feminista, problematizando a dicotomia natureza-cultura, chacoalhando as percepções sobre ciência e corpo, se debruçando sobre co-construções de corporalidades na interação entre obstetra aprendiz e os corpos das mulheres. Memórias de pele dizem respeito à minha própria experiência de parto vivida na maternidade lócus da pesquisa, ponto de partida, ainda na graduação, para meu envolvimento acadêmico e político com o universo dos processos de parturição. Os dados e questões trazidas neste texto não serão desenvolvidos à exaustão, ainda, são parte da minha pesquisa doutoral e de uma busca por compreender como se constrói, a partir da perspectiva dos profissionais e estudantes de uma faculdade de medicina e maternidade-escola de Salvador – Bahia, o habitus médico obstétrico durante a sua formação. Isto, considerando as práticas pedagógicas e de cuidado, rotinas, protocolos, usos das tecnologias e relações de poder. E mapeando quais as noções sobre corpo e mulher compartilhadas e produzidas neste contexto. Alinhavado entre minhas memórias de pele, narrativas e insights de minhas interlocutoras e análises de materiais acadêmicos do campo da medicina e obstetrícia, este artigo trata de “carne e alma” de médicas/os e mulheres, vida e morte, toques, manuais, tratados, ilustrações e manequins obstétricos, jalecos, “médicos tradicionais e colegas marginais”, hierarquias, transformações de paradigmas médicos e de cuidado, e sistemas de diferenciação e normatização de sexo e gênero em relação na construção do habitus médico-obstétrico durante seu processo formativo. São frutos de idas e vindas, desde 2018, entre as instalações de uma renomada faculdade de medicina e uma maternidade-escola da Bahia, comitês de ética de pesquisa, atividades acadêmicas tais quais aulas e seminários, atividades políticas, livros, textos, módulos digitais, perfis e páginas nas redes sociais geridos por obstetras, ligas acadêmicas, empresas que comercializam produtos e serviços educacionais voltados para estudantes de medicina e para divulgação dos famosos memes. Além de outras interlocutoras, as reflexões são tecidas em colaboração com três estudantes e uma médica obstetra formada há algumas décadas na faculdade a qual a pesquisa é desenvolvida, que foram entrevistadas utilizando a ferramenta da entrevista semi-estruturada.
Tratando famílias: clínica geriátrica e seus objetos
Autoria: Cíntia Liara Engel (UnB)
Autoria: Entre 2016 e 2018, realizei uma etnografia sobre os modos como uma geriatria multidisciplinar de um hospital universitário no Distrito Federal compõe a sua terapia em relação às demências. Neste espaço, atuam médicos especializados em doenças relacionadas ao envelhecimento, os geriatras, e outros profissionais interessados nas questões do envelhecimento, os gerontólogos. Nesse paper, argumento que a família é recortada como objeto de intervenção na clínica geriátrica e, ainda, como a reforma das relações familiares é uma das principais pautas de disputa política da gerontologia. Ao observar os atendimentos, notei que um dos objetos de tratamento na clínica era a própria família e suas divisões internas de cuidado. Termos como “insuficiência familiar” e “sobrecarga da cuidadora” eram utilizados como parte do diagnóstico. Eram, inclusive, incluídos na lista de “problemas” escrita nos prontuários junto de outros diagnósticos, como hipertensão e Doença de Alzheimer. Tais diagnósticos orientavam e movimentavam as intervenções terapêuticas de modo bastante amplo. Tanto no sentido de guiar as famílias a buscarem soluções jurídicas sobre a divisão de cuidado, como na mediação da quantidade de medicamentos – alguns deles, inclusive, serviam para apaziguar as relações familiares. Assim, ao observar esse tratamento, pude concluir que um dos objetos de intervenção dessa geriatria eram as próprias relações familiares. Ao observar a atuação política de geriatras a outros profissionais envolvidos com a gerontologia, ainda, percebi que tal objeto não era restrito ao tratamento, mas a reforma das famílias e das relações familiares com idosos é uma das pautas políticas de vários geriatras e gerontólogos – especialmente no que tange ao cuidado das demências e outras doenças crônicas.
Vulnerabilidade, risco e os sentidos da pandemia de Covid 19 entre idosos em situação de isolamento social
Autoria: Monalisa Dias de Siqueira (UFRGS - Universidade Federal do Rio Grande do Sul)
Autoria: O work tem por objetivo analisar as percepções de risco e os sentidos da pandemia de Covid 19 entre idosos em situação de isolamento social, bem como os discursos biomédicos sobre a vulnerabilidade da população idosa. Esta é uma pesquisa qualitativa, de cunho etnográfico, que faz parte de um projeto maior a respeito da Covid 19 no Brasil e os impactos sociais da pandemia entre profissionais de saúde e população em isolamento. Destaca-se que a pandemia de Covid 19 e as medidas de isolamento social empregadas têm impactado também as próprias pesquisas em curso, especialmente aquelas que exigem o work de campo junto a determinados grupos. Com isso, optou-se por fazer uso de instrumentos e técnicas de pesquisa que não exigem a presença física e a interação face a face. Compreende-se que a população idosa tem sido destacadamente visada como população de risco e é sobre ela que recaem as maiores restrições de circulação. Sendo assim, a pesquisa está sendo realizada com idosas/os que em situação de não excepcionalidade costumam frequentar espaços recreativos, como sociedades e clubes de terceira idade na região central do Rio Grande do Sul. Além disso, tem-se realizado um levantamento de materiais de divulgação nas mídias que possibilitem refletir sobre as práticas científicas e as políticas de intervenção direcionadas a esses sujeitos no contexto da pandemia. Com isso, busca-se compreender os modos como a população idosa tem produzido sentidos frente a um evento crítico e seus efeitos em termos de sociabilidade, sofrimento e aprendizagem da doença.
“Se não pôr a mão no paciente, não faz diagnóstico”: relatos etnográficos da atenção às pessoas com hanseníase em Cuiabá – MT
Autoria: Lidiane Mara de Ávila e Silva (UFMT - Universidade Federal de Mato Grosso), Jaqueline Terezinha Ferreira
Autoria: A hanseníase é uma doença infecciosa, transmissível, que afeta os nervos periféricos e provoca alterações na sensibilidade, principalmente das mãos e pés, podendo evoluir para incapacidades físicas crônicas. Uma doença estigmatizante e politicamente negligenciada, predomina entre populações vulnerabilizadas no Brasil, onde foram diagnosticados, entre os anos de 2009 a 2018, mais de 300.000 novos casos e cerca de 20.000 pessoas com maior grau de incapacidade física. Principal estratégia de prevenção de incapacidades, o diagnóstico precoce ainda é um desafio aos profissionais e serviços de saúde no Brasil, pois sua realização depende de diversos aspectos como capacitação profissional, atuação das Unidades Básica de Saúde na busca de casos e de constante vigilância à saúde. Neste estudo, analiso na perspectiva antropológica aspectos do diagnóstico de hanseníase em Cuiabá – MT que, ao se referenciar predominantemente pelo modelo biomédico, vem negligenciando questões socioculturais, comprometendo um cuidado integral. Foi realizada uma etnografia multisituada com profissionais de saúde que atuavam na atenção às pessoas com hanseníase, em serviços de saúde de Cuiabá, entre os anos de 2015 a 2019. Por meio de observação participante, foi possível identificar interpretações de saúde e doença, corpo, cuidado e cura. Na Atenção Básica, o diagnóstico, que é essencialmente clínico, baseado nos sinais, sintomas e história familiar, não vinha sendo realizado, por isso os casos suspeitos eram encaminhados à referência, configurando as “unidades silenciosas”, UBS que não faziam diagnóstico. Quando realizavam, havia por parte dos profissionais certa dependência de exames laboratoriais que comprovassem a doença, mas em fases iniciais, os exames eram sempre negativos, comprometendo o diagnóstico precoce. Interpretações profissionais quanto ao “descuido com a higiene corpo” evocavam representações estigmatizantes que remetiam ao risco de transmissão da doença, afetando a relação de cuidado. Não raro, os pacientes eram responsabilizados por não saberem reconhecer os sintomas. Nos serviços de referência, o work de um médico chamava a atenção por priorizar o exame físico e a escuta dos pacientes. Palpar os nervos periféricos e observar manchas pelo corpo era sempre rotina, evidenciando que a formação não prescinde de “tecnologias”. Neste contexto, a hanseníase era considerada um problema político e a negligência se expressava nas práticas de saúde, evidenciando um campo de forças que silencia problemas de saúde pública em razão do (des)interesse dos diversos agentes. Entre os profissionais que mais conheciam a doença, sua endemicidade, suas causas, seus sintomas e suas complicações, havia um olhar sensível e atento aos aspectos mais amplos do adoecimento.
“Violência Obstétrica”: perspectivas em disputa.
Autoria: Stephania Gonçalves Klujsza (sem vínculo)
Autoria: Até 2012 não havia um termo específico para designar as experiências consideradas ruins e/ou traumáticas que as mulheres poderiam experimentar no parto. Foi a partir de uma pesquisa realizada pela Fundação Perseu Abramo, em 2010, na qual uma em cada quatro mulheres afirmou ter experimentado situações consideradas “ruins” no parto, que impulsionou a discussão acerca do assunto. Com a popularização do ideal do parto humanizado e da medicina baseada em evidências, certas práticas passaram a ser questionadas na assistência ao parto. Busco apresentar a construção da ideia de “violência obstétrica”, que qualificou as experiências de parto e atribuiu dimensão moral às situações que, até então, eram compreendidas como normais ao processo de nascimento. Assim, configura-se uma nova dimensão moral para o processo de parturição. A “violência obstétrica”, passa a ser compreendida como “violação dos direitos humanos” e torna-se um campo de disputa que mobiliza médicos e pacientes. De um lado, temos o grupo composto por mulheres, ativistas e médicos que a partir do ideário do parto humanizado passam a compreender a experiência do parto de forma ressignificada, buscando legitimar a ideia de “violência obstétrica” e combate-la. De outro lado, o grupo dos médicos e suas autarquias que, ao verem suas práticas questionadas pela ideia de “violência obstétrica”, a rejeitam por compreenderem que não faz parte da prática médica causar dano ao paciente de forma intencional, e enxergando que a “violência obstétrica” é um termo “antimédico”. Em 2019, essa discussão se expande para as esferas públicas quando o Ministério da Saúde não reconhece a “violência obstétrica”, se recusando a utilizar o termo em qualquer material emitido pelo governo, por compreender que trata-se de “ideologia”, limitando-se a falar em “abusos, desrespeito e maus tratos”, para qualificar qualquer situação que afete os direitos das mulheres durante o parto. O objetivo do presente artigo é apresentar as questões ditas acima, a partir do material produzido em campo entre 2014 e 2018, que resultou em minha tese de doutorado em Antropologia pelo PPGA-UFF (KLUJSZA, 2019).
Notas etnográficas sobre corpo, gestação e parto de mulheres jovens em Marcelino Vieira/RN
Autoria: Marina Luzia Cesário de Queiros (UFPB - Universidade Federal da Paraíba)
Autoria: Este work aborda a temática corporalidade e mulheres, pensando por meio da experiência da gravidez a partir de um work de campo realizado no município de Marcelino Vieira/RN. A principal inquietação era entender como se dá a relação das mulheres com seus corpos, reconhecendo controle social sobre os corpos femininos, tidos como objetos e passíveis de intervenção no processo de maternidade, em particular na idealização do ser mãe enquanto vocação natural da mulher. Enfatizo que a maternidade é uma construção sociais, históricas e culturais, para além da visão biológica. Nosso foco é o entendimento da corporalidade por mulheres que foram mães jovens, considerando discurso médico e as possibilidades de tomada de decisão. Metodologicamente, foram realizadas 05 entrevistas etnográficas com mães entre 17 a 22 anos, no município de Marcelino Vieira/RN. O roteiro de entrevista interrogava sobre a percepção das mulheres com seus corpos, privilegiando as mudanças corporais no antes, durante e após a gestação/parto. As interlocutoras foram mães em média aos 17 anos, três delas moram com os companheiros/pais dos filhos e duas vivem com suas famílias de origem (avó e pais); uma trabalha, as outras dependem da renda dos companheiros, avó e pais; uma tem ensino fundamental completo, três ensino médio completo ou incompleto e uma formação superior incompleta. Nos resultados, surgiram elementos relacionados também à escolha pelo parto e os sentimentos que envolvem a cesárea e sua cicatriz. As mulheres alegam que a gestação trouxe mudanças no corpo que alteram suas relações consigo mesmo. Os cuidados com o corpo mudam durante e depois a gestação, voltar a se sentir confortável e retomar os cuidados com o corpo torna-se um processo gradual que envolve acostumar-se com as mudanças ocorridas. Com relação a escolha do parto, as mulheres relataram que desejavam o parto normal, apenas uma havia decidido pelo parto cirúrgico, mas mudaram por recomendação médica. As mulheres divergem das recomendações, tendo em vista que não batiam com suas experiências com seu corpo. Elas descrevem o parto repleto de experiências negativas, estão associadas às sensações corporais, em particular a angústia e medo de morrer atribuídas à falta de informação e cuidado dos profissionais de saúde. A cicatriz do parto é para uma delas uma marca de “realização”, enquanto para as outras motiva sentimentos variados, desde emoções à baixa autoestima. É perceptível que a gravidez realiza transformações nos corpos femininos, tanto físico quanto na percepção de si e das cobranças sociais. Mostrando assim que a maternidade romantizada e ligada à reprodução/gênero não condiz com a experiência das mulheres, visto que é permeada por sofrimentos, imposições médicas e arrependimentos.
O aprendizado do corpo como signo: análise documental sobre a semiologia médica ensinada em manuais médicos
Autoria: Gabriella Ferreira Nascimento Vicente (SMS), Gabriella Ferreira Nascimento Vicente Gabriela Granieri
Autoria: A Semiologia Clínica é a disciplina que, no campo da saúde, interessa-se pelo estudo dos métodos e procedimentos do exame físico, tomando o corpo como gerador de signos, no mesmo sentido em que a Semiologia Geral se ocupa da palavra como geradora de signos. A decodificação desses signos efetua-se na pesquisa dos sintomas e dos sinais, em que o médico coordena todos os elementos que vão auxiliá-lo a construir o diagnóstico e a deduzir o prognóstico de doença. Assim, parte-se do princípio que o corpo é signo na medida em que comunica algo sobre a pessoa e o social da mesma forma como as tecnologias, o conhecimento, as práticas e os produtos científicos estão imbricados à cultura e à sociedade em numerosos modos constitutivos. Este poster apresenta dados de uma pesquisa intitulada Como se constrói um corpo em signo: Representações de Médicos no Diagnóstico em Cardiologia, que busca analisar, do ponto de vista histórico-antropológico, como estas transformações se deram na aplicação do método clínico, tanto no que se refere à leitura das mensagens corporais, seja do paciente-à-examinar à uma imagem-à-interpretar. Os dados aqui apresentados referem-se à análise documental através do exame de Tratados de Semiologia Clínica e de Técnicas Diagnósticas utilizados na formação de médicos e enfermeiros. Os documentos estudados foram os manuais usados na disciplina de Semiologia Médica da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Dessa forma os dados discutem como os referidos manuais apresentam elementos socioculturais que abrigam os diagnósticos clínicos.