GT 65. Patrimônios e Museus: narrativas em disputa e processos decoloniais

Coordenador(es):
Regina Maria do Rego Monteiro de Abreu (UNIRIO - Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro)
Thaís Fernanda Salves de Brito (UFRB - Universidade Federal do Recôncavo da Bahia)

Patrimônios e museus vem apresentando instabilidade incomum numa configuração de narrativas em disputa. Se estas agências apresentam-se como refratárias à ação do tempo preservando acervos milenares e sendo regidas por regimes jurídicos que as protegem, pesquisas recentes apontam para conflitos pautados por projetos de futuro para sociedades plurais. Argumentos evocam destombamentos, repatriamentos de objetos, fechamentos e/ou reestruturação de museus, releituras de objetos, aparelhamentos de antigos museus por cultos religiosos, destituições de leituras antropológicas dos objetos, novos enquadramentos para as exposições. Somos surpreendidos por proibições de exposições, imposição de contéudos, disputas estéticas. Por outro lado, processos decoloniais vem abrindo espaço para saberes insubmissos trazidos pela resistência de povos outrora silenciados, como os povos indígenas. Patrimônios e museus tornam-se ferramentas de lutas pela cidadania e pela igualdade social. Surgem os museus sociais, os museus indígenas, as museologias colaborativas, a auto-inventariação de conhecimentos tradicionais, demandas por patrimônios imateriais e tombamentos acionados pelos chamados "detentores", protagonistas de suas histórias de vida. Este GT pretende abrigar trabalhos de pesquisa em torno desta temática, tendo como eixo central a defesa do papel da Antropologia no campo de Patrimônios e Museus no sentido de afirmar o direito às diferenças e à visibilização de narrativas insubmissas.

Palavras chave: Patrimônios; Museus; Decolonialidade
Resumos submetidos
Alçar os santos dos calabouços. O Museu e a Reparação da Dor
Autoria: Luz Stella Rodríguez Cáceres (UERJ - Universidade do Estado do Rio de Janeiro)
Autoria: O seguimento das transformações pelas que objetos passam, permite dar conta deles em termos biográficos, como sugerido por Kopitoff, para enfatizar faces da sua vida, e em particular classificações e reclassificações que sem ser excludentes entre si, se sobrepõem e os singularizam em determinados momentos. Os recentes reclamos de restituição das coleções de objetos sagrados aprendidos legalmente pela Polícia Cívil do Rio de Janeiro durante a Era Vargas, por parte de pessoas que individualmente ou organizadas e pertencentes às religiões de matriz africana, exigem que a trajetória dessa materialidade seja abordada em diálogo com a descolonização dos museus. Neste texto me centrarei na demanda liderada por uma pessoa estreitamente vinculada ao acervo do Depósito da Polícia na rua Joaquim Palhares e que de forma individual tem lutado para restaurar a dignidade dos objetos aprendidos pela Polícia, numa ação que antecede à conhecida Campanha Liberte Nosso Sagrado CLNS. Ditas demandas colocam em xeque uma pauta museográfica ultrapassada ligada ao racismo, que expõe ferida do colonialismo interno e requere de novos arranjos curatoriais ao interior do museu; que a pesar das críticas continua sendo visto como espaço responsável pela construção de significados legítimos e como o lugar para a reparação de erros historicamente atestados.
As fronteiras da arte em questão: uma coleção de arte popular no Museu D. João VI
Autoria: Carolina Rodrigues de Lima (UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro)
Autoria: O Museu D. João VI, vinculado à Escola de Belas Artes da UFRJ, abriga um acervo que acompanha a instituição desde sua fundação em 1816 como Academia Imperial de Belas Artes, sendo acrescido pela produção artística interna ou doações externas. Originalmente, o acervo de artes visuais do museu era composto pela Coleção Didática, referente às principais obras do sistema pedagógico acadêmico, e a Coleção Ferreira das Neves, composta por diversos objetos e obras de arte, sendo a maior parte de origem europeia. A maior modificação do acervo desde a fundação do museu ocorre no dia 15 de fevereiro de 2012 com a chegada da coleção Renato Miguez de Arte Popular, nosso principal foco de investigação, durante a gestão da professora Carla Dias, antropóloga e pesquisadora de arte popular que também orienta essa pesquisa. A coleção é formada por 1366 peças de diversas dimensões, materiais e origens, mas que em comum guardam a referência à arte popular. A maior parte desse acervo é composta por esculturas, e, apesar da marcante presença de cerâmica nordestina, é possível identificar peças de origem indígena brasileira, europeia, asiática, africana e de alguns países da América Latina. De acordo com antropólogo José Reginaldo Gonçalves, tanto em seus usos sociais quanto em sua reclassificação como itens de coleção, peças de acervo museológico ou patrimônio cultural, objetos materiais sempre existirão como parte integrante de sistemas classificatórios, lhes assegurando o poder não só de tornar visíveis e estabilizar determinadas categorias socio-culturais, mas também de demarcar fronteiras entre estas, constituindo sensivelmente formas específicas de subjetividade individual e coletiva (2007, p. 8). As fronteiras entre a arte acadêmica e a arte popular são historicamente bem demarcadas e, mais do que isso, são colocadas em oposição tanto pelas representações desses campos de conhecimento quanto pelo senso comum. O objetivo dessa pesquisa consiste em analisar os impactos políticos e pedagógicos produzidos pela incorporação de uma coleção de arte popular em um museu acadêmico composto originalmente por um acervo erudito e eurocêntrico. Ainda que esses conflitos de representação se façam presentes no espaço interno do museu, é inevitável a presença de tensões e diálogos proporcionados pelas fronteiras da arte, assim como as fronteiras sociais que são cada vez mais questionadas com a presença de representantes de diversos segmentos sociais na universidade a partir das Ações Afirmativas implementadas no mesmo ano da incorporação da coleção. A democratização da arte no campo simbólico se constitui como uma urgência provocada pela própria dinâmica social, que desafia cada vez mais as relações de poder provocadas pelas diferenças de classe, raça e gênero.
Ayahuasca e estratégias de não esquecimento: patrimônio cultural e práticas de resistência
Autoria: Maíra de Oliveira Dias (UFPB - Universidade Federal da Paraíba)
Autoria: O presente work reúne as primeiras impressões da pesquisa doutoral em curso observando o espectro do patrimônio cultural em comunidades ayahuasqueiras religiosas e indígenas. O pedido de registro do uso ritual da ayahuasca como patrimônio imaterial brasileiro realizado por grupos religiosos tradicionalistas, em 2008, e as questões técnicas e políticas que foram suscitadas nestes mais de dez anos de transcurso do processo; bem como desdobramentos e ações correlatas que direta ou indiretamente adicionaram visões sobre o tema como as três edições da Conferência Indígena da Ayahuasca realizadas no Acre em 2017, 2018 e 2019, reunindo representantes dos povos indígenas acreanos, entre outros. Cartografando as redes como quem segue o entrelaçar do cipó, para além da singularidade da agência da bebida ou mesmo das plantas psicoativas nos processos de memória, delineiam-se primeiramente duas reflexões: a aplicabilidade ou não das ferramentas de patrimonialização eurocentradas em realidades culturais complexas e híbridas como são as comunidades ayahuasqueiras religiosas e indígenas; e a identificação de estratégias de não-esquecimento, sendo estas as dinâmicas que já ocorrem e que tem garantido a salvaguarda dessas culturas de forma autônoma à política patrimonial vigente. Estas considerações trazem novos olhares sobre os conceitos de memória e patrimônio cultural e para sua prática, como um exercício não acadêmico, mas êmico, e assim pode-se aprender meios efetivos de preservação das culturas não eurocentradas a partir do que elas já desenvolveram para sua própria resistência.
Bandeirantes e indígenas na construção do Monumento aos Bandeirantes em Goiânia (1938-1942): representações e narrativas em conflito
Autoria: Jordanna Fonseca Silva (UNB - Universidade de Brasília)
Autoria: Com base no arquivo “Coleção BAND”, é possível propor uma reflexão acerca das representações dos bandeirantes e dos povos indígenas durante o período de ereção do Monumento aos Bandeirantes na nova capital do Estado de Goiás, unidade federativa do governo brasileiro. Posteriormente, veremos como este Monumento é lido pela composição urbana contemporânea. Este Monumento foi idealizado por elites paulistanas entre os anos 1938-1942 menos de uma década após a fundação da nova capital, Goiânia, que ocorreu em 1933. A Campanha Pró-Monumento revela indícios de uma autorrepresentação nacional (PACHECO DE OLIVEIRA, 2015) dos bandeirantes firmada nas concepções heroicas de desbravadores do sertão, sempre os exaltando ao patamar mitológico de “deuses do gibão e couro” (Coleção BAND, 1938). Já os indígenas são vinculados à natureza, ao primitivismo do vazio inexplorado do “sertão”. Essas representações foram elaboradas por intelectuais, acadêmicos, políticos e sobretudo catedráticos das universidades e instituições culturais, tais como museus, Institutos Histórico e Geográfico, entre outras. Salta aos olhos seu pertencimento ao âmbito cultural paulista, mas também carioca, à época capital federal do país. O Monumento aos Bandeirantes é tombado, pela lei municipal, como patrimônio da cidade de Goiânia. Não há em curso processos de destombamentos. Todavia, inscrevem-se na estátua novas narrativas que pretendem ganhar força no espaço urbano, nas formas de pichações, inscrições, manifestações políticas e simbólicas (como atear fogo próximo à estátua). Ademais, o movimento indígena da cidade, em geral atrelado ao movimento estudantil, mobiliza atividades para reclamar o fim da homenagem ao bandeirante, proclamando: “Derruba o Bandeirante!”. A estátua, atualmente, encontra-se ilhada entre avenidas de grande circulação viária, que abrigam o BRT Eixo Anhanguera (leste-oeste) e o novo BRT em construção (Norte-Sul). Nesse sentido, a aproximação física da estátua é possível apenas em momentos de protestos ou mobilizações sociais (como o carnaval). Ícone da cidade até o final dos anos 1980, a estátua aparece como símbolo da nova capital, pioneira da modernidade no planalto central. Pretendemos discutir, portanto, as representações dos bandeirantes e dos indígenas no período de ereção da estátua e refletir sobre os novos usos e apropriações deste patrimônio tombado realizados pelos/as cidadãos/ãs de Goiânia.
Dança do samba: um patrimônio cultural entre a imposição social e a insubmissão ancestral
Autoria: Bárbara Regina Pereira (Fiocruz - Fundação Oswaldo Cruz)
Autoria: A dança do samba integra as matrizes do samba do Rio de Janeiro tornadas patrimônio imaterial pelo IPHAN, em 2007. Uma manifestação cultural exercida por homens e mulheres que vai muito além de uma execução corporal, é carregada de saberes passados entre gerações, principalmente as oriundas de diversas etnias africanas trazidas forçadamente para o Brasil. Nesse sentido, o complexo cultural que envolve o samba sempre fora marcado pela hierarquização cultural e, consequentemente, marginalizados por grande parte da sociedade. Este work aborda o inverso dessa relação: a potencialidade da dança do samba executada principalmente pelas mulheres das várias escolas de samba do Rio de Janeiro, inicialmente denominadas como cabrochas e posteriormente chamadas de passistas. Resultado da análise de trajetórias de dançarinas de diferentes gerações, a pesquisa aponta que há na dança do samba troca de saberes, de experiências, construção de redes de sociabilidade, entre outros elementos. Além disso, observamos que cada geração forjou percursos distintos na vida e no samba e que os contextos históricos e sociais foram, em muitos casos, preponderantes para suas escolhas. Sem visibilidade social, uma vez que muitas exercem profissões quase sempre desvalorizadas por determinados grupos dominantes economicamente, e também nas próprias escolas de samba, em razão da proponderância masculina nos espaços de decisão e de criação, as passistas construíram historicamente, além de redes de relações de trocas e de proteção, memórias sobre seus saberes, o que Pollak (1989) determinou como memórias subterrâneas. Avós, mães e outras familiares mulheres foram, em muitos casos, as principais influenciadoras para que ingressassem no universo do carnaval e começassem a desfilar como dançarinas. Outro fator influenciador foi o território, uma vez que a maioria tinha proximidade com as agremiações, podendo-se concluir que as escolas de samba se configuravam como um quadro social, como conceitou Halbwachs (2003). Por fim, embora a temática étnico-racial não tenha sido inicialmente o foco da pesquisa, as questões foram emergindo na medida em que o work de campo foi avançando. Com isso, a investigação apontou também que o racismo estrutural (ALMEIDA, 2018) ainda é um entrave para que mulheres passistas exponham seus corpos livremente numa manifestação cultural popular, sem que sejam submetidas a julgamentos morais e moralizantes. Afinal, por que diferentes formas de arte – especialmente as chamadas eruditas – pressupõem a existência de um corpo seminu e no caso do samba a prática ainda é alvo de estereótipos, sobretudo hoje com o avanço das demandas feministas em vários campos e mais intensamente em relação ao direito aos corpos nos últimos tempos?
Descolonização na metrópole: entre velhas narrativas e novas epistemologias nos grandes museus da cidade de São Paulo
Autoria: Julio Cesar Talhari (doutorando)
Autoria: A apresentação tem o objetivo de analisar, no caso da cidade de São Paulo, de que maneira discussões sobre a “descolonização dos museus” têm se desenrolado e o que apontam sobre o futuro do museu e seu papel na sociedade. A ideia é lançar luz sobre museus que acolhem grandes narrativas, especialmente por meio de objetos artísticos. Assim, o enfoque, na pesquisa de doutorado – ainda em andamento – que serve de base a este artigo, está em quatro museus de arte que supostamente dariam conta de uma história da arte na cidade: Pinacoteca de São Paulo, Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (Masp), Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP) e Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP). Ademais, inclui-se neste estudo o Museu Paulista (conhecido como Museu do Ipiranga), instituição de caráter histórico, mas com importantes obras de arte. Desse modo, o intuito é analisar como uma ideia de cultura visual reproduzida por esses museus pode ser contestada, e de que maneira, pela perspectiva da descolonização. O estudo em questão tem base em pesquisa etnográfica realizada nesses grandes museus da cidade a partir de 2018. O paper e a apresentação buscarão articular concepções mais teóricas sobre o processo decolonial – especialmente autores do grupo Modernidade/Colonialidade, que enfocam especificamente o giro decolonial na América Latina – com sua recepção e adaptação nas práticas museais em análise. Trata-se de uma tentativa de refletir sobre como grandes museus de arte e história de uma grande metrópole inserem-se nesse debate, que muitas vezes fica restrito a museus etnográficos ou comunitários. Além disso, seguem-se pistas de como a discussão sobre colonialidade e processos de descolonização/decolonialidade no âmbito dos museus pode relacionar-se com pautas na sociedade de minorias políticas que lutam contra narrativas hegemônicas que invisibilizam sua existência e seus processos históricos. Em um contexto em que a modernidade está em cheque, se é que de fato realizou seu projeto, como o museu, uma invenção do Iluminismo, lida com as exigências da contemporaneidade? A questão aprofunda-se ao pensarmos o caso brasileiro, que mesmo na periferia da modernidade e do Ocidente abriga grandes museus com narrativas europeias, seja por meio de objetos artísticos, seja por meio de objetos e documentos históricos. Como os museus brasileiros respondem às demandas de movimentos sociais que questionam o lugar supostamente neutro do branco, descendente de europeus, e ponto de partida da narrativa museal, como criador de explicações que se propõem universais? O que, no nosso contexto, e especificamente na cidade de São Paulo, significa a demanda por uma “descolonização dos museus”? Essas são questões motivadoras da investigação proposta.
Do Museu Paulista às salas de aula: a representação visual de bandeirantes na produção editorial didática brasileira
Autoria: Thais Chang Waldman (pós doutorado)
Autoria: Este work propõe analisar as apropriações, em livros escolares publicados ao longo do século XX, de modelos de representação visual consagrados no Museu Paulista, enfocando sobretudo os conteúdos simbólicos neles presentes no que tange ao forjamento de uma identidade nacional que encontra no bandeirante sua essência. Popularmente conhecido como Museu do Ipiranga, o Museu Paulista foi instalado em 1895 no interior de um edifício erguido durante o Império para celebrar a Independência do Brasil. Em 1917, Afonso Taunay (1876-1958) assume a direção da instituição, tendo em vista as comemorações do Centenário da Independência, celebrado em 1922. Durante sua longa gestão como diretor (1917-1945), Taunay procurou converter o local em uma espécie de panteão em homenagem não só à Independência nacional, mas também à história de São Paulo e daqueles que, a seu ver, seriam seus principais protagonistas, os bandeirantes. Para isso, encomendou uma série de pinturas históricas e de esculturas celebrativas, reproduzidas à exaustão em livros didáticos brasileiros, principal instrumento de difusão do acervo do Museu Paulista ao longo do século XX, material que carece de um exame detido em relação aos padrões discursivos dessa forma de apropriação. Este work ambiciona formar um corpus documental sobre os usos dessa iconografia musealizada pelo mercado editorial que alimente o banco de dados do Museu Paulista e seu próprio acervo de material didático, assim como a capacitação de seu Serviço Educativo para abordar tais acervos. Pretende, por meio de tais ações, colaborar com a reformulação da abordagem museológica dessa instituição estatutária da USP tendo em vista a sua reabertura nas comemorações do Bicentenário da Independência
Estamos falando de museologia social, museus comunitários, colaborativos ou ecomuseus? Reflexões sobre os Museus de Sociedade a partir do contexto francês
Autoria: Samuel Ayobami Akinruli (UFMG - Universidade Federal de Minas Gerais)
Autoria: Essa comunicação tem o intuito de refletir sobre as disputas de territórios e práticas discursivas dos museus no contexto da França a partir da experiência etnográfica desenvolvida ao longo de seis meses entre os anos de 2019-2020. Por meio da produção de uma cartografia social das instituições museológicas francesas que foram organizadas sob três grandes linhagens – Museus de Arte, Museus de Ciências Naturais e Museus da Sociedade – intenta-se promover discussões pertinentes ao campo da Antropologia, qual seja pela prática etnográfica e pela percepção conceitual de noções como comunidade, acervo, identidade, sociedade e território. O recorte será dado por meio de alguns exemplos que se enquadram na concepção de Museus de Sociedade em contraste a alguns Museus de Arte. Tais reflexões ressaltam a gênese e as discussões sociais relacionadas às concepções de museus sociais, comunitários, colaborativos e ecomuseus, de modo que é algo a ser ponderável se se tratam de sinônimos ou se distanciam epistemologicamente e cronologicamente. Podemos comparar a realidade francesa à brasileira em suas experiências no tocante à museologia social? Por fim, tais questões expõem em profundidade elementos pertinentes à crítica pós-colonial no contexto contemporâneo, na qual narrativas outras são tomadas por narradores antes invisibilizados ou marginalizados, tendo ações passíveis de profundos entraves por representados e representações nos museus que são alvo da reafirmação ou negação do poder e dos discursos coloniais.
Interpretando nuances: Mulheres Kaingang monolíngues e bilíngues do Projeto Memória Indígena do MAE-UFPR
Autoria: Caroline Leonardi de Quadros (UFPR)
Autoria: Na intenção de trabalhar uma história contra-hegemônica acerca do contato dos povos indígenas residentes do estado do Paraná com a sociedade abrangente, uma equipe transdisciplinar fora constituída em meados dos anos 80. Essa equipe de pesquisadoras formava o Projeto Memória Indígena, ou PMI, que hoje compõe o acervo documental do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade Federal do Paraná. O intuito de preencher as lacunas da história ocidental sobre o contato foi realizado por meio de viagens até as terras indígenas Marrecas e Rio das Cobras, ambas no oeste paranaense, onde a equipe compilou o total de 148 fitas cassete contendo entrevistas com indígenas Kaingang, Guarani e Xetá. Devido a característica populacional das duas TIs visitadas, o número de entrevistados Kaingang era superior aos demais grupos. E dentre essas fitas cassete, 38 das narrativas dispõe de vozes de mulheres Kaingang. A partir da audição das fitas e análise da materialidade dos documentos, foi possível perceber não só as diferenças entre as entrevistas de homens e mulheres Kaingang, como também os contrastes que as entrevistas com mulheres monolíngues e bilíngues mantinham entre si. A reflexão do work passa por essas distinções, vendo-as como oportunidade de trazer questões relativas à gênero na sociedade Kaingang dentro de uma coleção etnográfica e os possíveis usos desse material para abarcar uma forma de memória de mulheres Kaingang contemporâneas em relação às mulheres Kaingang do PMI.
Museus em tempos decoloniais: os museus comunitários do Rio de Janeiro em colaboração com o Museo Nacional de Antropología de Madrid.
Autoria: Renata da Silva Montechiare Pires (Flacso)
Autoria: Este work toma como ponto de partida a reflexão sobre as diferenças entre dois tipos de museus, quando pensados em sua relação com o campo dos debates decoloniais: museus comunitários concebidos num cenário crítico à hegemonia da narrativa civilizatória e enciclopédica (ou aqueles que Varine classificou como à serviço da comunidade e de seu desenvolvimento); e museus chamados “clássicos”, criados durante o século XIX e início do século XX, que na concepção do mesmo autor seriam “museus normais”, ou seja, dedicados ao conhecimento e à cultura (VARINE, 2014, p. 26). Portanto, tomamos como premissa a renovação dos debates sobre o mundo dos museus, a partir dos processos de descolonização da África e da Ásia nos anos 1960 e 1970. E ainda, a renovação do interesse dos antropólogos pelos museus e seus objetos como práticas sociais (CLIFFORD, 1988; GONÇALVES, 1994). As transformações pelas quais os museus vêm passando, desde as acusações derivadas dos debates pós-coloniais (AMES, 1992; CLIFFORD, 1991; BENNETT, 1996; PRICE, 2007), instigam a observar como reagem à cobrança pela revisão de suas práticas de colecionamento e exibição (DUARTE, 2013; L’ESTOILE, 2007). O Museo Nacional de Antropología de Madrid, fundado em 1875 por um médico e pesquisador de antropologia física, recentemente exibiu uma mostra temporária bastante distinta de suas exposições de longa permanência. A exposição Rio somos nos! Los museos comunitários de Río de Janeiro e el “giro decolonial” esteve aberta entre 22 de novembro de 2019 e 16 de fevereiro de 2020, e contou com curadoria colaborativa entre o museu e a REMUS – Rede de Museologia Social do Rio de Janeiro. A mostra esteve vinculada a uma efeméride celebrada na Espanha, com a qual o MNA buscou vincular-se de modo conciliatório entre as festividades locais e sua proposta de revisão crítica sobre as coleções que detém e seu modo de exibi-las. Em dezembro de 2019, a Espanha celebrou os 500 anos da expedição de Fernão de Magalhães, cuja circum-navegação teve o Rio de Janeiro como sua primeira parada, atravessado o Atlântico. O museu, em sua comunicação oficial sobre a exposição, informava tratar-se de uma boa oportunidade para aproximar-se da cidade e conhece-la melhor, na voz daqueles que vivem em seus bairros periféricos e favelas. Diante das distintas missões, responsabilidades e cobranças éticas que envolvem os museus comunitários brasileiros e um museu antropológico espanhol, buscamos analisar como a colaboração integra o cenário de renovação das práticas museológicas contemporâneas.
O Centre d’Art e os sentidos da arte popular haitiana
Autoria: Júlia Vilaça Goyatá (UFMA - Universidade Federal do Maranhão)
Autoria: Em 1944 nascia no Haiti o Centre d’Art – centro de promoção, ensino, exibição e divulgação do que se considerava ser uma arte genuinamente haitiana. Junto a uma série de iniciativas museológicas que aconteciam simultaneamente na capital Porto Príncipe, o centro refletia o compromisso de intelectuais, artistas e homens de política com um projeto de modernização do país, após um longo período de ocupação norte-americana na ilha (1915-1934). Proponho acompanhar, através do que chamo de um exercício etnográfico com documentos, as narrativas que permitiram tanto o surgimento da instituição naquele momento, como a circulação de um conjunto de pintores haitianos, que chamados de populares, ganharam notoriedade fora do país em função de suas qualidades autodidatas e dos motivos que pintavam. O caso é interessante não apenas do ponto de vista da história da arte haitiana - é preciso lembrar que o centro de artes se insere em um momento de ebulição política no país, marcado por vozes progressistas e trânsito internacional - mas também do ponto de vista das relações, por vezes tensas, entre a antropologia, a arte e os museus. Pretendo refletir sobre como no pós-guerra a categoria popular, a meio caminho entre as ditas belas-artes e as artes primitivas, começa a ganhar espaço tanto nos discursos institucionais locais quanto nas publicações relacionadas à Unesco e ao Conselho Interncional de Museus, ambos fundados na mesma década de 1940. Dessa forma, o caso haitiano nos ajuda a pensar sobre o significado, a resiliência e a pertinência da categoria ‘arte popular’ (e, em última instância, também ‘cultura popular’), que desde então está presente tanto em projetos museológicos quanto em discursos antropológicos, especialmente no contexto das materialidades afro-latino americanas e caribenhas.
Para além da acessibilidade: pensando o pertencimento e a participação dos sujeitos surdos no Museu de Arte do Rio.
Autoria: Silvia Borges Correa (ESPM Rio), Silvia Borges Correa Vanessa Bartolo Guimarães Pereira
Autoria: Este work se propõe a analisar como o Museu de Arte do Rio (MAR) tem promovido o acesso, o pertencimento e a participação da comunidade surda usuária da Língua Brasileira de Sinais (Libras) nesse equipamento cultural. O MAR se destaca no cenário de museus do Rio de Janeiro com uma gestão que consolida ações na perspectiva de garantia do direito linguístico das pessoas surdas através da Libras. Parte-se aqui do princípio que é através da Libras que as pessoas surdas podem se comunicar, podem participar da vida social e, por consequência, se sentirem pertencentes à sociedade, efetivando assim o processo de cidadania que está para além dos direitos garantidos por lei. A partir da etnografia realizada no MAR pretende-se discutir não somente o pertencimento e a participação dos sujeitos surdos em um equipamento cultural específico, mas também a possibilidade de as pessoas surdas usufruírem de seu direito linguístico na vida social da cidade. Neste sentido, pretende-se refletir sobre os meios que garantem a participação plena e dão a esses sujeitos o sentimento de pertencimento à cidade, levando em consideração a função social dos museus, equipamentos que trazem para o cenário atual a necessidade de aprofundarem-se as ações de comunicação, de educação e de pesquisa, desenvolvendo ações de caráter inclusivo que levem em consideração as características desses sujeitos sociais. Para Nascimento Júnior (2009) é necessário pensar ações que visem à valorização e ao empoderamento social dos cidadãos por meio dos museus, além de compreendê-los como lugares de direito e cidadania, como lugares de inclusão cultural, de resistência e combate aos preconceitos de toda ordem. A acessibilidade em museus implica a criação de programas, atividades e execução de políticas que ofereçam a possibilidade de as pessoas com deficiência participarem ativamente das propostas oferecidas. Para Martins (2013), políticas de inclusão geram alterações no conceito de acessibilidade, pois leva necessariamente à criação de novas relações entre museus e públicos que exigem diferentes formas de aproximação. Essas ações irão requerer o exercício de novas práticas museais para responder aos desafios colocados pelo modelo inclusivo. A pesquisa realiza aponta para o fato de que no universo dos museus da cidade do Rio de Janeiro quando existem ações específicas, estas são pontuais e nem sempre são adequadas para promover a cidadania dos surdos. Nesse contexto, enquanto a maioria dos museus da cidade não leva em consideração as especificações do povo surdo, bem como a sua língua e sua cultura, o modelo de gestão do Museu de Arte do Rio (MAR) desponta com ações específicas para a comunidade surda que vêm promovendo efetivamente o pertencimento e a participação dessas pessoas.
Por que a cerâmica africana não está exposta no Museu das Bandeiras?
Autoria: Wynne Borges Carneiro (UFG - Universidade Federal de Goiás)
Autoria: A memória é um produto social das relações construídas. O museu é um espaço de disputa da memória construída e também de memória visual, da expressão cultural. Considera-se importante a memória nos processos de empoderamento social, identitário e político das populações afro-diaspóricas, de produção e guarda do patrimônio material e imaterial produzido no calor de suas lutas sociais. O ato de registrar e valorizar a memória coletiva dos processos sociais a partir da perspectiva dos sujeitos em luta, visa a produção e sublevação de contra-narrativas e contra-discursos, revelando o protagonismo dos sujeitos na transformação histórica e social. Diante disso, esse artigo tem o intuito de enegrecer algumas questões sobre os motivos, pelo qual a cerâmica africana encontrada na Cidade de Goiás, e erroneamente atribuída aos indígenas da etnia goyases, não estar exposta no Museu das Bandeiras. O Museu das Bandeiras é um museu goiano de tutela federal situado na Cidade de Goiás que possui um discurso nacional, de patrimônio, memória e história e remete a um período da historiografia do Brasil, que foi o ciclo do ouro. A localidade do museu, no nascedouro da sociedade goiana, cuja origem remete a formação da construção da identidade do povo goiano e a importância da outrora Vila Boa, pois posteriormente e até o ano de 1937 foi a capital do estado de Goiás. O que se investiga é qual o tipo de patrimônio é relevante e de interesse público ao ponto de torná-lo parte do acervo museológico do Museu das Bandeiras. Ou mesmo que haja interesse e relevância, o público vilaboense em específico e goiano no geral toma como herança patrimonial as reminiscências afro-diaspóricas? Para tentar resolver essas questões tomarei como referência a pesquisa da arqueóloga Gislaine Tedesco resultado da escavação realizada na Cidade de Goiás a época do título de Patrimônio Histórico da Humanidade em 2001.