GT 37. Estudos em contextos do Sul Global: novos inimigos, novas possibilidades e a (in)sustentabilidade das perspectivas e das redes Sul-Sul

Coordenador(es):
Lívio Sansone (UFBA - Universidade Federal da Bahia)
Luena Nascimento Nunes Pereira (UFRRJ - Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro)

O campo dos estudos em outras regiões do Sul Global já faz aproximadamente 20 anos no Brasil. O momento é, pois, maduro para uma avaliação deste campo de pesquisa, que tem atraído um conjunto de pesquisadores e questões que se manifestam em projetos de pesquisa, publicações e seminários e gerado um acúmulo de reflexões sobre as várias regiões do Sul Global (África, Ásia, Caribe, América Central e Meridional), desenvolvendo novas perspectivas comparativas e transnacionais e contribuindo para a internacionalização da pós-graduação em ciências humanas. Apesar da abertura de novas oportunidades de pesquisa e redes enfrentamos novos obstáculos proporcionados pela atual era dos extremos, que identifica a perspectiva Sul-Sul com um conjunto de políticas sociais progressistas. Tal cenário torna cada vez mais premente a importância de um diálogo qualificado sobre perspectivas, oportunidades, limites e desafios de um campo que passa a tomar expressão na antropologia feita no Brasil. O GT tem por objetivo reunir trabalhos desenvolvidos nos contextos acima mencionados promovendo a continuidade de um diálogo qualificado sobre pesquisas antropológicas. Apesar da ênfase na pesquisa etnográfica, o GT está aberto à interdisciplinaridade, pela importância do diálogo com historiadores e outros pesquisadores nas ciências humanas. Com esse objetivo, convidamos pesquisadores que abordem temáticas diversas que respondam aos inúmeros desafios da pesquisa sobre e estes contextos.

Palavras chave: Sul-Sul, Africa, extremismo, sovranismo
Resumos submetidos
Arquitetura, modernidade e raça: apontamentos sobre os pressupostos raciais do pensamento moderno
Autoria: Inácio de Carvalho Dias de Andrade (USP - Universidade de São Paulo)
Autoria: Tomando o Movimento Moçambicano de Arquitetura Moderna como ponto de partida, proponho analisar os modos pelos quais uma rede transnacional de arquitetos, artistas, administradores coloniais, burocratas, cientistas e técnicos ajudaram a definir a modernidade em Moçambique tardo-colonial. Nesse sentido, estou lidando com questões relacionadas à aplicabilidade das ciências sociais e humanas em regiões coloniais e pós-coloniais; às assimetrias de poder na prática científica e na produção de conhecimento; à produção de epistemologias modernas nas antigas colônias europeias e às maneiras pelas quais diferentes disciplinas definiram as bases daquilo que entendemos como modernidade. Ao abordar essas questões, proponho analisar a modernidade ocidental como um projeto racial, elaborado por meio de racializing assemblages (WEHELIYE, 2014), contextos sociais (COLLIER; ONG, 2005) nos quais instituições, discursos, práticas e artefatos culturais definem os grupos sociais estudados, nosso senso de pertencimento e o pano de fundo epistemológico por meio do qual inquirimos a nós mesmos, a sociedade e o Outro. De modo a contribuir para a construção de uma genealogia da modernidade em Moçambique, selecionando termos, critérios e controvérsia que marcaram a visão atual sobre modernidade e suas contrapartes na África Austral, concebo raça - suas origens, definições e transformações - como uma categoria transversal e inescapável. De maneira similar àquela proposta por Weheliye, entendo raça como a categoria central capaz de aglutinar contextos sociais em torno de um projeto supostamente englobante da modernidade. Em outras palavras, como Mbembe coloca, raça e modernidade estão inextrincavelmente ligadas, no entanto, essa conexão precisa ser demonstrada etnograficamente. Em um mundo em que formas difusas de mercantilização colocam o humanismo em risco (MBEMBE, 2001) e reações conservadoras à ecologia política tendem a abandonar qualquer pretensão de compartilhar um futuro comum (LATOUR, 2019), examinar visões alternativas sobre a humanidade torna-se uma tarefa imperativa. Nesse sentido, perguntar-se como os moçambicanos historicamente abordaram questões sobre seu lugar no mundo não é apenas uma questão de “descolonizar” a modernidade ou de etnografar exóticas “cosmologias do capitalismo”, mas constitui um esforço premente de denunciar pressupostos racialistas de instituições e categorias de pensamento modernas, visando renovar e reimaginar o humanismo como uma epistemologia inclusiva. MBEMBE, A. On the Postcolony. Berkeley: UC Press, 2001. LATOUR, B. Down to Earth. La Découverte, 2019 ONG, A.; COLLIER, S. J. Global assemblages. Oxford: Blackwell, 2005. WHEHELIYE, A. Habeas Viscus: racializing assemblages, biopolitics and theories of the human. Duke University Press, 2014.
Conexões econômicas ilícitas no Sul Global: A troca entre carros e cocaína na fronteira entre o Brasil e a Bolívia
Autoria: André de Pieri Pimentel (UNICAMP), Isabela Vianna Pinho
Autoria: Esse artigo propõe uma análise sobre circuitos econômicos ilícitos no Sul Global a partir da troca entre carros e cocaína na fronteira entre o Brasil e a Bolívia. Segundo vem sendo observado nos últimos anos, é muito comum que veículos roubados ou furtados em regiões brasileiras próximas à fronteira com a Bolívia sejam destinados ao país vizinho para serem trocados por cocaína. Essas transações alimentam não apenas a produção de cocaína na Bolívia, como também a venda varejista da droga e o roubo de carros no Brasil. E não só os “mercados ilegais” ganham dinheiro com tais transações: muitos circuitos econômicos inseridos na chamada “economia formal”, como a indústria automobilística e o mercado de seguros de veículos, também lucram com elas. Além disso, esse intercâmbio alimenta mercados globais, na medida em que a cocaína adquirida na Bolívia pode, a partir do Brasil, adentrar mercados estrangeiros, como a África, a Europa e os Estados Unidos. Uma pluralidade de empreendedores, de baixos operadores e mesmo de agentes estatais se conectam a essas redes, extraindo delas ganhos muito variados. E uma pluralidade de territórios se conectam, de forma desigual, através de tais redes. O objetivo desse artigo é, a partir dessas conexões econômicas em específico, pensar conexões entre os estudos sobre o Sul Global e uma análise sobre a produção de circuitos econômicos ilegalizados. O artigo busca analisar especialmente de que forma esses circuitos produzem territorialidades no Sul Global, influenciando nas dinâmicas urbanas, econômicas e criminais que se produzem a partir deles. Ademais, pretende-se analisar que tipo de conexões desiguais se produzem entre esses muitos agentes e esses muitos territórios que se articulam através dessas redes. Por mais que a conformação e a territorialização de tais circuitos esteja atrelada à produção de desigualdades múltiplas, não se pode ignorar que tais circuitos ilegais atualmente movimentam e mobilizam um enorme volume de pessoas, redes, recursos e dinheiro, mantendo inclusive interfaces múltiplas com a “economia formal”. No contexto contemporâneo, os mercados ilegais são um tema de relevância reconhecida em muitos campos, desde o contexto acadêmico até a política institucional e os órgãos internacionais de regulação da economia. No entanto, é menos comum que se lembre que, longe de produzir apenas vulnerabilidade econômica no Sul Global, esses mercados representam também inserção econômica para esses territórios e para os agentes que neles se engajam. Esses mercados produzem, dessa forma, uma “globalização vista das margens”, e servem como interessantes motes empíricos para pensarmos interfaces entre desenvolvimento econômico e desigualdades.
Dos “aguadeiros” aos “mairuwa”: os “donos da água” em Salvador (BR) e Lagos (NG). A transmissão transatlântica das “visões” de negócio e da técnica hidráulica.
Autoria: Diana Margarida dos Santos Catarino (UFBA - Universidade Federal da Bahia)
Autoria: As articulações para o acesso à água potável são envoltas em enredos que relacionam escassez e indispensabilidade. O seu manejo em Salvador (BR) e Lagos (NG) no séx. XIX foi atravessado pela transferência da visão técnica, econômica e comercial. Em Salvador a venda d´água de poços particulares foi amplamente adoptada e configurará o modelo de negócio da Companhia do Queimado (1853-1905). Os “aguadeiros” concorriam ao serviço através do work de ganho, encontrando no transporte do líquido dos pontos de venda para o domicilio um recurso para a sobrevivência. Contemporaneamente retornava para Lagos um ex “escravo aristocrático” que aprendeu com o seu “proprietário” a “fazer negócio”. Seu filho, Candido da Rocha, repete a estratégia de monopólio da Companhia Baiana construindo um Império através da exploração do abastecimento d´água potável para a Ilha de Lagos que acontecia através da sua captação do rio Ogun sendo cobrada a travessia do canal. Ao instalar no poço existente no seu sobrado um mecanismo de ferro importado, ampliou a quantidade disponível para venda. Ao represar e canalizar a água do rio Iju, com o conhecimento da técnica e a perspicácia desenvolvida no outro lado do Atlântico, desenvolveu o serviço de distribuição com a anuência da administração colonial. Em 1914 quando a administração o nomeou responsável pela “Lagos Water Corporation” Da Rocha já era descrito como o homem mais rico da Nigéria. Apesar da Companhia do Queimado ter auferido reconhecimento por parte do IPHAN, em 1989, os parâmetros da sua atuação foram recentemente estudados. O conhecimento destes novos dados possibilitam a formulação de novas relações causa/efeito e transferência que, em África, encontram novos materiais de work, nas memórias de familiares de “Da Rocha”, da literatura romanceada de Antônio Olinto (2009) trazendo para a formulação da hipótese de pesquisa novas dificuldades metodológicas. Ao estudo de conectividades entre os dois continentes convive o factual, o romance, o mito. Lagos é conhecida pela cidade da “autoinfraestrutura” uma vez que apenas 10% da população tem acesso à água fornecida pela estatal . Aí os aguadeiros foram denominados no idioma hauça como “mairuwa” que significa “os donos da água” que acentua a dependência do abastecimento acessível apenas àqueles que podem pagar pelo serviço. Salvador mantém o apartamento da água no espaço público, mantendo as suas fontes em situação de degradação e a desigualdade na distribuição territorial demonstra como historicamente o cerceamento do acesso à água decorrem altos rendimentos privados que acentuam a desigualdade social ressaltando a necessidade de repensar a perspectiva da sua distribuição num momento em que o crescimento da comercialização da água já supera o de refrigerantes.
Estudos Antropológicos em e sobre contextos africanos a partir do Brasil, em que ponto estamos?
Autoria: Andréa de Souza Lobo (UNB - Universidade de Brasília), Vinícius Venancio (UnB)
Autoria: O campo dos estudos africanos tem atraído um número crescente de cientistas sociais no Brasil, com pesquisas em diferentes regiões do continente, a partir de trajetórias acadêmicas distintas e variadas perspectivas teóricas. Mostra-se oportuno um esforço em melhor articular esses works, dando a conhecer o que se tem produzido, adensando o diálogo e discutindo as possibilidades futuras nesse campo emergente. Esta comunicação busca reunir alguns dados e reflexões sobre as experiências de investigação em diferentes contextos de África. O foco recai sobre a potencialidade dos estudos de caráter comparativo – colocando em relação variadas realidades sociais africanas ou analisando semelhanças e diferenças entre determinados contextos em África e outros observados fora do continente. Pretendo abarcar discussões sobre works realizados ou em andamento, bem como oportunidades de investigação em áreas ainda pouco exploradas. É uma retomada da dupla vocação das ciências sociais, onde o conhecimento gerado por meio de pesquisas empíricas torna-se alvo de olhar comparativo, permitindo o desenvolvimento de um debate de maior amplitude.
ETNOGRAFIAS DECOLONIAIS: possibilidades de crítica cultural aos modelos de “desenvolvimento” e (in) sustentabilidade ambiental ao sul do Brasil.
Autoria: Margarete Fagundes Nunes (FEEVALE - Universidade Feevale)
Autoria: Sob a perspectiva da etnografia da duração, o artigo articula as categorias work, paisagem urbana e relações étnico-raciais, tendo como locus de investigação o Vale do Rio dos Sinos/RS, Brasil. Apoia-se no estudo do Grupo de pesquisa Modernidad/Colonialidad, vinculado ao Clacso – Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, situando o objeto de investigação à leitura crítica dos projetos de “desenvolvimento” da América Latina e da situação de colonialidade do poder dos seus territórios, tanto no que se refere à realidade física desses espaços quanto das suas dinâmicas socioculturais. O artigo propõe uma reflexão sobre etnografia e decolonialidade, na medida em que a etnografia da duração permite a compreensão das narrativas dos habitantes da cidade em uma dimensão espaço-temporal, isto é, visa apreender a rítmica das ocupações territoriais, os arranjos, as negociações e os conflitos entre os diferentes grupos, ao longo do tempo, na disputa pelos recursos naturais e pela implantação de modelos de “desenvolvimento” na configuração dos territórios e das paisagens urbanas.
Muito pano pra manga: cruzando fronteiras na moda sul-africana.
Autoria: Geovanna Belizze de Paula Santana (UNB)
Autoria: Masa Mara é uma das promissoras marcas de moda estabelecidas na Cidade do Cabo, África do Sul. Contudo, a proposta da marca nos leva muito além das fronteiras do país austral. Masa Mara, expressão que significa “eles vieram de mãos vazias” como alegoria para coragem, é muito mais do que uma produtora de vestuário, é um veículo de histórias. O estilista que nasceu em Ruanda, se tornou refugiado e passou por diversos outros países do continente africano tem muitas dessas histórias para contar através das roupas que ele produz, nas estampas que ele cria. Se apresentando como Eli Gold, o jovem estilista ocupa mais do que a função de mente criativa. Guiando uma marca por conta própria, Eli assume também responsabilidades econômicas, estratégias e artísticas. A experiência particular de Eli Gold, o leva a ter uma perspectiva específica sobre questões como fronteiras nacionais, pan-africanismo e ancestralidade. Assim como é uma marca que permite pensar como a indústria da moda na África do Sul se dá na prática. Esse artigo, para além do caso em questão, busca despir a indústria da moda de seu aparente glamour. Assim como reafirmar que está é uma pesquisa de antropologia da moda, pois a África do Sul (e o continente como um todo) são produtores criativos de moda, não apenas de matéria prima. A arte de fazer moda não é, e não deveria ser vista como propriedade do norte global.
Navegando Sul-Sul com uma Bússola Ponderada Norte: Os desafios epistemológicos e práticos da nova monografia de Angola, Brasil e África do Sul.
Autoria: Jess Auerbach (North West University)
Autoria: Este artigo baseia-se em pesquisas realizadas enquanto estudante de doutorado da África do Sul em Stanford com bolsa sanduiche reversa no Brasil. Explora o processo de formulação de um projeto de pesquisa baseado no diálogo Sul-Sul, neste caso uma análise da migração de curto prazo de Angola para o Brasil para estudos universitários. O work realizado foi baseado em um profundo compromisso intelectual com os diálogos no Sul, mas foi finalmente publicado como um livro pela imprimadora de Norte, com um público do norte. Nenhum editor aceitaria o livro na África do Sul, por causa dos interesses limitados dos leitores sul-africanos que DEVEM se envolver no norte e, portanto, têm pouca capacidade de leitura profunda de obras em português ou em tradução. Essa experiência coloca questões profundas em relação à produção acadêmica. Como a teoria, o diálogo e o intercâmbio Sul-Sul podem prosperar em contextos de vieses referenciais do Norte que também incluem contribuições financeiras e promocionais? Como abordamos a “ponderação do norte” das bússolas que usamos para orientar nossa pesquisa e ensino, especialmente em contextos nos quais o inglês é designado como a linguagem do pensamento dominante? Como comunicamos os insights de outros espaços do sul de uma maneira que não exótico ou perpetua estereótipos desiguais, mas simplesmente se envolve através do discurso acadêmico em estruturas sistêmicas acadêmicas muito diferentes? Este artigo baseia-se no meu livro Da Água ao Vinho: Tornando-se Classe Média em Angola (University of Toronto Press, 2020) para começar a responder a essas perguntas.
O Império da Ciência Branca
Autoria: Everton Lamare Costa Melo e Silva (Prefeitura de Senador Canedo), Wynne Borges Carneiro
Autoria: A intenção do presente artigo é promover uma reflexão crítica acerca das bases epistemológicas que orientam o pensamento intelectual no contexto de sociedades que passaram por processos de colonização. O centro desta reflexão tem como base o pensamento científico ocidental, que trataremos ao longo do texto sob a terminologia de “ciência branca”. Entendendo que esta não seja a única forma de conhecimento sistematizado, adquirido através do exercício da observação e da pesquisa, partiremos do pressuposto que existem outras ciências, e outros saberes, provenientes de outras origens que não a européia branca. Tentar-se-á estabelecer, através do diálogo entre intelectuais do pensamento feminista negro e do pensamento decolonial, uma análise sobre o processo de invisibilização de saberes de origem não-branca, bem como explorar alternativas que permitam pensar na superação da colonização epistêmica eurocêntrica.
Por uma antropolítica do mar: pescadores artesanais em Cabo Verde frente a acordos de pesca
Autoria: Madian de Jesus Frazão Pereira (UFMA - Universidade Federal do Maranhão)
Autoria: Com a perspectiva de uma antropolítica do mar, discorro sobre a pesquisa de pós-doutorado que desenvolvi, tendo como referência sobretudo o contexto cabo-verdiano no que concerne a aspectos sobre a disputa por recursos marinhos e uma espoliadora indústria pesqueira que coloca em debate a governança dos oceanos, tornando cada vez mais vulnerável o universo de pescadores e pescadoras artesanais. No arquipélago cabo-verdiano, assiste-se ao incentivo de processos de desenvolvimento ligados à pesca industrial estrangeira, sobretudo através de acordos de pesca com a União Europeia, como fator agravante de conflitos. No caso brasileiro, há diversos conflitos socioambientais que envolvem as comunidades pesqueiras, impactadas pelo avanço da aquicultura empresarial, pelo turismo predatório e por grandes projetos, sendo a maioria voltada para atividades de mineração. Interessa destacar no presente work o contexto cabo-verdiano em que, através da pesquisa de campo, os pescadores artesanais têm apontado tensões decorrentes da relação desigual no setor da pesca. Atrelado a um discurso desenvolvimentista, mas com insuficientes recursos financeiros, o governo cabo-verdiano tem sido levado a recorrer a apoios da cooperação internacional e tem celebrado acordos de pesca. Por essa via, o Parlamento Europeu tem aprovado protocolos com Cabo Verde, permitindo que navios de Espanha, França e Portugal pesquem atum e outras espécies afins no território marinho cabo-verdiano. Enquanto os pescadores artesanais em seus pequenos botes não podem ultrapassar 3 milhas da costa, por medidas de segurança impostas pela regulamentação da pesca artesanal, as embarcações industriais, grandes atuneiros, que deveriam ficar 12 milhas afastadas da costa, têm avançado cada vez mais, segundo relatos dos pescadores artesanais, e causado grande impacto negativo na pesca artesanal. Os pescadores artesanais têm apontado tensões decorrentes da relação desigual no setor da pesca, e que tem obrigado muito deles a ingressar na pesca semi-industrial ou industrial, quando possível, ou a migrar para outros países e para outras áreas de work ingressando, sobremaneira, como operários na construção civil, em busca de melhores condições de vida não só individualmente, mas para a sua rede familiar, cujos membros que permanecem em Cabo Verde muitas vezes dependem das remessas de recursos daqueles que migraram. Como desafio analítico é instigante perceber o alcance de como projetos e políticas denominadas de desenvolvimento, e de um setor que vem sendo denominado de "economia azul", executados nos países do Sul singularizados por um vasto litoral, desencadeiam conflitos com pescadores artesanais e ao mesmo tempo promovem resistências e reações de forma organizada desses grupos.
Possibilidades, usos e desafios da produção de conhecimento no sul sobre o fazer democrático
Autoria: Mayane Pereira Dore (Complutense)
Autoria: O discurso científico foi historicamente dominado pela produção do norte global, silenciando, em contrapartida, múltiplas formas de interpretação do mundo. A partir dessa percepção, as epistemologias e ontologias do sul, enquanto área de estudo, denunciam como a construção da objetividade, verdade e universalidade, a partir das experiências do norte, operam como deslegitimizadoras da capacidade de produção de conhecimento em outras regiões do mundo. Um exemplo relevante desse processo foi a criação de novas gramáticas para a compreensão e prática democrática em países como Bolívia e Equador, mas também Brasil em décadas anteriores. Apesar das diferenças entre os processo políticos de cada país, é possível identificar um traço comum em cada caso, que pode ser lido como a produção de pensamentos contra-hegemônicos sobre a democracia. Os atores que questionaram tais pensamentos hegemônicos — como no caso da democracia participativo no período de redemocratização Brasil, do estado plurinacional na Bolívia, ou da chamada democracia intercultural — desafiaram uma identidade atribuída por um Estado colonial, disputando uma gramática de exclusāo e expandindo os horizontes democráticos. Tais processos resultaram em importantes contribuições para as ciências socias, levantando, em especial, novas questões antropológicas sobre o fazer político. Esse ensaio busca contribuir para a avaliação deste campo de pesquisa, analisando as principais contribuições da região para o pensamento democrático nas décadas recentes. O objetivo deste balanço será discutir as possibilidade, limites e desafios do uso dessa produção em perspectivas comparativas para além do sul, expandindo-se para norte global. Parto para isso do meu atual work etnográfico em Sydney, Austrália, para refletir sobre as possibilidades de uso das críticas e análises produzidas no sul sobre processos democráticos para pensar, e repensar, a democracia representativa e liberal do norte global.
Relações humanitárias entre Brasil e Senegal: é possível falar em humanitarismo Sul-Sul?
Autoria: Gilson José Rodrigues Junior (IFRN - Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte)
Autoria: É possível observar que, nos últimos dez anos, a atuação humanitária brasileira em contexto internacional tem extrapolado as ações estatais e se apresentado também por meio de agências humanitárias atuantes em outros países, predominantemente africanos. Nesse contexto, a reflexão aqui proposta tem seu início em 2014, ainda no início do doutorado, o qual se estendeu até 2019. Ali a pesquisa se dedicou a seguir as redes humanitárias de duas agências brasileiras – extintas ainda durante o desenvolvimento do work de campo – atuantes, respectivamente no Brasil e no Senegal. Tal work contribuiu com o aprofundamento das questões concernentes a um modus operandi humanitário, o qual, ainda que realizado por brasileiros, estava inevitavelmente calcado em um modelo estruturado na supremacia branca, fruto do próprio ideal hegemônico de modernidade e, consequentemente colonizador. Nesse sentido, pôde-se perceber que as próprias escolhas geopolíticas feitas pelas referidas agencias, apontam para uma manutenção de desigualdades e reificação de hierarquias históricas, políticas, socioeconômicas, de gênero e raciais: as pessoas então assistidas em Tuparetama – semiárido pernambucano – e na periferia de Dakar, eram não apenas representadas a partir de histórias únicas de sofrimento, miséria e vulnerabilizações, como também eram predominantemente negras. Diante disto, observou-se que mesmo quando se trata de um país do chamado eixo Sul, como o Brasil, os agentes humanitários, suas regiões e estados de assim como suas escolhas revelam a manutenção do mesmo modelo. Com base nisso, vale salientar, que esta proposta se concentrará em pensar acerca da relação Brasil-Senegal, tendo como ponto de partida a atuação da agência humanitária Fraternidade sem Fronteiras (FSF), que este ano, 2020, completa dez anos de atividades, e que no começo de 2017 iniciou suas ações em Dakar, em parceria estabelecida entre o Chemin du Futur – instituição senegalesa fundada por uma das agencias já extintas, o Chemin des Nations. Neste sentido, cabe compreender não apenas as motivações, interações e consequências deste contato, mas as próprias estratégias de negociações estabelecidas entre os senegaleses – não apenas os garotos, mas também empregados da instituição e sua rede de apoio – e estes novos parceiros brasileiros. Até o presente momento, foi desenvolvido o conceito de corpos-não-modernos para se referir aos grupos escolhidos pelas agências humanitárias como um todo, em geral não brancos, os quais são escolhidos enquanto estes corpos em sofrimento que precisam de ajuda. Diante da atuação da FSF pretende-se pensar até aonde as questões até aqui levantadas permanecem, ou podem ser pensadas por meio de outras perspectivas.
Tempo de estio: o semiárido do São Francisco e o Namibe, convergências e silêncios
Autoria: Diego Ferreira Marques (UFBA - Universidade Federal da Bahia)
Autoria: Situados em latitude entre 8 º e 24 º S, o sertão semiárido do Rio São Francisco, no Nordeste brasileiro, e o deserto do Namibe, na região fronteiriça entre Angola e a Namíbia, ocupam extremos opostos, do ponto de vista de sua formação geológica, e são, no entanto, regiões profundamente próximas, quer quanto aos processos de sua constituição histórica, quer quanto às suas características sócio-ambientais. Ocupadas, majoritariamente, por uma população de baixa densidade demográfica, em que se destacam comunidades pastoris de pequenos criadores de reses ou caprinos, essas regiões impelem seus habitantes ao desenvolvimento de distintos e sofisticados modelos de resiliência, produzindo relações muito peculiares entre as pessoas e o meio desértico ou semidesértico, atravessadas pela presença de uma significativa bacia hidrográfica em seu interior. Atingidas, em meados do segundo quarto do século XX, por processos violentos de modernização, assentados em processos bastantes convergentes de dita pacificação, tais comunidades adotaram também modos de resistência que resultaram em sua estigmatização enquanto "gentes bravias", algo que impactou profundamente as histórias locais, as relações com os Estados nacionais e o aparecimento ou regulação de novos conflitos. O extenso programa de intersecções e o repertório de questões comparativas de interesse envolvendo ambas as regiões, embora não plenamente desenvolvido, foi diversas vezes enunciado, desde meados do século XIX, em esforços distintos como o da literatura e o da etnografia. Neste work, pretende-se discutir não apenas o quanto tais convergências interessam a uma ampla gama de questões contemporâneas na Antropologia social e em outros campos de saber, mas também o relevante problema do comparativismo e de suas possibilidades no estabelecimento de cooperação envolvendo estudos regionais ou transnacionais do quadro do chamado Sul global, bem como os limites impostos pelos silenciamentos de tais proximidades, impactando tanto as tentativas de compreensão desses cenários, quanto a proficuidade mesma desse diálogo, do ponto de vista de um aproveitamento por parte das comunidades locais envolvidas.
Tradição como diferenciação e agência política: o caso moçambicano e suas contribuições para a compreensão dos contextos contemporâneos do continente africano e do sul global
Autoria: Luiz Henrique Passador (UNIFESP - Universidade Federal de São Paulo)
Autoria: O debate sobre descolonização, colonialidade e decolonialidade nos países do sul global que são ex-colônias tem levantado questões sobre ancestralidade e diáspora, igualdade racial, direitos culturais e reconhecimento de saberes e autoridades tradicionais. Tais questões e debates têm evidenciado a centralidade das tradições locais e/ou em diáspora para a compreensão desses contextos e para a construção de novas perspectivas teóricas e novas ordens políticas, jurídicas e econômicas. Mbembe (2001) aponta que a tradição e a cultura operam hoje como formas africanas de auto-inscrição, Mamdani (1996) a reconhece como uma das bases para a produção de uma bifurcação do Estado colonial e pós-colonial no continente africano, Ekeh (2016) e Adebanwi (2017) a percebem como fundamento da constituição de dois públicos que os estados africanos contemporâneos têm que atender. As perspectivas destes e de outros autores indicam que a tradição deve ser percebida como categoria política de diferenciação (Brah 1996) e agência (Ortner xxxx) que perpassa o cenário político das relações entre estados e sociedades civis em África. Em Moçambique, desde o período colonial a tradição tem operado como forma de diferenciação e hierarquização que, juntamente com raça/cor/etnia, classe, sexo/gênero, religião, origem e outros marcadores sociais da diferença, produzem alteridades, identidades, relações de poder e agências políticas no contexto moçambicano, sendo uma das persistentes e atualizadas heranças da administração colonial portuguesa no pós-independência. Através de um estudo etnográfico e histórico das relações e conflitos entre chefias tradicionais e a administração governamental em um distrito da região sul de Moçambique, venho observando e analisando o aspecto político que assume a tradição. Sendo uma categoria analítica cara à antropologia, esta foi apropriada política e juridicamente pela administração estatal em momentos diversos. Operou historicamente como forma de identificação e produção do indigenato no período colonial, como forma de marginalização e construção de inimigos internos no pós-independência e hoje persiste como agência de sujeitos e instituições inseridos em disputas e conflitos na arena de um estado que, como outros do sul global, assumiu uma perspectiva neoliberal a partir dos anos 90 do século passado e vem lidando com as demandas internas (fundadas na resolução dos conflitos pós-guerra civil) e de agências internacionais (para o respeito à agenda de direitos humanos e culturais) para a inclusão de estruturas classificadas como tradicionais na estrutura do próprio estado.
“Mudjer qui trabadja na cerâmica ka tem marido”: geração, gênero e família entre as oleiras de Santiago Norte - Cabo Verde
Autoria: Vinícius Venancio (UNB - Universidade de Brasília)
Autoria: A olaria é uma atividade tradicional em Cabo Verde, especialmente nas ilhas de perfil mais agrário. Em Santiago, a mais populosa das dez ilhas que compõem o país-arquipélago e onde está localizada a capital do país, Praia, não é diferente. E é no seu interior que a produção da cerâmica floresce com afinco. A cerâmica assume um lugar central na vida santiaguense desde o período colonial, uma vez que os fogões, bindes (cuscuzeiras), panelas e moringas eram todas feitas de cerâmica. E essa tradição segue até os dias de hoje, quando a produção da cerâmica passa por um processo de revitalização e ela é fornecida não apenas no mercado interno, mas começa a ser vendida também como souvenir, com o crescimento do turismo no país. Em um contexto de escassez de work formal e forte tendência à emigração, mulheres-mães se dedicam à produção da cerâmica como forma de “desarascarem-se” financeiramente, começando da apanha do barro, passando pela sova, moldagem e cozimento das peças, indo até a venda delas nas grandes feiras da ilha. E é a partir desse cenário de feminização do works informais em Cabo Verde que pretendo discutir os impactos e reverberações da produção da cerâmica para as relações de gênero, intergeracionais e familiares na parte norte da Ilha de Santiago. Aqui, será acentuada a centralidade da cerâmica na vida dessas mulheres, que ao mesmo tempo em que moldam a cerâmica, pela cerâmica elas têm suas vidas moldadas. Para tal apresentação, o foco recairá no cotidiano das mulheres de duas olarias, a Arte e Cerâmica, em Fonte Lima, e Ponto de Encontro, em Trás-os-Montes, ambas na parte norte da ilha de Santiago. Os dados apresentados compõem a discussão realizada em minha dissertação de mestrado acerca das versões da nação produzidas e comercializadas através de suvenires “genuinamente” cabo-verdianos na ilha de Santiago.
Unilabianas: Uma Análise de narrativas femininas sobre a integração.
Autoria: Amanda Janice Soares Gomes (UNILAB - Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira)
Autoria: A Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira - UNILAB é fruto das políticas de cooperação Sul-Sul, o projeto atende a estudantes de países que tenham como sua língua oficial a portuguesa, além de, até o fim do ano de 2019, ter editais específicos para indígenas e quilombolas, ela busca em sua matriz curricular, ao menos nos cursos das áreas de humanas, se aprofundar as epistemologias do sul global e afirma em seu estatuto que tem como "missão institucional específica formar recursos humanos para contribuir com a integração entre o Brasil e os demais países membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa – CPLP". Esta pesquisa busca através das experiencias etnográficas da pesquisadora e das narrativas de outras estudantes como se dá o processo de formação das estudantes, enquanto futuros recursos humanos da integração destes países. Procura descrever e analisar os impactos dos encontros das diversas culturas presentes dentro do contexto da UNILAB, que comporta estudantes de Brasil, Guiné-Bissau, Cabo Verde, Angola, São Tomé e Príncipe, Moçambique e Timor Leste e saber, é possível a integração de forma saudável e pacífica? Este work faz o recorte de gênero pois eu, enquanto pesquisadora e membra ativa da universidade percebo a necessidade de um estudo especifico da vivencia de mulheres, levando em consideração as Ordens de Gênero (Connell, 2019) e, sendo um espaço formado por pessoas majoritariamente negras, vindas de países majoritariamente negros, a questão racial não poderia ser deixada de lado. Este estudo é feito dentro de um ambiente complexo e único e deve ser levado em consideração dentro dos estudos Sul-Sul.