GT 55. Laudos Antropológicos, Direitos Socioculturais & Políticas para Diversidade

Coordenador(es):
Sérgio Góes Telles Brissac (MPF)
Jane Felipe Beltrão (UFPA - Universidade Federal do Pará)

Sessão 1
Debatedor/a: 
Felipe de Moura Palha e Silva (Procurador da República - MPF/PA)

Sessão 2
Debatedor/a: Patrícia Alves Melo (UFAM - Universidade Federal do Amazonas)

Sessão 3
Roger Raupp Rios (Desembargador Federal – TRF 4/RS)

No contexto atual de graves ameaças à efetivação de direitos socioculturais de povos indígenas, coletivos quilombolas e demais comunidades tradicionais, a elaboração de laudos antropológicos reveste-se de relevância ética e política ímpar. No GT, antropólogas e antropólogos são convidadas/os a apresentar laudos “emblemáticos”, a critério da/o interessada/o, que tenham sido: (1) acatados ou não em juízo; (2) escritos em contextos conflituosos no qual, segundo entendimentos equivocados, seria vedada sua apresentação, caso de ações de reintegração de posse em áreas retomadas por indígenas; elaborados sobre as mais diversas disputas – crimes, guarda de crianças, recebimento de benefícios sociais, entre tantas outras situações. A ideia do GT é possibilitar às/aos participantes reflexão crítica e intercâmbio entre especialistas, considerando abordagens e enfoques metodológicos e políticas para diversidade.

Palavras chave: Laudos antropológicos; direitos socioculturais; diversidade
Resumos submetidos
A atuação de antropólogos na realização de perícias técnicas em processos envolvendo crianças indígenas em situação de abrigamento institucional no Estado do Paraná.
Autoria: Denize Refatti (UFSC - Universidade Federal de Santa Catarina)
Autoria: O objetivo desta comunicação é discutir algumas questões sobre a atuação do antropólogo em perícias técnicas nos processos de crianças indígenas que se encontram em situação de abrigamento institucional. As informações apresentadas foram coletadas a partir da minha experiência como perita em alguns desses processos no Estado do Paraná, e também compõem o work de campo de minha pesquisa de doutorado sobre os desdobramentos que surgem a partir das relações entre o ordenamento jurídico, agentes públicos responsáveis pela adoção de crianças guarani e as comunidades indígenas envolvidas nesses processos A atuação do antropólogo nos processos de adoção é amparada pela lei 12.010 de 03 de agosto de 2009, que introduziu mudanças significativas ao ECA (1990), entre elas, a obrigatoriedade de um procedimento especial para os processos de adoção envolvendo crianças indígenas e quilombolas. Nesse lugar o antropólogo tem a função de enunciar a viabilidade ou não dos laços parentais pretendidos e para tanto, precisa ser convencido (assim como o juiz) de que a família que se candidata a adoção (indígena ou não-indígena) seja adequada para a criança e no caso de ser de um grupo étnico diferente, que tenha condições de manter abertos os canais de contato entre a criança e seu grupo originário (Prestes, 2014). O “Protocolo de Brasília: Laudos Antropológicos: Condições para o exercício de um work científico” promovido pela Associação Brasileira de Antropologia em 2015 dispõe sobre a necessidade de se garantir as condições logísticas, materiais, financeiras que são imprescindíveis para a realização dos laudos/relatórios, além de se considerar os prazos que devem ser suficientes para compreender toda a dinâmica e complexidade do estudo (2015, p.22), mas ainda que haja um reconhecimento social e legal do work do antropólogo na resolução de conflitos judiciais que envolvem comunidades tradicionais, na pratica observa-se uma série de situações que comprometem a densidade e a qualidade desses works. Portanto, gostaria de aproveitar este espaço para debater algumas dessas situações e dar visibilidade as dificuldades reais de atuação do antropólogo nesses espaços, como por exemplo: Prazos curtos, baixos valores dos honorários, o valor pago por cada perícia é fixado pelo juiz e por isso depende da valorização subjetiva que cada juiz faz do work antropológico, as despesas básicas de transporte, hospedagem e alimentação não são pagas pelo Estado o que torna praticamente impossível o deslocamento do antropólogo, dificuldades no diálogo entre os campos da antropologia e do direito, entre outras situações a serem citadas posteriormente.
Arqueologia, licenciamento ambiental e diversidade: Altamira e o impacto de Belo Monte
Autoria: Rhuan Carlos dos Santos Lopes (UNILAB - Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira)
Autoria: As execuções de grandes obras de infra-estrutura na Amazônia têm gerado diferentes contextos de violação e reivindicação de diretos. Pesquisas arqueológicas são executadas em função de tais empreendimentos, sob exigência da legislação vigente. A execução de resgate e/ou proposição de medidas para mitigação de danos ao registro arqueológico, porém, ocorre no contexto de reivindicações de coletivos sociais ocupantes dos territórios afetados pelos grandes empreendimentos. Tendo isto em vista, esta proposta de work pretende debater a relação entre os habitantes do município de Altamira e o contexto de atuação da Arqueologia de contrato em Belo Monte, tendo em vista os resultados de pesquisa realizada em 2018, no contexto de finalização das obras. As tensões geradas pelas modificações urbanas dão o tom das preocupações atuais dos moradores da cidade, com narrativas que evocam outras ideias de patrimônio. Aponta-se, desse modo, para diferentes necessidades na produção dos estudos que subsidiam o licenciamento ambiental.
BOE ATUGO: reflexões antropológicas a partir das pinturas faciais
Autoria: Antônio Hilário Aguilera Urquiza (UFMS - Universidade Federal de Mato Grosso do Sul), NEIMAR LEANDRO MARIDO KIGA - UFMS
Autoria: Este artigo busca investigar e compreender o Grafismo do povo Boe (Bororo), como meio de valorização cultural. Visto que é uma das identidades visuais deste povo, o grafismo como particularidade cultural é apresentado como forma de valorização das culturas indígenas. Este artigo tem como objetivo, por meio do Grafismo, mostrar o diferencial do povo Boe, ao perceber que quando fazem alguma manifestação cultural ou de identificação é o primeiro ou uma das principais características que realizam para representação. Para apresentação visual da complexidade do grafismo, o artigo traz um grafismo específico do povo Boe, do clã dos Bokodori Ečerae (Tatu canastra), da metade exogâmica dos Ečerae (filhos), com o nome Koge bure – Koge: peixe dourado, bure: pé ou cauda (cauda do peixe dourado). A metodologia é composta pela fundamentação teórica na Antropologia, com literaturas relacionadas ao tema abordado, entrevistas diretas com os interlocutores, conversas informais e algumas observações feitas pelas redes sociais, como o Facebook e WhatsApp. As entrevistas foram feitas na aldeia Meruri, pertencente ao município de General Carneiro – Mato Grosso, a qual pertenço. Foram feitas com pessoas de conhecimento da cultura tradicional, como anciões/anciãs e em Campo Grande – Mato Grosso do Sul, com acadêmicos da Universidade Católica Dom Bosco (UCDB). Entre os resultados da pesquisa destacam-se os novos conhecimentos acerca do tema abordado, diálogos com as comunidades tradicionais a respeito da cultura, fomento a continuidade da pesquisa, bem como novas pesquisas acadêmicas por parte dos indígenas.
Das margens ao laudo: o caso dos ciganos de Fervedouro.
Autoria: Beatriz Accioly Vaz (MPF)
Autoria: O work que aqui se apresenta reconstitui uma experiência de elaboração de laudo pericial no âmbito da minha atuação como analista pericial em antropologia do Ministério Público Federal. A perícia que deu origem ao laudo em referência foi solicitada por procurador do município de Manhuaçu/MG e teve como foco a identificação de possíveis lesões aos direitos de comunidade cigana calon localizada às margens da BR-116 no município de Fervedouro/MG. Para a elaboração do laudo em questão, foi preciso contextualizar minimamente a trajetória do povo cigano e identificar os processos de exclusão social a que foram submetidos, ainda que a documentação a esse respeito seja bastante reduzida. Os poucos registros existentes datam a chegada dos ciganos ao Brasil ainda no século XVI. Esses primeiros ciganos, da etnia calon, vieram da Península Ibéria e se espalharam pelo território brasileiro ao longo dos séculos. Os calon são a etnia cigana mais numerosa atualmente no Brasil. Essa etnia é também a que possui a pior situação socioeconômica, sendo comum encontrar comunidades acampadas em lugares com condições precárias de infra-estrutura ou áreas de risco. Historicamente, os ciganos são um povo marginalizado e estigmatizado, associado ao roubo, à vadiagem e à traquinagem. Na região da Zona da Mata de Minas Gerais, onde situa-se Fervedouro, ocorreram episódios de perseguição violenta aos ciganos pela polícia, no século XIX, denominados pelas autoridades como “correrias de ciganos”. Eles eram agredidos pelos policiais, expulsos de suas casas e tinham seus bens confiscados. Tratavam-se de operações com propósitos “higienistas” e de “manutenção da ordem pública” (Teixeira, 2008, p.40). Atualmente, ainda são freqüentes as violações aos direitos dos povos ciganos em Minas Gerais. O direito ao reconhecimento e preservação do território desses povos, entendido não apenas em sua dimensão fundiária, mas em toda a complexidade cultural, é ameaçado por interesses financeiros e políticos. O caso dos ciganos acampados no município de Fervedouro/MG, retrata a manutenção da situação de marginalização dos calon no presente. Assim, o laudo pericial apresentado, além de dar visibilidade a tal situação, pode ser entendido como uma ferramenta na defesa dos direitos da comunidade calon em questão.
Direito internacional, representatividade marrom e neocolonialismo(s): o País Saramaka e a República do Suriname
Autoria: Ramiro Esdras Carneiro Batista (UNIFAP - Universidade Federal do Amapá), Adonias Guiome Ioiô
Autoria: A diáspora africana, fenômeno que produziu um deslocamento humano sem precedentes históricos, em termos de número e extensão geográfica (Silvério, 2013), inaugurou diferentes arranjos sociológicos no Circum-Caribe, a exemplo do “País Saramaka” (Price, 2014), constituído no interior amazônico do que hoje compreende territórios da República do Suriname, e também do estado Ultramarino Francês (antiga Guiana Francesa). Essa territorialidade Saramaka, arrancada em “tratados de sangue” (Price ,1999) as mãos da coroa holandesa no curso do século XVIII a partir da junção de diferentes grupos étnicos afro-guianeses, que em distintos eventos guerreiros arrasaram o sistema de plantation da região, sofrem na atualidade, a exemplo de outros territórios indígenas em toda a Amazônia, nova investida neo-colonizadora. Ocorre que no último quartel do século XX, após a descolonização holandesa do Suriname (1975) e da guerra civil que se seguiu (a partir de 1986), a nova república surinamesa tem investido sistematicamente contra o território Saramaka, promovendo degradação humana e ambiental em descumprimento a própria legislação internacional pertinente a povos tribais que ratificou, o que ensejou em julgamentos promovidos pela Corte Interamericana de Direitos Humanos e redundou em pelo menos duas condenações ao Estado do Suriname, uma no ano de 1993, e outra em 2007, respectivamente. Segundo Richard Price (1999), as condenações não se traduziram em melhoria de relações entre o estado nacional e a marronage (quilombolas) circunscritos no território surinamês, sendo que as atuais políticas conduzidas por aquele estado contra os Boch Négre (Povos da Floresta), podem ser traduzidas como “[n]ada menos que etnocídio” (Price, 1999, pg. 203). Tomar a análise a documentação expedida pela Corte Interamericana no ano de 2007, percebendo os discursos referentes aos colonialismos, individualismos e ocidentalismos (Lippi, 2016) nela incutidas, em contraste com o sistema jurídico e a percepção Saramaka sobre a liderança e a legitimação de sua representatividade, constitui-se no objetivo do presente artigo.
Litígio na demarcação da Terra Indígena Anaro/RR: o espectro do índio “integrado” como negação de direitos
Autoria: Carlos Alberto Marinho Cirino (UFRR - Universidade Federal de Roraima)
Autoria: A comunicação trata-se de um work pericial realizada na Terra Indígena Anaro, município do Amajari/RR, enquanto demanda judicial, decorrente da suspensão parcial do processo de demarcação da área. Abordamos os quesitos antropológicos formulados pelas partes, focando todo o processo de colonização e ocupação do território tradicional dos Wapischana pelas fazendas de gado na antiga região do rio Branco, atual Estado de Roraima. As demais discussões giram em torno dos quesitos da parte demandante, cuja linha de contestação é negar aos indígenas o direito originário sobre a citada TI, apoiando-se na desqualificação da oralidade como elemento de prova, do work do antropólogo e defendendo a tese de que os índios estão integrados a sociedade nacional. A ação foi julgada improcedente na primeira instância, assim como indeferido um pedido de embargos declaratórios e os impetrantes entraram com recurso junto ao Tribunal Regional Federal.
O "Melhor interesse da criança": Experiências com perícia antropológica no campo da infância e juventude no Mato Grosso do Sul
Autoria: Silvana Jesus do Nascimento (outro), Priscila de Santana Anzoategui (Defensoria Pública Estadual de Mato Grosso do Sul)
Autoria: O work analisa questões relacionadas a proteção e a garantia dos direitos das crianças indígenas, vistas como fenômenos políticos atravessados por moralidades e suas ressonâncias no campo do direito individual e coletivo. O texto foi construído a partir das perspectivas de duas antropólogas com experiências distintas de diálogos entre antropologia, direito e indigenismo. É resultado de nossas experiências de pesquisa de campo e na elaboração de laudos judiciais nos casos de medida de proteção, destituição do poder familiar e guarda envolvendo as crianças e jovens indígenas, dos povos Kaiowá e Guarani, no sul do Mato Grosso do Sul. A pesquisa de campo para a perícia antropológica é realizada com base nas distintas influências da antropologia social moderna. As ferramentas foram: leitura de processos judiciais e de outras fontes bibliográficas, observação participante, entrevistas semiestruturadas com indígenas e com a Rede de Proteção à Criança e o Adolescente no sul do Mato Grosso do Sul. Discutimos para que e a quem serve as perícias antropológicas envolvendo as crianças indígenas. Realizamos uma breve análise da Lei nº 12.010/09, conhecida como Nova Lei da Adoção, para mapear as forças institucionais e compreender os impasses relativos à elaboração dos laudos antropológicos e da recente participação dos antropólogos nestes casos. Por fim, analisamos o quais os efeitos dos laudos antropológicos nos processos analisados. Chegamos à formulação de que os argumentos em torno do princípio do melhor interesse de crianças e adolescentes é utilizado para sustentar a negação da perícia antropológica, dos direitos coletivos e da pluralização da proteção integral de crianças e jovens indígenas. Percebemos que o esforço reduzido da Rede de Proteção à Criança e ao Adolescente em mapear os membros da parentela das crianças e jovens indígenas com direito à convivência familiar e comunitária violado é parte das moralidades que circulam os diferentes níveis do Estado. Esperamos que este artigo forneça subsídio para a reivindicação da perícia antropológica nos processos judiciais com crianças indígenas e quilombolas, para a publicização dos debates sobre estes processos judicialmente sigilosos e para a criação de práticas mais plurais de garantias dos direitos das “indígenas crianças”.
O caso Canaimé: Entidade motivadora de crime de homicídio na Terra Indígena Raimundão/RR
Autoria: José Raimundo Torres dos Santos (UFRR - Universidade Federal de Roraima)
Autoria: A presente comunicação tem como objetivo discutir o papel do laudo antropológico no processo envolvendo indígenas acusados de homicídio na Terra Indígena Raimundão, município de Alto Alegre, Estado de Roraima. Nas alegações de defesa, os acusados alegam que sacrificaram uma entidade conhecida como Canaimé que, por sua vez, teria levado a óbito uma criança indígena. O caso resultou na demanda de uma pericia antropológica para responder se os acusados eram índios e se essa entidade, o Canaimé, ainda permeava as representações simbólicas dos índios Macuxi da região. A juíza do Ministério Público Estadual, diante do laudo antropológico, concluiu que não tinha competência para julgar o caso, compreendendo que o caso concreto se tratava de direitos coletivos e encaminhou o processo para o Ministério Público Federal. No momento, estamos acompanhando o caso e participamos da primeira audiência onde duas testemunhas foram ouvidas, uma delas o antropólogo, autor do laudo pericial
Patronagem e turismo e suas implicações na demarcação de Terra Indígena no Nordeste brasileiro
Autoria: José Glebson Vieira (UFRN - Universidade Federal do Rio Grande do Norte)
Autoria: A presente comunicação pretende discutir o processo de regularização fundiária da Terra Indígena (TI) Potiguara do Sagi/Trabanda (Baía Formosa/RN), mais precisamente, busca situar os dilemas dos indígenas quanto à inclusão e exclusão de áreas a serem demarcadas face às constantes interferências políticas. No ano de 2015, um Grupo Técnico (GT) foi criado pela Funai, com a finalidade de realizar estudos de identificação e delimitação do território Potiguara. Ao longo das atividades de campo, os integrantes do GT enfrentaram um delicado debate acerca da dimensão da territorialidade e da natureza da terra indígena, bem como da identificação das terras imprescindíveis para a reprodução física, social e cultural, e das mudanças propostas pelos indígenas acerca dos limites da TI. Na identificação das ocupações tradicionais, foi possível apreender o sentido do habitar, que revelou-se pelo enfeixamento de uma marcação temporal com a disposição espacial quando foram apontados pela tradição oral movimentos constantes de ocupação, desocupação, expulsão, abandono e reocupação de lugares, envolvendo, por exemplo, a fazenda e a usina. Esses movimentos no território são cruciais para o entendimento das demandas pela regularização fundiária, pois a pressão sobre áreas agrícolas e de moradia foi decisiva para o “levantamento do movimento” étnico-político e, por conseguinte, para as discussões em torno das áreas a serem incluídas na proposta de demarcação da TI. Foi crucial ainda a relação de patronagem que revelou-se persistente no contexto local através das relações patrão/morador, primeiro como trabalhadores na fazenda, depois por arrendamento (meação) e ocupação de terrenos de marinha e, mais recentemente, pela presença de usineiros e empresas privadas do turismo. A patronagem, as constantes ações de reintegração de posse e a pressão de empresários do ramo turístico promoveram mudanças significativas na luta política: muitas famílias passaram a não mais apoiar a demarcação, chegando a rejeitar a proposta de demarcação apresentada pelo GT; essas famílias também deixaram de integrar o movimento indígena, e, com isso, promoveram uma divisão interna. Em resposta, o grupo que permaneceu na luta pela demarcação, recompôs sua unidade política, manteve domínio na aldeia Sagi/Trabanda, criou uma nova aldeia e reiterou suas demandas ao órgão indigenista oficial, apresentando uma proposta de demarcação distinta da delineada pelo GT. Pretendemos, assim, problematizar as implicações da vulnerabilidade social do grupo e do exercício pleno da autodeterminação para o work antropológico de demarcação de terra indígena, e para a própria concepção de território. A proposta apresentada pelo GT possuía viabilidade técnica, porém, foi inviabilizada pelos conflitos internos.
Por uma análise crítica da produção de prova pericial antropológica no âmbito de conflitos territoriais judicializados: reflexões a partir do caso da Ilha do Aritingui (Rio Tinto – PB / Brasil)
Autoria: Inafran F. S. Ribeiro (UNIFESP - Universidade Federal de São Paulo)
Autoria: O artigo busca discutir os impactos da produção de prova pericial antropológica no âmbito de conflitos territoriais envolvendo povos e comunidades tradicionais no Brasil. Buscar-se-á enfatizar, de um lado, as repercussões do processo de produção das perícias sobre a constituição dos conflitos em si; e, de outro, os efeitos dos resultados da perícia sobre as decisões judiciais a respeito da titularidade de direitos territoriais específicos de comunidades em litígio. A análise é realizada a partir de um estudo de caso em profundidade no qual atuei como auxiliar de pesquisa do assistente técnico do Ministério Público Federal (MPF). O caso diz respeito ao conflito territorial entre uma comunidade tradicional localizada na Área de Preservação Ambiental da Barra do Rio Mamanguape, no município de Rio Tinto, no litoral norte do estado da Paraíba, e uma empresa com atuação no setor sucroalcooleiro e da carcinicultura (criação de camarão em viveiros). A comunidade da Ilha do Aritingui é parte de uma disputa iniciada há 15 anos pela empresa por meio do ajuizamento de uma Ação de Reintegração de Posse. O caso, que ainda tramita na justiça federal, foi perpassado pela atuação de variados atores ligados à universidade, a agências estatais e a movimentos sociais. Entre essas atuações, destacam-se a produção de um relatório preliminar sobre a comunidade por especialistas da Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos da Universidade Federal da Paraíba (NCDH), logo quando da judicialização do caso, em 2005; a atuação de um Grupo de work, instituído pela Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT), em 2010, que produziu relatório a respeito do conflito territorial e da situação socioeconômica da comunidade; e a realização, em 2011, da perícia antropológica na qual atuei. O caso foi julgado, em primeira instância, em julho de 2019, com resultado desfavorável à comunidade da Ilha do Aritingui. A par disso, este work situa e analisa o papel da realização da perícia em um contexto constituído por múltiplas agências bem como reflete sobre suas repercussões no julgamento do conflito em primeira instância. Para tanto, me utilizo de registros de observações de campo realizadas durante a produção da prova pericial e da análise de conteúdo de processos judiciais e procedimentos administrativos relacionados ao conflito territorial. Os dados sugerem que o caso expõe tensões éticas e epistemológicas que perpassam a realização de perícias antropológicas nesse tipo de conflito; e, do ponto de vista de resultados imediatos, até aqui alcançados no caso, as evidências apontam para efeitos negativos da realização desse procedimento para a efetivação dos direitos territoriais da comunidade da Ilha do Aritingui.
“Qual a causa e o que fazer?”: reflexões sobre os desafios de uma perícia antropológica para apurar a ocorrência inédita de enforcamentos autoprovocados entre os Madiha (Kulina) da TI Alto Purus (Acre)
Autoria: Pedro Moutinho Costa Soneghetti (MPF)
Autoria: Nesta apresentação pretendo discutir as principais reflexões apontadas no Laudo Técnico Nº 09-SPPEA/MPF, de novembro de 2017, que produzi enquanto perito em antropologia do Ministério Público Federal, no bojo de um inquérito civil público instaurado pela Procuradoria da República no Acre em 2016. O laudo em questão foi solicitado para apurar as causas do elevado índice de “suicídios” entre indígenas do povo Madiha (Kulina) da Terra Indígena Alto Rio Purus (Acre) e buscou analisar o ponto de vista Madiha sobre as tentativas e mortes por enforcamento “autoprovocado” e tentativas por arma de fogo, ocorridas entre 2015 e 2017, inéditas entre os indígenas da região. Embora o laudo em questão não esteja vinculado a um processo judicial, nem tenha tido sua apresentação vedada, ele pode ser considerado emblemático pelo ineditismo dos fatos apurados no contexto indígena em foco, pela particularidade e complexidade do objeto, e também pela relevância do assunto no contexto político atual. Os casos relatados pelos Madiha, tanto das mortes quanto das tentativas, costumam envolver a descrição de brigas e conflitos familiares ou amorosos que provocam o sentimento de raiva ou tristeza, aliados, em grande parte dos casos, ao estado de embriaguez provocado pelo consumo de determinadas substâncias, como cachaça, álcool etílico, perfume e gasolina. No entanto, as “mortes com corda” são vistas pelos Madiha, em última instância, como o resultado da ação de agentes externos (ex. o “branco”, o demônio ou o pajé) que levam a pessoa a se matar, e não propriamente como fruto de “autoprovocação intencional”, acionando o xamanismo e o cristianismo como “códigos” a partir dos quais são interpretados fenômenos não necessariamente tradicionais no contexto indígena. Os dados etnográficos produzidos durante a perícia apontam que as “mortes com corda” entre os Madiha estão intimamente relacionadas à dinâmica mais profunda das relações sociais e das condições de vida no Alto Purus. Assim, tal fenômeno pode ser pensado como a “ponta do iceberg”, um indicador de vários aspectos da vida cotidiana que têm se mostrado problemáticos aos olhos dos próprios Kulina. Nesse sentido, busco refletir sobre os desafios envolvidos em analisar o que os modelos explicativos indígenas de ordem cosmológica podem indicar sobre fatores de ordem sociológica, e como sistematizar isso em um laudo pericial a partir de uma demanda que, além de solicitar respostas conclusivas sobre “as causas que têm ocasionado o elevado índice de suicídios”, instiga o perito a avaliar “quais são as ações, práticas e/ou políticas públicas a serem executadas pelo poder público para evitar/prevenir novos casos de suicídio”.