GT 014. Antropologia das Emoções
Maria Claudia Pereira Coelho (ICS/UERJ) - Coordenador/a, Ceres Victora (UFRGS) - Coordenador/a, Eduardo Moura Pereira Oliveira (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) - Debatedor/a, Raphael Bispo dos Santos (UFJF) - Debatedor/a, Iara Beleli (Núcleo de estudos de Gênero - Pagu/UNICAMP) - Debatedor/aA antropologia das emoções vem se consolidando como área autônoma no Brasil há cerca de vinte anos. Ao longo desse percurso, podemos identificar um conjunto de temáticas agrupadas em torno de dois eixos principais: as temáticas ligadas a áreas da vida associadas à dimensão “privada” e as temáticas vinculadas ao “mundo público”.
Para as primeiras, podemos arrolar problemas de pesquisa ligados ao corpo, à sexualidade ou a saúde/doença; para as segundas, listaríamos os movimentos sociais, a violência ou os universos profissionais/institucionais.
Esse Grupo de Trabalho tem como proposta avançar na superação dessa dicotomia, incluindo em seus focos de interesse, ao lado do elenco já canônico de temáticas passíveis de abordagem pela antropologia das emoções, novos problemas concebidos sob a égide da reflexão sobre essa dicotomia.
As principais temáticas a serem contempladas são: a) emoções e instituições/práticas estatais; b) emoções e políticas públicas; c) emoções, moral e formas do cuidado; d) emoções, violência e vitimização; e) emoções e movimentos sociais; f) emoções e discursos/práticas profissionais; g) corpo, sensorialidade e emoções; h) emoções, gênero e sexualidade; i) emoções e experiências de saúde/doença.
Resumos submetidos |
---|
"The happiest man is the man that stays still": emoções em contexto de mobilidade e precariedade acadêmica Autoria: Vinicius Kauê Ferreira Autoria: A partir de uma pesquisa etnográfica sobre pesquisadores em ciências sociais de origem indiana buscando fazer uma carreira na Europa, esta comunicação propõe uma análise antropológica de vidas construídas em situação de "mobilidade indefinida". Enquanto "mobilidade internacional" torna-se uma palavra-chave das políticas cientificas, "jovens pesquisadores" são levados a uma vida peripatética no contexto de um modelo dominante de empregabilidade acadêmica baseado em contratos temporários em diferentes instituições e países (Höhle, 2016). Em um momento de grande precarização da vida acadêmica (que tem sido objeto de grande discussão na Europa, nos Estados Unidos e na Asia, e que começa a acontecer no Brasil), esses pesquisadores buscam construir não apenas uma carreira, mas uma vida em todas as suas dimensões "on the road".
Baseando-me numa literatura já consolidada em antropologia das emoções, proponho estudar as relações entre transformações contemporâneas profundas no campo acadêmico e suas reverberações na construção de projetos de vida (Velho, 1992), subjetividades e emoções entre pesquisadores indianos que desejam ter uma vida estável na Europa. Para isso, parto de três constatações principais: (a) a existência de fortes sentimentos de ansiedade e instabilidade face à impossibilidade de se estabelecer profissionalmente, que por sua vez é visto como uma barreira a uma real vida intima, familiar e política; (b) o sentimento de "fracasso" como lógica de self-management num contexto acadêmico permeado por discursos de excelência e produtividade; e (c) o medo compartilhado por meus interlocutores, filhos de classes médias estáveis, de uma "downward mobility" (descensão social) (Berlant, 2011).
Em suma, esta comunicação leva em conta um contexto não somente de neoliberalização da academia (Wright, 2016; Giroux, 2014), mas também de precarização da vida (Khosravi, 2017), afim de buscar entender modos de gestão das emoções em processos de subjetivação da precariedade e de ressignificação de projetos de vida.
|
A relação de work das empregadas domésticas com suas patroas em Miracema RJ. Autoria: Janilce Souza Rosa Autoria: Resumo
Este artigo tem como objetivo identificar e compreender a partir de uma perspectiva etnográfica, as principais questões que contribuem para a construção das empregadas domésticas como categoria profissional a partir de uma rede composta por mulheres da cidade de Miracema localizada na Região noroeste do Estado do Rio de Janeiro. O interesse por essa pesquisa se deu a partir de algumas observações das próprias declarações realizadas pelas domésticas frente a sua profissão. Deste modo, esse work busca entender como estas se veem enquanto empregadas domésticas e a relação que existe entre patroas e empregadas. Portanto, através dos dados coletados durante a elaboração desse work e analisando as empregadas domésticas enquanto categoria, busco perceber por meio de um viés antropológico a relação de work e afetividade entre esses sujeitos.
|
A vida por um fio - trajetórias de mulheres ribeirinhas vítimas de escalpelamento na Amazônia Autoria: Diego Alano de Jesus Pereira Pinheiro Autoria: O presente work visa refletir questões no campo das Ciências Sociais, mais especificamente na Antropologia Social, no que cerne debates sobre eventos críticos, identidade e memória. A pesquisa teve início após a veiculação de campanhas de doação de cabelo na TV local do estado do Pará - onde tomei conhecimento sobre os casos de escalpelamento (coro cabeludo arrancado brusca e acidentalmente) em embarcações com o eixo do motor sem proteção, tendo como principais vítimas mulheres ribeirinhas na Amazônia. A ORVAM – é uma ONG dos Ribeirinhos Vítimas de Acidente de Motor com sede na cidade de Belém, do Pará, com um pouco mais de cem mulheres cadastradas. Na entidade, confeccionam perucas e constroem uma rede de apoio e solidariedade, buscando juntas recuperar a autoestima do evento crítico que sofreram. Além disso, também reivindicam direitos em serviços de saúde e apoio social junto ao Estado (hospitais, INSS), evocando numa linguagem de direitos. A maioria delas, vivem com estigmas, tendo a feminilidade abalada, ficam cegas e/ou surdas, e realizam procedimentos cirúrgicos ao longo da vida, além de não conseguirem se inserir no mercado de work. Neste sentido, volto-me a entender as representações entorno de suas trajetórias, a fim de apreender as produções e construções de emoções dessas mulheres, bem como os sentidos e significados oriundos das concepções e experiências do contexto elucidado - onde tenho notado uma construção poética sobre o sofrimento.
|
Afetos do fim da infância – a Festa da Moça Nova dos Ticuna Autoria: Edson Tosta Matarezio Filho Autoria: A Festa da Moça Nova é o principal ritual tradicional dos Ticuna, mais populoso grupo indígena do Brasil (AM). Ao longo da reclusão das moças púberes e dos três dias de festa que a encerra, o que podemos observar e os relatos sobre o que as neófitas sentem nos mostra uma série de emoções ou afetos relacionados a determinados momentos ou agentes que estão em jogo. Muitas destas emoções são de difícil tradução para o português e, não raro, misturam ou separam termos que utilizamos para designar o que sentimos. “Amar” (_ngetcha), em língua ticuna, a depender do contexto, pode também ser “entristecer-se” ou sentir “saudade”. A partir dos dados do meu work de campo, que realizo desde 2012 junto aos Ticuna, pretendo refletir sobre o “tom emocional” (Bateson, 2006) das moças e dos festeiros que participam desse ritual de iniciação feminina. Algumas noções que caracterizam o “tom emocional” das moças são bastante variadas, dependem do momento do ritual e com quem as moças estão interagindo naquele momento. Uma breve listagem das “emoções” que podemos extrair dos dados de campo são as de “agonia” ou “ansiedade” (iatchiãẽ), “medo” (mu’ü), “vergonha” (ane), “cansaço” (tapaütchi), “raiva”, “desespero” ou “sensação de pequenez” (nhemagü’ü̃), “susto” (baia’tchi), “sofrimento” (õẽ), dentre outros. Através de um exame dos contextos em que estas emoções veem à tona na Festa podemos compreender o papel das emoções e dos afetos na transição das moças da infância para idade adulta.
|
Apercepção sociológica e sedução etnográfica na criação de teoria etnográfica sobre a violência Autoria: Marco Julián Martínez Moreno Autoria: A partir do diálogo entre antropologia e psicanalise, este work propõe uma reflexão sobre a tensa relação entre posição social e o "estado interior" do antropólogo e seus interlocutores no campo de pesquisa com a produção de teoria etnográfica acerca da violência. Tendo em conta postulados de Louis Dumont sobre uma teoria da hierarquia e de Luiz Fernando Dias Duarte sobre as fontes românticas da antropologia no Ocidente, argumenta-se que os pesquisadores sobre contextos e narrativas da violência, os quais são portadores da ideologia individualista (como outros agentes politizados e engajados com causas de direitos humanos), não conseguem perceber a eficácia simbólica e afetiva das narrativas de vítimas e agressores sobre sua própria experiência. Em outras palavras, o antropólogo não é consciente da afetação emocional na qual está envolvido, sendo assim “seduzido” pelo discurso manifesto dos seus interlocutores durante suas etnografias, como argumenta Antonious Robben.
A partir da experiência etnográfica e analítica do autor deste work no processo de responsabilização de homens agressores no marco da Lei Maria da Penha no Rio de Janeiro, argumenta-se que a sedução etnográfica privilegia uma leitura individualista das categorias de gênero, parentesco e sobre a emoção emergentes no campo sobre a violência. Disto derivam o os imperativos ideológico da criação de empatia e político de dignificação das vítimas, cujo discurso vira uma verdade etnográfica irrefutável para o pesquisador. O privilegio individualista também tem como consequência a construção de ser carente ou faltante de valores de um ethos privado e civilizado, quando o pesquisador tem o desafio emocional e analítico de "levar a sério" a posição do agressor (sobre o qual quase sempre há um véu de dúvida). Aponta-se que a diferença no estatuto de legitimidade de cada narrativa dos protagonistas da relação violenta dá conta de diferença epistemológica de ordem afetiva por parte do pesquisador, que determina a natureza do conhecimento gerado em campo e que não permite a construção de teoria etnográfica (ver Malinowski ou Goldman) acerca da violência.
|
Autoridade e Emoções em Experiências de Bullying: notas sobre a percepção dos professores Autoria: Maria Claudia Pereira Coelho, Johana Pardo Autoria: Este work traz resultados parciais de um projeto de pesquisa voltado para o exame das gramáticas emocionais presentes em relatos de experiências de bullying. Situa-se no campo dos estudos socioantropológicos das emoções, tendo como principal vertente teórica a sociologia de orientação interacionista. Toma como dados um conjunto de entrevistas em profundidade realizadas com professores das redes pública e privada sobre experiências de bullying. Os episódios de bullying relatados são tomados como uma “cena interacional”. A análise dos relatos tem dois focos principais: a) a forma como os professores concebem seu papel nesses episódios; e b) seus sentimentos diante dos episódios e da própria atuação. A análise, assim, procura conjugar as dimensões cognitiva e emocional da experiência, tendo como problemática mais ampla as articulações entre gramáticas emocionais e exercício da autoridade, aqui tomada na versão particular da prática docente.
|
Conscertando o amor: considerações acerca do comprometimento na família e na medicina do autismo. Autoria: Leonardo Carbonieri Campoy Autoria: Entre 2013 e 2015, uma vez por semana, acompanhei uma neuropediatra atendendo crianças autistas e suas famílias em um projeto voluntário, que ela própria implantou, abrigado em um centro universitário da mesma especialidade, em uma grande cidade brasileira. Participei de todas as etapas do seu serviço, dedicando especial atenção ao processo de confirmação do diagnóstico de autismo e às orientações de cuidado que a doutora oferecia às famílias, sobretudo aos pais. Na apresentação, proponho explorar etnograficamente uma noção que se mostrou central no campo, a de comprometimento. Tanto para a doutora quanto para as famílias, o desenvolvimento da criança autista depende de um comprometimento dos adultos que também é expresso pela palavra amor. Procuro analisar como se pode entender antropologicamente o que significa, tanto para a medicina quanto para as famílias do autismo, comprometer-se com uma criança diagnosticada. Concluo a análise sugerindo que pode-se interpretar esse comprometimento como uma forma de conserto do amor quebrado com o diagnostico de autismo. Esse conserto, contudo, deve ser realizado, de acordo com os interlocutores do campo, com alegria. Para dar conta desse “conserto com alegria”, empresto o neologismo do título de uma peça de teatro idealizada e encenada por Matheus Nachtergaele: conscertando o amor é como interpreto o comprometimento para o desenvolvimento das famílias de crianças autistas.
|
Do indivíduo ao grupo: a padronização dos sentimentos no contexto profissional de uma orquestra de música clássica Autoria: Guilherme Furtado Bartz Autoria: “A música expressa todas as emoções”. Essa frase, proferida pelo maestro da Orquestra de Câmara Theatro São Pedro após um ensaio do grupo, resume a forte simbiose que existe entre o campo da música e o universo das emoções. Ser músico e trabalhar numa orquestra, tendo a arte sonora como profissão, equivale a estar diariamente em contato com esses dois mundos complementares.
A presente proposta está embasada na etnografia que realizei em 2017 com os músicos da Orquestra de Câmara Theatro São Pedro, grupo musical erudito com mais de 30 anos de existência sediado em Porto Alegre, RS. Nessa investigação, que deu origem à minha dissertação de mestrado em Antropologia, procurei compreender como esses indivíduos formulam para si um entendimento de sua própria atividade profissional. Na construção identitária que efetuam a respeito do que significa “ser músico”, as emoções compartilhadas no fazer musical aparecem como um dos componentes essenciais.
Para obter sucesso profissional, o músico precisa se envolver de corpo e alma ao tocar seu instrumento, seja num ensaio ou numa apresentação. Sua atitude e disposição genuínas influenciam diretamente no som que ele produz, que para ser bem valorado necessita de um grande dispêndio de energia física e sentimental.
Nesse work, as partituras aparecem como agentes importantes. Ainda que ofereçam informações bastante precisas sobre como as notas devem ser tocadas, a linguagem musical escrita sempre apresenta alguma margem interpretativa – que varia conforme a concepção individual de cada músico. Contudo, para tocar coletivamente é necessário criar uma série de consensos sobre como as sonoridades devem ser compreendidas, sentidas e performadas.
Nas orquestras, ambientes fortemente hierarquizados no qual cada músico detém o seu lugar e posição, esse consenso é formulado quase sempre de cima para baixo: o maestro decide o que deve ser feito, cabendo aos músicos acatar suas orientações. O regente é o responsável por “traduzir” a linguagem musical instrumental, em essência abstrata e extremamente rica em possibilidades simbólicas, numa linguagem “emocional” que todos compreendem. Ao dar um nome às sonoridades, mostrando a que tipo de emoção ou sentimento elas se vinculam, ele homogeneíza o work do grupo.
No contexto de work da orquestra, a emoção sentida individualmente precisa alinhar-se com os anseios da coletividade, a fim de que todos possam trabalhar "num único sentido". Os músicos “afinam” tanto seus instrumentos quanto seus sentimentos. Quando todos levam a sério esse objetivo, as emoções afloram a pleno. Nos ensaios e concertos é possível observar como essa troca de afetos por vezes resulta em momentos artísticos sublimes, nos quais a “verdadeira música” – expressiva na origem – realmente se efetiva.
|
Interação social de corpos deficientes Autoria: Jéferson Alves Autoria: A deficiência física é tema que vem ganhando importância na Antropologia, seja pela problematização das políticas para pessoas com deficiência, seja pela experiência de classificação, atenção e acesso à biomedicina, ou ainda nas diferentes abordagens sobre como corpos diversos interagem com/em sociedades diversas. A partir de dados iniciais de pesquisa em andamento que envolve “participação observante” e de entrevistas com pessoas com deficiência (PCDs) e com gestores de duas universidades do Rio Grande do Sul (FEEVALE e UFRGS), esta apresentação destaca inicialmente a interação de pessoas com deficiência com barreiras físico-sociais como fatores determinantes para a construção da subjetividade das PCDs, com implicações importantes para sua participação na vida cotidiana universitária. Numa segunda etapa, a partir da análise das entrevistas, pretendemos perguntar como emoções e sentimentos são acionados nos diferentes discursos implicados na relação entre PCDs e as Universidades em questão, na expectativa de contribuir com o diálogo da área a partir do referencial da Antropologia das Emoções.
|
Maria da Vila Matilde: a voz das mulheres contra a violência doméstica na música Autoria: Nathália Barcelos Ubialli, Nathália Barcelos Ubialli
Matheus da Rocha Viana Autoria: A antropologia das emoções que vem se firmando no Brasil desde a década de 1990, propõe, dentre outras coisas, a discussão de estruturas de emoções presentes nos imaginários culturais das sociedades e as representações de tais de forma a não considerá-las universais e trazer as problemáticas em torno dessas estruturas.
Um exemplo é o amor romântico, nas falsas obrigatoriedades presentes em relacionamentos e nas estratificações que ocorrem por meio da manutenção de certos imaginários. Ao se analisar tal estrutura desse amor idealizado, podemos pensar a partir das artes, e aqui especificamente, na música, como se atualizam as formas do que é tido como aceitável, ou não, nos relacionamentos amorosos.
Em “Maria da Vila Matilde”, a cantora Elza Soares pauta a luta constante contra as violências que uma mulher sofre dentro de um relacionamento. Dessa forma, anuncia os avanços da luta contra esse tipo de violência e principalmente citando o telefone “180” referente à Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência. Em sua mais recente obra (2018) fala da luta negra e feminista pela emancipação da mulher e reconhecimento de mulheres negras para além de sua recorrente objetificação.
Elza, que se relacionou com o futebolista mundialmente conhecido, Mané Garrincha, passou diversas vezes por essas agressões e objetificações dentro de seu relacionamento com o homem que diz ter sido o amor de sua vida. A relação de Elza e Mané, e a forma romantizada de tratar o casal, mostra uma construção de amor na qual se tinha a violência doméstica mais normalizada - fosse com a mulher na relação ou com os frutos da relação, seus filhos.
Uma das reivindicações da antropologia das emoções é a de que estas não são universais ou hegemônicas, e que principalmente, são frutos de relações de poder e contexto cultural: “Das relativizações iniciais passou-se para um esforço maior em mostrar a dimensão micropolítica das emoções, revelando como são mobilizadas em contextos sempre marcados por relações e negociações de poder em vários níveis” (REZENDE; COELHO, 2010, p. 15).
Dito isto, a intenção é, a partir da análise da letra da música de Elza Soares, perceber como se descristalizam e se reinventam as formas do que é aceitável, ou não, dentro dos relacionamentos amorosos. Levando em conta que “nenhum de seus constituintes afetivos, cognitivos ou conativos é fixo por natureza, pois dado que o amor é uma crença emocional pode ser ―mantido, alterado, dispensado, trocado, melhorado” (COSTA, 1998, p. 150). E buscando, a partir disso, entender a agência das mulheres no contexto atual de subversão, no qual, não só em âmbitos afetivos, nota-se uma tendência de não ficarem mais caladas frente à violências estruturais.
|
Medo, nostalgia e prazer na definição do comestível: rotas intersubjetivas de produção da legitimidade alimentar do queijo de leite cru Autoria: Maria de Fátima Farias de Lima, Antônio Cristian Saraiva Paiva Autoria: O comestível é uma categoria social, elaborada na interação entre os grupos humanos com o meio que habitam e definido no complexo jogo da sobrevivência. Logo, os empenhos de manutenção da saúde do corpo passam pela (re)definição coletiva do que é seguro comer, um processo de compartilhamento de saberes nutricionais que afeta e é afetado por conteúdos morais e emocionais, acionados no interior das culturas. Este estudo objetiva, assim, investigar como as emoções vinculadas à nostalgia e ao prazer impactam a experiência alimentar e (des)legitimam o consumo de certas comidas, negociando com os medos de intoxicação ou contaminação que perpassam as escolhas na alimentação contemporânea. Para tanto, tomamos como fonte de reflexão a narrativa de produtores e comerciantes de queijo Coalho feito com leite cru, um produto frequentemente apresentado nas mídias locais como “tradicional” e “regional”, mas condenado pela atual legislação sanitária à condição de alimento perigoso ao consumo humano e mercadoria “fora da lei”. O work de campo que é a base desta tese foi realizado por meio de visitas regulares à Jaguaribe, no Ceará, entre julho de 2015 e abril de 2017. Uma pesquisa foi conduzida também em Fortaleza, capital do estado e principal polo consumidor do alimento abordado. De modo a compreender a amplitude da problemática que cerca os queijos de leite cru na atualidade, outras duas inserções em campo constituíram, ainda, as fontes de reflexão empírica desse estudo (em termos mais propriamente complementares, que comparativos): uma em Medeiros, Minas Gerais, sobre o queijo Canastra; e outra em Nottinghamshire, na Inglaterra, sobre o Stichelton. A análise das interpretações recolhidas nesses movimentos de campo dialoga com antropologia das emoções de David Le Breton, complementada pelos debates sobre corpo, comida e ansiedade alimentar desenvolvidos por Jean-Pierre Poulain e Jesus Contreras. A compreensão do queijo feito com leite cru como um produto artesanal, vinculado a um passado imaginado no qual teria sido menos tensa a relação entre saúde e alimentação, modela nos entrevistados um sentimento de nostalgia que parece atuar no embaçamento dos riscos identificados, fortalecendo a integridade deste alimento como escolha segura. A dimensão hedônica do consumo (e da produção) de um produto experiente (que teria sobrevivido ao longo de séculos de história) e diferenciado no que tange as suas características organolépticas também ressalta nas falas analisadas, mediando tensões alimentares. Como deleite e fruto da intersubjetividade, o prazer gustativo transforma a passividade em sensibilidade ativa, mobilizando memórias, imaginários e pertencimentos que atuam na composição do queijo em estudo como comida confiável.
|
Movimentos sociais, gênero e emoções: a Lei do Feminicídio no Brasil e as ameaças sofridas por mulheres em contexto de violência Autoria: Brena O'Dwyer Autoria: Este work resulta de uma pesquisa de doutorado em andamento e objetiva, a partir de uma breve descrição dos relatos e das audiências de mulheres atendidas por uma Defensoria Pública de Violência Doméstica Contra a Mulher no estado do Rio de Janeiro, analisar as ameaças de morte sofridas por elas em situações de violência através da perspectiva teórica dos estudos de gênero, sexualidade e emoções e das respostas emocionais que essas mulheres dão as ameaças. Frases como “vou fazer picadinho de você”, “ se você sair de casa vou te meter a faca” ou “se eu for pra cadeia vou me juntar aos bandidos e mandar te matar” são referências comuns nas falas das mulheres tanto nas delegacias – que puderam ser acessadas através dos processos na defensoria – quanto no próprio atendimento e nas audiências. O medo aparece como principal emoção mobilizada por elas em resposta e é também acionado nas audiências e nas medidas protetivas.
O artigo atenta ainda para a centralidade da violência contra a mulher no debate feminista nacional e para a relação entre os movimentos feministas e a atuação na Defensoria acompanhada, de forma a analisar como e porque a Lei do Feminicídio – criada no Brasil em 2015 e que passa a caracterizar o feminicídio como crime hediondo – não é utilizada nesses contextos, ainda que haja ameaça de morte, mas continua vinculada a Lei Maria da Penha nos discursos oficiais como no Dossiê Mulher (2018). Assim, a violência aparece como categoria central no movimento feminista. As emoções aparecem também como eixo de análise para a interpretação dos movimentos sociais, sendo a indignação e a raiva emoções mobilizadas nos movimentos feministas para a criação de legislação. Em contrapartida, os movimentos sociais podem encontrar desafios nesse processo de construção de problemas sociais e definições de leis como foi o caso da exclusão de mulheres trans na Lei do Feminicídio. O contexto de criação da legislação com os movimentos conservadores no Brasil contemporâneo pode ser pensado a partir da noção de pânicos morais já que durante a CPMI para a concepção da lei a qualificação de feminicídio se modificou de “por motivos de gênero” para “por motivos de sexo feminino” e, assim, foi aprovada.
Portanto, a comunicação propõe um deslizamento entre o movimento feminista, o processo de criação da legislação e as narrativas de mulheres que sofreram ameaças de morte e violências em relacionamentos a partir das emoções suscitadas em cada uma dessas dimensões.
|
O judiciário e as tornozeleiras eletrônicas: As emoções e moralidades envolvidas nas audiências Autoria: Helena Patini Lancellotti Autoria: O objetivo desta comunicação é apresentar alguns dados da pesquisa de doutorado sobre os usos da tornozeleira eletrônica, em Porto Alegre/RS. As tornozeleiras eletrônicas, artefatos cada vez mais comuns no sistema prisional brasileiro, são objetos acoplados no tornozelo de apenados/as criminais como uma alternativa de baixo custo à lotação dos presídios, pois a pessoa poderá cumprir a pena em sua residência e não em um estabelecimento prisional. Em Porto Alegre, após a instalação do aparelho, a pessoa passa a ser vigiada 24 horas por dia pela Divisão do Monitoramento Eletrônico (DME) e deve cumprir uma série de normas: estar em casa em determinados horários, não violar certos territórios e não descarregar, danificar, e nem tentar retirar o aparelho do seu corpo. A tornozeleira funciona a partir de duas tecnologias: O GPS e o GPRS. O primeiro é responsável por emitir a localização exata de onde o/a monitorado/a está e essas informações são enviadas a partir da tecnologia de GPRS para a central do monitoramento. Através dessas informações é possível que se identifique os locais que pessoa esta, a velocidade que está se movimentando e as possíveis violações do território e do próprio aparelho. Quando ocorre alguma transgressão, o/a monitorado/a deverá participar de uma audiência de justificativa para explicar o porquê da violação e se justificar perante um/a defensor/a público/a, um/a promotor/a e um/a juiz/a relatando o motivo de ter descumprido algum dos critérios da tornozeleira. A partir deste relato, é que caberá ao juiz/a decidir sobre o destino do/a apenado/a: se receberá, por exemplo, um castigo a ser cumprido no regime fechado ou se a transgressão será perdoada. Tendo como ponto de partida as observações realizadas nessas audiências, proponho que será possível identificar quais moralidades, emoções e categorias morais são acionadas para justificar a violação e sensibilizar o magistrado a fim de não receber um castigo, assim como quais são as justificativas são aceitas por quem tem o poder de decisão. A partir desses dados será possível apreender que as emoções, as moralidades e empatia são uma peça central no momento da decisão.
|
O veneno e a adrenalina na “vida do crime”: narrativas de adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas Autoria: Danielli Vieira Autoria: A apresentação consiste na discussão a respeito de emoções e sensações que permeiam a experiência de adolescentes no que eles circunscreveram como “vida no crime”. Elas foram desenvolvidas a partir de duas etnografias centradas em narrativas de meninas e meninos em cumprimento de medidas socioeducativas. A primeira pesquisa de campo foi realizada em instituições de internação para meninos: locais em que viviam longos períodos de isolamento e privados de liberdade. Nesse contexto o que mais chamou a atenção sobre a experiência de internação narrada pelos jovens foi a questão de uma acentuação da dimensão de “estar no veneno” e da narração como possibilidade de “desabafar”, de colocar para fora o que eles chamavam de veneno. Tal categoria apareceu quando descreviam sua condição atual (estar “preso”) e também nas referências aos aspectos de sofrimento, de dificuldades na vida que levavam “no crime”. A segunda pesquisa de campo deu-se em locais nos quais eram aplicadas medidas socioeducativas de semiliberdade e de liberdade assistida para meninas e meninos. Nesse cenário em que estavam sob menos vigilância e não submetidos a castigos corporais, vieram à tona relatos sobre situações em que sofreram castigos, torturas, humilhações dentro das instituições de internação e na rua. Além disso, outro conjunto de emoções – por eles tratadas em geral em termos de adrenalina - permeou as narrativas e se refere a uma dimensão bem diferente: de aventura, de diversão, de experimentação. Trata-se, assim, de uma aproximação a uma experiência em que se vive, ao mesmo tempo, “no veneno” – com sensações que misturam angústia, sofrimento, raiva e tristeza – e na intensidade de uma “vida loka” marcada por adrenalina, presenteísmo, “alterações” via uso de drogas. Discute-se, também, a função terapêutica da narrativa como forma de desabafo, bem como a elaboração do “veneno”, dos castigos e torturas sofridos, em termos de “fortalecimento”. Argumenta-se que diferentes emoções como “o veneno” e a “adrenalina” fazem parte de um quadro mais geral de uma série de dimensões que compõem a experiência no crime. Em cada uma, há valores, linhas de sujeição e/ou subjetivação, mundos de referência, acionados de acordo com os contextos de ação e de comunicação e de acordo com os sujeitos em relação. As emoções discutidas constituem, além disso, determinados corpos e participam centralmente dos processos de subjetivação desses adolescentes. Vidas em que se tem um destino certo: “hospital, cadeia e caixão”, mas que são constituídas – via processos de subjetivação e de uma série de resistências - como vidas que valem a pena ser vividas.
|
Público, privado e íntimo na busca de parceiros nas mídias digitais Autoria: Iara Beleli Autoria: Em contraste com a era das mídias de massa (rádio e TV), desde a popularização da internet no início do século XXI, as mídias digitais tem permitido a criação de conteúdos de maneira horizontalizada. Baseada em uma investigação em sites de relacionamento e aplicativos direcionados à busca de parcerias afetivas/amorosas/ sexuais, privilegiando mulheres heterossexuais entre 30 e 50 anos que vivem no Estado de São Paulo. Em diálogo com as teorias feministas e de gênero, proponho uma reflexão sobre se, e como, a hiper-exposição nas redes sociais (re)configura noções de público, privado e íntimo, prestando particular atenção na circulação de diversas moralidades. As moralidades parecem atreladas à articulação de diferenças marcadas no corpo – gênero, sexualidade, raça/etnia, localização, entre outras – e, nesse jogo lúdico, norteiam as imaginações e emoções da escolha do par “perfeito”. Se o filtro para escolher um homem que tenha capital social, cultural e econômico restringe a busca ante a abundância de possíveis parceiros, neste momento de intenso debate sobre as eleições entram em jogo percepções políticas e ideológicas, afunilando ainda mais a escolha de alguém para apenas iniciar uma interação, obstaculizando o provável encontro face a face.
|
Se soubesse que era assim não tinha vindo: Sofrimento e migração Autoria: Mariel Marostica Fernandes, Drª. Sílvia Angela Gugelmin Autoria: O Brasil, ao longo de sua história, tem recebido migrantes internacionais de vários lugares do mundo e a partir do ano de 2010 um contingente expressivo de pessoas originárias do Haiti vem compondo seu trânsito migratório. Buscam work, acesso a serviços sociais públicos, principalmente de educação e saúde e a viabilidade de oportunizar melhores condições de vida para os familiares permaneceram no país de origem. Prioritariamente esses migrantes têm se direcionado para os estados do Sul e Sudeste, sendo que, a partir do ano de 2012, Mato Grosso, sobretudo, sua capital Cuiabá, se constituiu destino para os mesmos, lócus da presente investigação. Trata-se de um estudo de cunho qualitativo realizado no período de junho de 2017 a junho de 2018 com migrantes haitianos cujo objetivo é compreender os sofrimentos por eles vivenciados. A abordagem metodológica utilizada foram as Histórias de Vida e como técnicas: caderno de campo, observação e entrevistas semi-estruturadas, realizadas com dez migrantes haitianos, cinco homens e cinco mulheres, com idade entre 23 e 54 anos e tempo de permanência do Brasil que variou entre seis meses e seis anos. Dos depoimentos emergiram vivências de sofrimentos, físicos, emocionais e/ou sociais no decorrer do processo migratório - Se soubesse que era assim não tinha vindo - uma expressão constantemente pronunciada pelos participantes, representado o arrependimento inicial da vinda ao Brasil, à desesperança e o desejo de voltar para o Haiti. Ao emigrarem deixam seu lugar de pertencimento, o qual não é somente um ponto localizado em um espaço fisico-geográfico, também, construções sociais, investidas de valores simbólicos e afetivos. Enquanto lugar de pertencimento só conhece seu significado até deixá-lo (Heller, 1999); quando laços, com seu universo social, econômico, cultural são desfeitos, mesmo que temporariamente. Também vivenciam a experiência do desenraizamento (Todorov, 1996; Weil, 2014), de ruptura, com a visão de mundo, os valores, os comportamentos e com a cultura de origem, subsídio social e simbólico para a construção de sua identidade. Na cidade de Cuiabá, vivenciam transformações individuais, emocionais e sociais em suas vidas, esbarram em mundos materiais, cultural e socialmente desconhecidos. A priori essas condições introduzem os migrantes em profunda ruptura na visão de si e na ordem do tecido social. Os sofrimentos vivenciados pelos imigrantes corporificam sentimentos de angústia, saudade, abandono, preconceito, insegurança, tristeza, solidão e não pertencimento social.
|
Socialidades do refúgio: humanitarismo, solidariedade internacional e compaixão em uma ocupação urbana em São Paulo Autoria: Helena de Morais Manfrinato Autoria: O work pretende descrever as formas de solidariedade prestadas a famílias palestinas refugiadas do conflito sírio em uma ocupação urbana em São Paulo, motivadas pela compaixão pelas vítimas de guerra, mas também por um senso de justiça social e solidariedade entre os povos. Destacam-se as formas humanitárias de ajuda, a solidariedade de classe e anti-imperialista ao povo palestino, a solidariedade de gênero, e a solidariedade em relação ao sofrimento e a despossessão causados pela guerra, modos que ora operam separadamente, ora em conjunto, mesclando elementos éticos, morais e políticos. O objetivo é mostrar como as formas de solidariedade estão imbuídas de pressupostos culturais, políticos e enquadramentos da dor (BUTLER, 2015), que acabam por configurar relações específicas, reações de indignação, contra-discursos, coalizões político-afetivas ou rupturas, movimentando certa ‘economia moral do refúgio’ (FASSIN, 2014). Esses processos estão ligados, por sua vez, a regimes de visibilidade supra-locais e linguagens emocionais locais, que se cruzam informando o modo como as pessoas se importam com a dor e aflição dessas famílias, como agem ética e politicamente.
|
Tempo, exílio e sentimentos: A nostalgia e as gramáticas emocionais do reencontro no romance As Brasas (1941) Autoria: Eduardo Moura Pereira Oliveira Autoria: O romance As Brasas (1941), do escritor húngaro Sándor Márai, narra a história do reencontro entre dois amigos, quatro décadas após uma separação provocada pela quebra de fidelidade. Conjuga tempo e sentimentos, na medida em que apresenta um passado que não se findou relacionado a um horizonte para o qual se caminha. Baseado em um registro temporal do exílio, no qual identifico a vivência subjetiva deslocada no passado, proponho um estudo das gramáticas emocionais do reencontro a partir de uma análise interpretativa de As Brasas. Do ponto de vista metodológico, a pesquisa está baseada em um tipo de interpretação textual que considera as dinâmicas entre o autor, a obra e o leitor. Procura identificar a dimensão histórica e cultural da obra literária através de processo receptivo. Baseado no drama do protagonista Henrik, o estudo aciona um tipo de subjetividade baseada na inadequação da condição em que a vida se encontra no tempo presente. A compreensão do modo pelo qual as pessoas revitalizam seu passado permite situar o conjunto de significados atribuídos à noção de nostalgia. Tal sentimento é examinado tendo como chave de compreensão a experiência do exílio enquanto perda do laço afetivo com o tempo-espaço vivido no passado. Posicionado na questão da quebra de confiança, o drama levantado a partir de As Brasas é analisado no plano de uma ordem sentimental específica, capaz de articular o exílio e a nostalgia, enquanto ausência de uma forma de existência que se deixou de ter. No romance, essa nostalgia suscitada pela ausência consiste no esforço de reelaboração do passado de maneira a transubstanciar o consumado em incerteza, o que revela modos específicos de vivenciar subjetivamente o tempo.
|
Testemunhos religiosos, sofrimentos e exposição da intimidade na esfera pública midiática Autoria: Raphael Bispo dos Santos Autoria: O testemunho religioso é um gênero de narração de histórias de vida estruturado numa linguagem dos sentimentos. Ele explora a “vida interior” do converso através da elaboração e exposição pública de seus suplícios. Nesse sentido, a partir da análise dos testemunhos de artistas mulheres convertidas ao pentecostalismo, a apresentação tem como propósito acompanhar o processo de constituição dos sofreres que perpassam suas narrativas. Nesses testemunhos, o privado e o público possuem suas fronteiras estilhaçadas, sendo o sofrimento uma categoria nativa acionada para qualificar estados emocionais negativos e que se articula a expressões como “dor”, “vazio” e “angústia”. Propomos neste work uma abordagem teórica que procura revelar as temporalidades existentes na construção dessas sensibilidades evangélicas. Busca-se explicitar as estratégias que tais artistas encontram para lidar com as dores do cotidiano e tentarem uma recuperação existencial de si depois de passarem por experiências subjetivas tortuosas, o que chamaremos aqui com base na literatura antropológica de “refazendo um mundo”.
|
work doméstico, work emocional e produção de conhecimento Autoria: Fernanda Azeredo de Moraes Autoria: O presente work, fruto de minha pesquisa de doutoramento em andamento intitulada “Les 'femmes de' science : genre, collaboration et carrières scientifiques », pretende analisar dinâmicas de gênero e parentesco típicas ao ambiente universitário e que ultrapassam as divisões tradicionais entre público e privado. Através de uma investigação histórica e etnográfica, analiso o papel silencioso ocupado pelas “mulheres de” antropólogos na produção e reprodução do conhecimento antropológico. Focando-me na geração de antropólogos e antropólogas da França de 1930, proponho um olhar sobre a história da antropologia e a sociologia das profissões que se beneficie das discussões feministas sobre a sobrecarga feminina do work doméstico e emocional e seus efeitos em um contexto de produção capitalista (FREDERICI, 2012). Tomo portanto como objeto de pesquisa as dinâmicas familiares e conjugais que perpassam as carreiras científicas de antropólogos e antropólogas francesas da primeira metade do século XX. Seja assistindo no work de campo, atuando como revisoras de texto e tradutoras, datilografando e organizando fichas, ocupando-se de recepções a colegas ou simplesmente dos cuidados domésticos e emocionais, essas mulheres (por vezes também antropólogas ou acadêmicas) são responsáveis pela realização das condições necessárias para a produção do conhecimento científico. Como descreve uma de minhas interlocutoras sobre seu papel na enorme produção científica de seu marido “quando você tem alguém disponível para reler seus textos, você avança mais rápido e não fica preso”. Em períodos de falta de reconhecimento acadêmico de seu companheiro ela conta “levantar a sua moral” como parte importante de sua colaboração. Se faz evidente, portanto, o work científico e de gestão das emoções que subjaz os cânones da disciplina e, consequentemente, os ideais de produtividade que eles representam. Todavia, as contribuições dessas mulheres são invisibilizadas dada à percepção do cuidado como um “não work”, feminilizado, não remunerado e irreconhecido, revestido por uma linguagem sentimental da dedicação e do amor (DELPHY e LEONARD, 1992). Acredito que atentar para as contribuições dessas “mulheres de”, que colaboraram para a construção da ciência que nós tomamos como clássica, pode nos ajudar a refletir sobre a universidade e ciência hoje, em um contexto de crítica aos seus efeitos sob a saúde mental e suas desigualdades de gênero.
|
Vergonha, desonra e resistência: as “polacas” e suas sociedades de ajuda mútua no Rio de Janeiro no início do século XX Autoria: Anelise Fróes da Silva Autoria: Este work é parte de minha tese de doutorado, a qual vem sendo desenvolvida no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com financiamento da CAPES, dentro do campo da Antropologia da Memória e das Sociabilidades.
Versa sobre jovens judias traficadas do Centro-Leste da Europa para as Américas para fins de exploração sexual em cidades centrais como Nova Iorque, Rio de Janeiro e Buenos Aires, entre fins do século XIX e a segunda década do século XX, as quais ficaram conhecidas pela alcunha generalista de “polacas”. Mais do que investigar os silenciamentos e apagamentos daquelas mulheres na história e nos estudos antropológicos, tenho buscado conhecer suas formas de organização social, manutenção de espaços religiosos, múltiplas sociabilidades com outros grupos à margem (negros, operários, sambistas), e sobretudo suas estratégias de resistência e afirmação coletivas.
A partir de organizações de ajuda mútua constituídas por judias prostituídas, discuto aqui questões como honra, desonra, impureza, exclusão, as diversas camadas de vergonha impostas sobre elas, e como foi possível que tenham se mantido unidas em torno dos ideais de cuidado de si e das outras, preservação cultural e religiosa, e garantias de sepultamentos dignos em suas mortes.
Sigo as proposições de Pitt-Rivers (1979) sobre a honra coletiva de grupos sociais, a qual depende da honra de cada um dos membros do grupo, bem como de Peristiany (1971) sobre honra e vergonha, e a importância do pudor sexual para as mulheres.
Da mesma forma, me utilizo das reflexões de Douglas (1976) sobre a crença em contágios perigosos como definidora de certas regras sociais, essenciais para a manutenção de valores morais, hierarquias e simetrias das sociedades. Desenho oposições entre as “mulheres de valor” da comunidade judaica, tais como descritas por Zweig (2004), e as “polacas”, uma vez que essas, apesar de sua condição de párias, desonradas, impuras e motivo de vergonha para o círculo judaico da época (e ainda hoje), foram capazes de permanecer fieis aos seus princípios religiosos, à coletividade e à preceitos judaicos como a caridade entre os seus e para com os demais.
|
“Nós temos amor”: a micropolítica das emoções e o cuidado de idosos Autoria: Fabio de Medina da Silva Gomes Autoria: Esta pesquisa resulta do work de campo que tenho empreendido para minha tese de doutorado. Ela tem como objetivo uma compreensão das relações entre a atividade econômica e o envolvimento íntimo nas práticas imbuídas de moralidade católica no cuidado de idosos. O work de campo é realizado em uma instituição católica no município de Niterói/RJ. Percebe-se como o discurso do amor mobiliza o work voluntário de cem pessoas - em sua maioria aposentadas ou pensionistas - além de uma certa quantia financeira, existindo assim uma estreita relação entre o cuidado e estes recursos. Esta combinação é possível mediante uma moralidade estabelecida naquele ambiente. Para compreender a problemática envolvida neste tipo de relação, quis me aproximar de uma instituição classificada pela Política Nacional do Idoso como “centros de convivência”. Por intermédio de uma amiga, eu conheci um desses espaços. Sabendo que o envelhecimento era meu objeto de estudo, ela disse que eu deveria ir à “Creche de idosos da igreja” onde ela queria “colocar” sua mãe. A denominação “creche” é usada por alguns familiares dos idosos. Pouco tempo depois, descobri tratar-se de uma instituição católica, pertencente a uma fraternidade franciscana. Resolvi fazer observação participante nesse espaço que chamarei de “Casa”. Meus interlocutores pediram para que eu não revelasse nem seus nomes e nem o nome dessa instituição. Como referido, dedico especial atenção à circulação de valores nos cuidados dispensados aos idosos nessa instituição. Essa circulação é reiteradamente negada pelas lideranças da Casa. Existe um discurso muito articulado pelas lideranças: “as pessoas dão o quanto podem, e como nós não queremos dinheiro, o idoso é muito mais bem tratado do que em outras instituições.” Nesse sentido, houve uma frase que me chamou atenção: “Aqui o idoso não tem cadeira que reclina, não temos ar refrigerado, mas nós cuidamos melhor do que em outros lugares, porque nós temos amor”. Esse sentimento “amor” surge dentro de uma moralidade específica, a moralidade cristã, marcada pela devoção a São Francisco de Assis. A religião o apresenta como exemplo de homem que deu tudo que tinha aos pobres, sendo um símbolo da caridade na Casa. Por isso mesmo, a sua oração é constantemente recitada. Trata-se, assim, de um articulado discurso sobre esse sentimento, demonstrando a sua capacidade micropolítica. Um discurso muito recorrente na Casa é o dinheiro como algo que contamina a ética do cuidado. “Os voluntários não trabalham esperando alguma prestação como retribuição, muito menos uma retribuição financeira.” O fato de serem uma instituição sem fins lucrativos é sempre colocado de forma positiva. Pretendo, assim, colocar em debate emoções e as sociabilidades desse contexto.
|
“Nossa nova caminhada”: reflexões sobre emoções, espiritualidade e mobilizações de familiares de vítimas do incêndio da boate Kiss Autoria: Monalisa Dias de Siqueira, Ceres Gomes Victora Autoria: Partindo da pesquisa que vem sendo realizada sobre os desdobramentos pessoais e coletivos da “tragédia de Santa Maria”, propomos refletir sobre a relação entre emoções, espiritualidade e mobilizações de familiares de vítimas do incêndio na boate Kiss. Para isso, apresentaremos dados etnográficos referentes a entrevistas com familiares, ao acompanhamento de viagens para São Paulo e Minas Gerais e no Rio Grande do Sul visitando centros espíritas kardecistas onde médiuns psicografaram cartas de seus filhos e as conversas e compartilhamentos de informações em um grupo do Whatsapp e no Facebook. Para este grupo de familiares, o incêndio está relacionado ao work da “espiritualidade” e esta perspectiva tem nos convocado a uma desnaturalização dos conceitos de “tragédia”, “vítima” e “justiça”, os quais são normalmente assumidos nos discursos de outro grupo de familiares, cujo empreendimento se volta à identificação e condenação de “culpados pela tragédia”. A partir da certeza do “amor eterno” que os une e da continuidade da vida após a morte do corpo físico, esse grupo tem se mobilizado e construiu uma rede de apoio e sociabilidade e de atuação político-religiosa que, atualmente, conta com a participação de pessoas de várias cidades do Brasil, do Uruguai e que não necessariamente estão relacionadas diretamente com o incêndio da boate Kiss. Nesse sentido observamos que algumas emoções, entre elas o “amor”, a “saudade”, a “esperança” quando articuladas entre si em contextos de “dor” e “luto” mobilizam uma série de recursos e ações não menos políticas, nem menos organizadas, do que aquelas protagonizadas por outro grupo de familiares que luta por “justiça”.
|